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Debate: Negar a crise de direção é contribuir para aprofundá-la

Mayara Conti

4 de março de 2024
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Recentemente, nos deparamos com um artigo interessante – e provocante – que se propôs a questionar a validade atual do Programa de Transição e da ideia de crise de direção do proletariado, formulada por Trotsky em 1938. Trata-se do artigo “Pensando um pouco sobre a crise de direção do proletariado”, escrito por Henrique Canary, e divulgado no Esquerda Online, plataforma digital da corrente Resistência, do PSOL.

É interessante debater esse artigo por dois motivos fundamentais: discutir o que há de proveitoso na contextualização histórica realizada na abertura do texto, abordando os efeitos duradouros que se depreendem daquele período, e que ainda são sentidos na atualidade, e investigar com profundidade a hipótese levantada pelo autor de que a crise de direção do proletariado seria um conceito anacrônico e, portanto, inútil para aplicação nos dias atuais.

A partir disso, buscaremos demonstrar que, por trás das conclusões elencadas no referido artigo, existe uma grande confusão (na melhor das hipóteses), ou uma tentativa envergonhada de legitimar uma política de adaptação ao regime burguês, distorcendo e revisando o marxismo – trotskismo.

Portanto, vejamos passo a passo:

A contextualização histórica dos anos 30 feita na primeira parte do artigo nos parece razoavelmente correta:

De um lado, os ecos da Revolução de Outubro na luta de classes mundial, a consequente e incontestável influência da ideologia socialista sobre os proletários, seus sindicatos, associações, universidades, sobre a ciência e a arte. Na esteira dessa influência, processos de lutas radicais deflagrados em países importantes como França, Espanha e EUA, greves com ocupações, etc.

De outro lado, o triunfo stalinista e a burocratização galopante da URSS e da III Internacional e o crescente papel de adaptação da socialdemocracia ao Estado burguês, que, em conjunto, dirigiam amplos setores do proletariado, desviando e traindo as lutas que surgiam, cada qual a sua maneira.

Diante de tal cenário, Trotsky estava corretíssimo quando apontou a crise de direção como “a crise histórica da humanidade”, pois a única maneira de seguir avançando para o socialismo mundial – e inclusive a única maneira de manter as vitórias até então conquistadas – era superando as direções stalinistas e reformistas. Isso o próprio Canary admite: “essa ideia foi correta e importante historicamente”.

Ou seja, as organizações que, naquele momento, dirigiam majoritariamente a nossa classe amarravam o potencial revolucionário do proletariado, impedindo um golpe de morte no capitalismo em decadência.

Sobre tudo isso temos acordo porque isso não é uma “opinião”, mas simplesmente história, foi o que aconteceu, e contra fatos não há argumentos.

O problema está no que vem a seguir, ou, melhor, no que faltou dizer antes…

Culpar as massas e absolver as direções não é o caminho

Até aqui observamos que Canary se esforça para criar, à sua maneira, um resumo do cenário que levaria Trotsky a levantar a crise de direção como a crise da humanidade.

Para Canary, a coisa toda se resume a dizer que: de um lado as massas lutavam bravamente e tinham consciência socialista (o que seriam as condições objetivas daquele momento) e, de outro, as direções traíam e impediam a revolução (o que seriam as condições subjetivas), logo, Trotsky estava correto sobre a crise de direção apenas naquele momento, em que as massas lutavam e as direções boicotavam.

Ele constrói a coisa dessa forma para, mais adiante, afirmar o seguinte: hoje em dia as massas não lutam mais e as direções não dirigem, logo, podemos jogar todo o Programa de Transição na lata do lixo da história.

Vejamos suas próprias palavras:

“Pode-se falar realmente em uma direção nessas condições? Alguns partidos socialdemocratas preservam uma importante influência política, mas é difícil dizer que ‘dirigem’ a classe. Sua inserção social não guarda nenhuma proporção com aquela da primeira metade do século 20. Os partidos comunistas então – nem se fala (…)”
(…) As greves não obtém resultado porque são traídas? Novamente, não negamos que as traições não existam, mas esse é o principal problema da atual etapa histórica? Ou é a dispersão, a confusão, a apatia, o individualismo, a alienação, a imobilidade e a falta de perspectivas? As massas desejam ardentemente a superação da sociedade capitalista, mas são enganadas por suas direções? Suas lutam tendem ao socialismo, mas são constantemente traídas por stalinistas e reformistas?

