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Direito não se negocia: Povos originários dizem não à negociação de direitos constitucionais

Redação

31 de outubro de 2024
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Foto Apib

A ameaça das elites contra os direitos constitucionais dos povos indígenas continua viva e voraz, mas também bastante dissimulada. Além da mais bruta violência, a classe dominante brasileira tem um longo histórico de astutas e ardilosas armadilhas, que buscam atrair os oprimidos e suas lideranças para ciladas e a cooptação. É isso que se vê com a chamada comissão de conciliação do Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir os direitos indígenas.

Em setembro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) rompeu com a comissão e, em nota, disse que há risco de que o espaço estabelecido “desemboque num cenário de ‘desconstitucionalização’ de direitos fundamentais alçados a cláusulas pétreas pela Carta Magna de 1988”. Muitas outras lideranças indígenas também já denunciaram a comissão

Marco temporal

A comissão do STF surgiu em meio aos debates sobre a tese do Marco Temporal. Segundo essa tese, os povos indígenas teriam direito de ocupar apenas as terras que ocupavam (ou já disputavam) na data de promulgação da Constituição de 1988. O que é um verdadeiro absurdo, uma vez que muitas comunidades indígenas foram deslocadas e expulsas de suas terras ancestrais por jagunços, a mando dos grandes proprietários de terra.

Em setembro de 2023, o STF decidiu que a data não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas. Mas, em dezembro, antes de que a decisão do STF fosse publicada, o Congresso Nacional, que representa os latifundiários do país, editou a Lei 14.701/2023 e adotou o Marco Temporal. Desde então, foram apresentadas quatro ações questionando a validade dessa lei.

Daí vem a manobra da comissão do STF. Presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, um notório representante de fazendeiros ladrões de terras, a comissão iniciou debates no sentido de indenizar os autointitulados proprietários de terras, em casos de demarcação.

Pela Constituição, as terras indígenas são terras da União. Por esse motivo, não é admissível pagar por uma terra que já é pública. Na verdade, a indenização traz pelo menos dois grandes problemas. O primeiro é a premiação de ladrões de terras e assassinos de indígenas. O segundo problema é que o processo de indenização vai congelar a demarcação das Terras Indígenas, uma vez que ela só será possível mediante pagamento em dinheiro a seus supostos proprietários. O não avanço da titulação das terras quilombolas, em parte, se deve a isso.

“Estou aqui pra repudiar o ato do ministro Gilmar Mendes que vai contra a sua própria decisão, que já julgou a tese do Marco Temporal inconstitucional. Ou seja, essa conciliação é, sim, um golpe pra retirada dos nossos direitos, para negociar os direitos dos povos indígenas”, declarou nas redes sociais Txai Suruí, do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia.

A manobra do STF se completa com as movimentações dos ruralistas no Congresso Nacional para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição número 48, que tenta colocar na Constituição o marco temporal. “A mesa de negociação é ilegal do ponto de vista dos direitos originários. Afinal a Constituição proíbe negociações de Direitos Fundamentas. Além disso a Bancada anti-indígena prepara a PEC 48 para ser votada dia 30 de novembro para garantir a constitucionalidade do nosso extermínio. Aprovada a PEC a negociação torna-se legal. O que Gilmar Mendes está fazendo é uma cortina de fumaça para enganar os povos indígenas a favor dos ruralistas”, explica Raquel Künã Yporã Tremembé.

Experiência piloto no Mato Grosso do Sul

Recentemente, o próprio Gilmar Mendes relembrou o acordo firmado entre fazendeiros, os governos federal e estadual e lideranças indígenas, envolvendo a demarcação da Terra Indígena ÑandeRu Marangatu, em Mato Grosso do Sul.

O acordo histórico de conciliação visa dar fim ao conflito fundiário na região, que dura mais de 30 anos. O acordo prevê o pagamento de R$ 146 milhões aos fazendeiros. Só depois da assinatura do acordo, o Estado cumpriu sua obrigação constitucional com os povos indígenas e restaurou o decreto de homologação da Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu, que estava suspenso desde 2005, em virtude de uma decisão monocrática, proferida pelo ex-ministro do STF Nelson Jobim.

Por décadas, os fazendeiros agora indenizados despejaram, ameaçaram e atacaram covardemente famílias indígenas, provocando conflitos nos quais pelo menos sete Guarani Kaiowá foram assassinados. Entre eles, a liderança indígena Marçal de Souza, morto a tiros, em 1983, após ter denunciado a situação de seu povo ao Papa João Paulo II.

É esse modelo que estão tentando implementar no país, passando por cima de direitos constitucionais garantidos com muita luta e sangue.

Arrancado na luta

Exemplo de uma vitória da luta indígena

No último dia 23, sete portarias declaratórias (que avaliza os estudos feitos por antropólogos e especialistas, dando início ao processo de demarcação) de terras indígenas do povo Guarani foram assinadas pelo Ministro da Justiça Ricardo Lewandowski. As Terras Indígenas (TIs) Jaraguá, Peguaoty, Djaiko-aty, Amba Porã, Pindoty-Araça-Mirim, Tapy’i/Rio Branquinho e Guaviraty, todas localizadas no estado de São Paulo, tiveram sua tradicionalidade reconhecida, após anos de espera.

No caso das Terras Indígenas Djaiko-aty e Amba Porã (no município de Miracatu), Peguaoty (em Sete Barras) e Tapy’i/Rio Branquinho (nos limites de Cananeia), foram treze anos desde sua identificação e delimitação. Já no caso da TI Guaviraty, em Iguape, também no estado de São Paulo, a espera foi de 23 anos.

A TI Jaraguá teve sua portaria publicada em 2015, sendo depois anulada, em 2017, pelo então Ministro da Justiça do governo Temer, Torquato Jardim.

Essas são as primeiras portarias declaratórias após seis anos. Mas isso não foi nenhuma concessão. Foi o cumprimento dos deveres constitucionais por parte do governo. E, acima de tudo, representam uma vitória de anos de lutas dos movimentos indígenas.

É uma portaria de muita luta, de muito sofrimento e perseguições, que a gente lutou muito pra conseguir. Vai ser entregue na Casa de Reza. Vamos comemorar, sim, com rezas”, disse Sonia Barbosa Ara Mirim, reconhecida liderança do Jaraguá, ao exibir orgulhosa o documento nas redes sociais.