Assim, o resultado óbvio é que a culpa da situação atual é essencialmente das próprias massas e não de suas direções.

Como ele mesmo afirma: “As lutas evidentemente seguem acontecendo porque o capitalismo segue existindo, mas nunca foram tão defensivas, confusas e tão limitadas em sua perspectiva estratégica. Isso não pode ser atribuído fundamentalmente à direção, embora a direção – quando existe! – possa cumprir um papel. É preciso ir mais fundo. E lá no fundo, se cavarmos bem, está a crise subjetiva do proletariado”.

Ocorre que toda essa derrota subjetiva que, de fato, vive o proletariado mundial – que é inegável e com a qual concordamos em todos os aspectos citados: há dispersão, confusão, apatia, individualismo, alienação, imobilidade e falta de perspectivas – só existe e chegou ao grau que chegou justamente porque a crise de direção se aprofundou, ano após ano.

Os potenciais processos revolucionários que surgiam eram enterrados, um atrás do outro, a burguesia se reestabelecia e se recuperava diante de cada uma dessas derrotas, a disputa ideológica foi sendo vagarosa e determinantemente vencida pela classe dominante, que utilizava todas as artimanhas possíveis, inclusive se apoiando nos crimes stalinistas, para fazer crer que o “socialismo não é viável”, que era chegado o “fim da história”, e que o capitalismo seria o único sistema possível e viável.

O stalinismo não só traiu as lutas naquele período como deixou uma herança maldita que recai até hoje sobre toda a esquerda, com seus métodos espúrios de disputa política, difamação, mentiras, regimes internos burocráticos que guiam partidos inteiros pela disputa de aparatos, sem programa e estratégia revolucionária, uma busca desenfreada por cargos, por mínimos que sejam.

Os reformistas, por sua vez, se tornaram cada vez mais numerosos, alimentando e inflando a cada passo a utopia absurda de que é possível tornar o capitalismo mais “palatável”, mais “humano”. Tratam de convencer as massas de que não é mais preciso ter consciência de classe, basta ter “representatividade” (feminina, negra, LGBTI, etc.), votar no “mal menor”, ainda que tenham que tapar o nariz e vender a alma pra isso. Rebaixam ao fundo do poço qualquer vestígio de programa que cheire a socialismo, inclusive abandonando de vez a crítica ao regime democrático burguês, essa “preciosidade a ser defendida com unhas e dentes”, inclusive deixando uma avenida aberta para a extrema direita surfar quando o descontentamento das massas surge contra a ditadura da burguesia sobre o proletariado, essencialmente nos momentos de crise do capitalismo.

Se isso não conduz as massas à derrotas cada vez mais numerosas e não aprofunda a crise de direção, o que significa, afinal?

Canary tenta relativizar o papel dessas direções – a da sua própria organização, aliás – argumentando que não seriam mais representativas como nos anos 30.

Ora, tal como escreve Trotsky, já naquele tempo, os sindicatos “não congregam mais de 20% a 25% da classe operária que, aliás, são suas camadas mais bem qualificadas e melhor remuneradas”. E isso é assim porque vivemos um sistema onde a classe dominante é burguesa, e é natural que seja assim. A classe dominante atua conscientemente para enfraquecer os organismos de organização da classe dominada, muitas vezes em conjunto com as próprias direções. Os stalinistas e reformistas seguem ocupando amplamente esses sindicatos, seja no funcionalismo, entre os professores, bancários, petroleiros, trabalhadores dos transportes, do campo, etc.

E, se antes congregavam 20% e hoje cerca de 11% (dados atuais de sindicalização dos brasileiros após os efeitos da reforma trabalhista, mas há disparidade entre os mais diversos países e as causas são as mais variadas, desde desemprego até aumento de trabalhos temporários, etc.), isso nada tem a ver com o fato das massas estarem apáticas e sem perspectivas? Esse sentimento de derrota não teria relação alguma com todos esses anos em que foram massacradas por essas mesmíssimas direções até perderem toda a confiança e o brio que lhes era próprio até poucos anos atrás?

Pensando no Brasil, a redemocratização pactuada dirigida pelo PT nos anos 80, o apaziguamento das greves, as saídas negociadas com a patronal, tudo isso não tem efeito sobre a “subjetividade das massas”?

Cito aqui minha própria categoria, que há poucos anos arrancava direitos significativos, fazia greves exemplares, conquistava de redução de jornada a direitos econômicos que hoje colocam muitos de seus trabalhadores entre os 10% mais ricos da população brasileira, por exemplo.

É inegável que as massas sofreram, e ainda sofrem, as consequências da restauração capitalista e tudo o que aquilo significou no campo subjetivo. O proletariado não venceu a crise de direção tão alardeada por Trótsky e a coisa só piorou de lá pra cá, sobre isso não há dúvidas. O capitalismo venceu aquela batalha e até hoje sentimos o gosto amargo daquela derrota. Mas daí a afirmar que não há mais crise de direção só serve para culpar as massas e absolver essas direções traidoras e capituladoras do papel que ainda desempenham nos dias de hoje.

Se naquele tempo a crise de direção impedia as massas de tomar o poder (tal como apontava Trótsky), hoje, com seu aprofundamento, ela conduz as massas cada vez mais à dispersão, confusão, apatia, individualismo, alienação, imobilidade e falta de perspectivas.

Concordamos com Henrique que a tarefa deste período histórico é recompor a subjetividade histórica do proletariado. Acontece que esse é o papel das direções do proletariado, e suas direções atuam no sentido oposto dessa tarefa! O grau de burocratização e adaptação ao Estado é tão grande que o desinteresse pelos sindicatos só cresce, naturalmente, não há confiança ou disposição das massas trabalhadoras organizadas para seguirem direções que não só não incentivam a mobilização como a dificultam em todas as oportunidades.

O Sindicato de Bancários de São Paulo, para citar um exemplo (um dos maiores sindicatos da América Latina), traiu sistematicamente todas as greves que foi forçado a organizar (por pressão de sua base) nas últimas décadas, criando um sentimento de apatia e desconfiança que só aumenta a cada traição. É comum que as assembleias sejam sempre marcadas por manobras burocráticas de todo o tipo, como veto ao direito de fala das oposições, organização das chefias cooptadas para votar pelas propostas da patronal, fraude na contagem de votos, etc. É de se esperar que o sentimento de desconfiança, somado a todo o esforço ideológico da burguesia liberal de criar confusões sobre o pertencimento de classe, etc, cause apatia nas massas.

Veja, a crise atingiu tal grau nos dias de hoje que afasta as massas trabalhadoras não só da perspectiva do socialismo, mas de seus próprios instrumentos de luta! E de quem é a culpa senão das próprias direções?!

E se é assim nas bases de categorias com tradição, categorias “fortes e organizadas”, que dirá no mundo do trabalho precarizado, onde as direções sindicais (quando existem) são verdadeiras máfias organizadas, que levam capangas armados para garantir processos eleitorais fraudulentos, ameaçam os trabalhadores, etc.

Negar o aprofundamento da crise de direção e culpar as massas por sua apatia é seguir no curso de desserviço à tão necessária “recomposição da subjetividade histórica do proletariado”. Como o proletariado há de recobrar seu ímpeto de luta e avançar gradativamente a retomada da consciência socialista se as direções não têm nenhuma responsabilidade por essa situação?

A saída que nos oferece o reformismo

Toda a relativização do peso das direções stalinistas e reformistas na atualidade, bem como a culpabilização das massas por sua própria crise, constituem uma “formulação teórica” – ao menos na aparência – que é um prato cheio para os reformistas.

Encrustado nos setores privilegiados da classe trabalhadora e fortalecido pelos anos de reação desde a restauração do capitalismo nos ex-Estados Operários, esse setor, por definição, nunca atuou a serviço da estratégia comunista, mas pelo contrário, sempre busca subterfúgios e justificativas pra colocar na ordem do dia a simples aplicação do programa mínimo como única possível (uma verdadeira utopia reacionária), enquanto o socialismo aparece apenas para enfeitar de vermelho os dias de festa.

Combater esse tipo de raciocínio foi justamente o centro das elaborações de Lênin e Trotsky já no século passado, por isso as tentativas de invalidá-los e julgá-los obsoletos nunca cessam.

Numa época como a nossa, onde as experiências socialistas foram derrotadas e as oportunidades revolucionárias têm sido escassas, essas ideologias pseudo-marxistas florescem como nunca, e devem ser enfrentadas com ainda mais rigor.

Vejamos como Canary apresenta a “tarefa do nosso período histórico”:

É preciso acompanhar a classe-que-vive-do-trabalho em sua nova (velha) experiência histórica: fomentar as lutas mínimas e a organização, reconstruir os laços de classe, promover a consciência, o internacionalismo, a unidade para lutar, a independência de classe. O proletariado precisa, em primeiro lugar, se entender como uma classe. Esse é o primeiro passo. Depois, formular seus interesses e lutar por eles. (…) Isso não diminui, mas, ao contrário, aumenta a necessidade de organizações revolucionárias marxistas, coesas, internacionalistas, formadas por militante ativos, radicalmente democráticas em seu interior. Mas essas organizações só crescerão se buscarem se ligar ao movimento real, imperfeito da classe trabalhadora, dos explorados e oprimidos. Esse movimento é essencialmente reformista, não tende aos revolucionários, rejeita nossa estratégia e está repleto de contradições e perigos. Mas é o que há de mais importante.”

A medida que as massas, influenciadas pela ideologia dominante e por suas direções, perdem os laços de classe, se afastam dos instrumentos de luta e se tornam apáticas, a proposta do autor é que nos adaptemos a essa situação, adotando o programa mínimo como fórmula prioritária de atuação, para “acompanhar a classe em sua experiência histórica”, ao invés de tratar de estabelecer vínculos entre a necessidade real de lutar contra o capitalismo com suas demandas mais imediatas, tal como nos ensina a Teoria da Revolução Permanente e o Programa de Transição. Como se não fosse possível reestabelecer a “subjetividade das massas” com um programa socialista, ainda que mediado pelas condições objetivas de mobilização da classe trabalhadora, adaptando as palavras de ordem conforme a situação, etc.

A contradição mais gritante que encontramos no texto, porém, é quando o autor reconhece que “o retrocesso histórico nos fez retornar a uma situação similar à que tínhamos durante a I Internacional”, mas que Marx e Engels, quando atuavam com política comunista diante daquela situação o faziam porque “viveram fora de seu tempo”, “estavam fora da fase”. Ou seja, para Canary, o fato de termos que “começar pelo começo”, como nos tempos da I Internacional, não significa que devemos atuar como eles atuavam, “fora do nosso tempo”, mas, antes de tudo, significa suprimir a palavra socialismo de nosso vocabulário, esconder das massas o programa comunista de superação da ordem capitalista (infinitamente superior à utopia reformista), pois as massas não estariam prontas pra ouvir essas coisas, são muito “atrasadas”, rejeitam essa estratégia (embora sequer a conheçam e não têm quem lhes apresente!).

Que sorte as massas do século XIX tiveram ao topar em seu caminho com gênios como Marx e Engels, que não só identificaram esse atraso na consciência das massas como dedicaram suas vidas a elevarem seu nível de consciência, não adaptando-se ao senso comum e à ideologia reformista burguesa, mas apontando cada um dos seus limites e formulando uma ideologia proletária revolucionária capaz de oferecer a única saída viável para a superação do sistema capitalista de que dispomos até hoje!

Não só não culparam as massas pelo seu atraso, como explicaram com maestria que as massas, por si só, jamais chegariam à consciência socialista e que essa era a tarefa imperial dos revolucionários, que deviam carregar nos ombros essa enorme responsabilidade, única forma de sair do imbróglio das infindáveis lutas econômicas que limitavam o horizonte da nossa classe.

Tivéssemos o azar de termos tido dirigentes como Canary ao invés de Marx e Engels, o movimento operário não teria avançado um milímetro sequer nos últimos 150 anos.

Lênin, por sua vez, já em 1902 apontava que “os operários não podiam ter consciência socialdemocrata (leia-se marxista). Esta só poderia ser introduzida de fora. A história de todos os países demonstra que, contando apenas com as próprias forças, a classe operária só está em condições de atingir uma consciência trade-unionista, isto é, a convicção de que é preciso agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, reivindicar ao governo a promulgação desta ou daquela lei necessária aos operários etc. A doutrina socialista, ao contrário, nasceu das teorias filosóficas, históricas e econômicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais.” (O que fazer, Lênin)

Canary revisa o marxismo-leninismo quando propõe que a “tarefa do nosso período histórico” é justamente se limitar à consciência trade-unionista, “se ligar ao movimento essencialmente reformista que é o que há de mais importante”, como se o papel dos revolucionários não fosse justamente atuar nesses movimentos para introduzir a consciência revolucionária!

Enquanto houver capitalismo, não haverá consciência socialista por osmose, as massas trabalhadoras não chegarão à consciência socialista sendo incentivadas a fazer lutas econômicas e identitárias, à isso elas chegaram com suas próprias forças, em alguns momentos mais noutros menos, pois a luta de classes não é estática, avança e retrocede de tempos em tempos, e é preciso que os comunistas estejam prontos pra intervir nessas lutas não apenas apoiando e incentivando a mobilização, mas introduzindo um programa socialista como norteador da superação do capitalismo.

A teoria da revolução permanente, que é oportunamente “esquecida” pelo autor ao formular seu artigo, já deu conta de explicar e provar (principalmente a partir do exemplo russo e chinês) que mesmo as demandas democráticas burguesas mais elementares não serão conquistadas nos marcos do capitalismo, e que é preciso estabelecer um elo entre a luta pelas questões democráticas com a luta pelo socialismo, como aprofundaremos mais à frente.

Como entendemos o problema e qual a saída?

Para colocar as coisas de “cabeça pra cima” e organizar um debate sério sobre a tarefa dos revolucionários no nosso período é preciso partir de uma análise dialética e marxista da questão, não oportunista e engessada.

O primeiro passo é dizer aquilo que não foi dito, portanto, resgatar Trotsky da maneira correta, com a hierarquia que ele estabeleceu, vejamos:

“A premissa econômica da revolução proletária há tempos já atingiu o ponto máximo que pode ser alcançado sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos já não conduzem mais a um aumento da riqueza material. As crises conjunturais, nas condições da crise social de todo o sistema capitalista, descarregam sobre as massas privações e sofrimentos cada vez mais pesados. (…) Os falatórios de toda espécie, segundo os quais as condições históricas ainda “não estariam maduras” para o socialismo, representam apenas um produto da ignorância ou de um engano consciente. As premissas objetivas da revolução proletária não apenas amadureceram, como já começaram a apodrecer. (…)

A orientação das massas se determina, por um lado, pelas condições objetivas do capitalismo em putrefação; por outro, pela política traidora das velhas organizações operárias. Desses dois fatores, sem dúvida, o primeiro é decisivo: as leis da história são mais fortes que os aparelhos burocráticos. Por mais diversos que sejam os métodos dos sociais-traidores (da legislação de Léon Blum às falsificações judiciárias de Stalin), jamais conseguirão quebrar a vontade revolucionária do proletariado. Cada vez mais, seus esforços desesperados de deter a roda da história mostrarão às massas que a crise da direção do proletariado, que se transformou na crise da civilização humana, só pode ser resolvida pela IV Internacional”. (Programa de Transição, Trotsky)

Para Trotsky, portanto, as condições objetivas para a revolução socialista, que caracteriza o fator decisivo para a orientação das massas, está dado pelo capitalismo em putrefação. Isso era assim em 1938 e segue sendo assim nos dias de hoje.

O segundo fator, ou seja, o fator subjetivo, estaria relacionado à política traidora das velhas direções operárias. Como elencamos anteriormente, acreditamos que esse fator não só se mantém como se aprofundou, levando as massas proletárias a uma situação de desorganização ainda mais profunda que naquele tempo.

É verdade que naquele tempo as massas estavam em maior movimento, mas isso não significa dizer que era assim em todos os países e que isso ocorria de maneira linear, como não é correto dizer que não há processos de lutas importantes no nosso período. A última situação explosiva se deu há pouco mais de 10 anos, como pudemos observar com a Primavera Árabe, especialmente no Egito, com o movimento dos Indignados, na Espanha, Occupy Wall Street nos EUA, além de fortes mobilizações observados no Chile, Brasil e Turquia. Se no momento dessas explosões tivéssemos direções revolucionárias preparadas para intervir com um programa socialista e revolucionário não poderíamos ter avançado para situações pré-revolucionárias?

Não havia uma situação de “quase tomada do poder” no mundo inteiro em 1938, e também não há uma situação de terra arrasada na atualidade, é preciso designar o peso e a medida correta às coisas como elas realmente são se pretendemos avançar na elaboração de uma política verdadeiramente revolucionária.

Claro que não podemos sair chamando a palavra de ordem de “todo poder aos sovietes” para amanhã, porque as condições subjetivas retrocederam muito nos últimos anos e precisamos aprender a lidar com essa nova situação, mas isso não significa que não podemos usar adaptações do Programa de Transição à luz dos ensinamentos da Teoria da Revolução Permanente.

Por exemplo, seria um grande absurdo “anacrônico” propor a palavra de ordem de “escala móvel de salário e horas de trabalho” para combater o desemprego e a inflação galopante na Argentina atualmente? Nos parece muito mais absurda a ideia de Estado mínimo e redução do número de refeições que, não obstante, levou Milei à presidência nas últimas eleições!

O regime democrático burguês passa por um momento de profunda crise, com frações burguesas abertamente em disputa, crise generalizada de suas das instituições, incapacidade visível de oferecer saídas concretas à classe trabalhadora, e na ausência de uma direção proletária (crise de direção) que apresente uma alternativa ao capitalismo decadente, o proletariado e a pequena burguesia (em frangalhos) buscam saídas desesperadas, muitas vezes iludidas pelas propostas “milagrosas” da extrema direita.

Por que a esquerda tem medo de apresentar um programa socialista como alternativa à crise e a extrema direita não parece nem um pouco preocupada em apresentar seu programa reacionário? Aqui não se expressa a face mais preocupante do aprofundamento da crise de direção, afinal?

Voltemos a Trótsky:

“O que distingue a época atual não é o fato de ela liberar o partido revolucionário do trabalho cotidiano, mas o de permitir conduzir essa luta em união indissolúvel com as tarefas da revolução. A IV Internacional não rejeita as reivindicações do velho programa mínimo, na medida em que elas conservaram, ao menos em parte, sua força vital. Defende incansavelmente os direitos democráticos dos operários e suas conquistas sociais, mas conduz esse trabalho para uma perspectiva correta, real, ou seja, revolucionária. À medida que as velhas reivindicações parciais “mínimas” das massas se chocam com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isso ocorre a cada passo –, a IV Internacional faz avançar um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido consiste em dirigir-se cada vez mais aberta e resolutamente contra as próprias bases do regime burguês. O velho “programa mínimo” é constantemente ultrapassado pelo programa de transição, cuja tarefa consiste numa mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária”

No trecho acima, fica evidente que o fator decisivo para a aplicação do Programa de Transição são as condições objetivas das “tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente”. E ainda que tenhamos que lidar com as reivindicações do velho programa mínimo, porque há uma contradição entre a maturidade das condições objetivas da revolução e a imaturidade do proletariado e de sua vanguarda, devemos fazê-lo sempre no sentido de “ajudar as massas no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Essa ponte deve conter em si um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciências de amplas camadas da classe trabalhadora e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado.” (Trotsky, PROGRAMA DE TRANSIÇÃO)

Veja, mesmo em 1938 (período pré-revolucionário) a consciência das amplas camadas da classe trabalhadora ainda estava ligada ao programa mínimo (como não poderia deixar de ser, no capitalismo) e era tarefa dos revolucionários estabelecer a ponte entre essas reivindicações e a necessidade da revolução socialista como única forma de alcançar as demandas mais essenciais.

A contradição fundamental observada por Trotsky estabeleceu-se entre dois fatores: a “maturidade das condições objetivas da revolução e a imaturidade do proletariado e sua vanguarda”, e isso ainda é assim nos dias de hoje, estejam ou não as massas em movimento (pois isso é fluído e muda de tempos em tempos), estejamos ou não numa situação pré-revolucionária.

É essa a grande contradição que precisa ser resolvida, e a isso Trotsky deu o nome de “crise de direção”.

Se reivindicamos o que nos diz a Teoria da revolução Permanente, na etapa imperialista só podemos atingir as “tarefas burguesas imediatas” se não nos detivermos nelas, mas avançarmos para levar o proletariado ao poder. Isso nada tem a ver com a disposição imediata das massas para lutar, como tenta estabelecer Canary. A disposição das massas pra lutar é dinâmica, avança e retrocede, e será assim enquanto houver capitalismo.

Ocorre que, tal como os mencheviques fizeram naquele tempo, reformistas partem da abstração que nossa luta atual é uma luta essencialmente burguesa, o que leva à ideia de adaptação de toda a tática do proletariado à conduta da burguesia liberal.

Não à toa vemos liberais convictos como Reinaldo Azevedo (pra apresentar um exemplo prático da atualidade brasileira) defendendo as mesmíssimas reivindicações que correntes que se auto intitulam revolucionárias: taxação das grandes fortunas, reivindicações de pautas estritamente identitárias, necessidade permanente de frentes e alianças com setores burgueses progressistas, etc.

Os comunistas não são comunistas só quando as massas lutam ardentemente ou só em períodos pré-revolucionários. O programa socialista é válido e atual principalmente porque há elementos objetivos na realidade (pra lá de maduros!) que apontam que esta é a única saída pra superação do capitalismo e até mesmo pra resolução dos problemas democráticos mais elementares da classe trabalhadora. É preciso saber ler as situações, verificar o animo da classe e a correlação de forças ao propor determinadas palavras de ordem, mas nunca rebaixar o programa ao nível de consciência médio, pois isso só serve à estratégia de reformar o capitalismo, que até liberais burgueses defendem, em última instância.

Marx, Engels, Trotsky, Lênin, não viveram todo o período de suas vidas em períodos pré-revolucionários permanentes e nem por isso abandonaram o programa socialista e a luta constante contra os reformistas. Não se trata de encarar todas as situações igualmente nem de transpor mecanicamente as palavras de ordem de uma situação à outra, mas apresentar sempre da melhor maneira possível um programa superior, que conduza à elevação do nível de consciência, apresente uma alternativa de gerir a sociedade, avance na disputa da ideologia comunista contra a burguesa dominante.

Por fim, nos parece oportuno resgatar uma reflexão interessante que fez Leonardo Padura, escritor e pesquisador cubano, a respeito da relevância da obra de Trotsky na atualidade. Diante de uma série de pedidos de entrevistas, convites e solicitações de artigos que lhe fizeram em 2020 (por ocasião do aniversário de 80 anos da morte do velho revolucionário) ele escreve:

Que curiosidade histórica, que reivindicação do presente poderiam ter provocado aquele interesse renovado e intenso pela figura de Trótsky quase um século depois da sua morte? Em um mundo globalizado, digitalizado, polarizado da pior maneira, dominado pelo liberalismo desenfreado e triunfante e, para completar, assolado por uma pandemia de proporções bíblicas que colocou (e ainda coloca) em xeque o destino da humanidade, qual seria a explicação para a expectativa de resgatar o destino de um revolucionário soviético do século passado que, certamente, foi o perdedor em uma disputa política e pessoal que se pretendeu encerrar com seu assassinato? O que poderiam nos dizer a esta altura – nestas coordenadas históricas e sociais – o crime de 1940 e a figura da vítima de um furioso golpe de picareta ordenado pelo Kremlin soviético? Trotsky e seu pensamento ainda teriam o vigor, a capacidade de transmitir algo de útil para nosso turbulento presente, três décadas depois do fim da União Soviética que ele ajudou a fundar?

A constatação de que determinadas teorias, a política e a arte desses tempos ainda se sentem convocadas pelas peripécias vitais e pelos aportes filosóficos e políticos de Liev Davídovitch Trótsky pode ter um primeiro corolário (e muitos outros). E essa primeira elucidação talvez afirme (ao menos penso eu) que, derrotado na arena política, o exilado tornou-se um vencedor maltratado na disputa histórica projetada para o futuro; desta última, ao contrário de seus assassinos, ele saiu como um símbolo de resistência, coerência e, inclusive, para seus seguidores, como a encarnação de uma realização possível da utopia.”

O trecho, extraído da apresentação do livro “Fuga da Sibéria”, carrega uma compreensão lúcida da relevância de Trótsky cada vez mais firmemente renegada pelas organizações políticas de esquerda, que insistem em chamar de “ultrapassada” – em cada oportunidade que têm – toda a teoria marxista, brilhantemente aperfeiçoada e salvaguardada por Lênin e Tróstky, principalmente, no século passado.

Enquanto essas organizações se esforçam em construir tentativas de “teses teóricas” que fundamentem suas capitulações e adaptações “envergonhadas” – já há muito sem vergonha, diga-se de passagem – nós fazemos justamente o inverso: do nosso ponto de vista, às coordenadas históricas e sociais em que vivemos falta precisamente uma renovação firme e constante do espírito revolucionário, movido e alimentado pela ciência do materialismo histórico dialético, e essa é a causa central que moveu a elaboração desse artigo.