Crônica | A rotina de violência dos trabalhadores no RJ
Quinta-feira, 24/10. Um dia como outro qualquer, acordei, tomei o café às pressas para não me atrasar. Às 6:50 no ponto de ônibus, na esquina da minha rua, trabalhadores, estudantes e seus responsáveis reclamavam da demora do ônibus. Alguns diziam que a Avenida Brasil estava engarrafada. O comentário das pessoas me fez optar por pegar outro ônibus, diferente do habitual que me deixaria próximo a estação do BRT. Durante o trajeto notei que os pontos de ônibus estavam cheios. A maioria das pessoas aguardavam as linhas que conectam o bairro à Avenida Brasil. Soltei na Praça 2. A rua que leva à estação do BRT estava lotada. Muita gente desembarcando dos coletivos e seguindo em direção a nova estação de BRT em Vigário Geral. Notei que o fluxo de pessoas estava bastante atípico para aquele horário mas continuei seguindo meu caminho. Logo após subir a primeira rampa que dá acesso à estação, olhei ao longe e vi que estava tudo parado em ambas as direções da Avenida Brasil. Fiquei um tempo parada na rampa pensando sobre a possibilidade de rotas alternativas para chegar ao trabalho, mas desisti ao lembrar que eu provavelmente levaria mais de uma hora por outras vias e teria que pegar mais dois ônibus para concluir o trajeto. Decidi aguardar dentro da estação, afinal, quando o engarrafamento acabasse eu já estaria pronta para embarcar e seguir meu caminho.
A essa altura, escuto um burburinho. As pessoas comentam que o fechamento é em razão de uma operação policial na Cidade Alta. Recebo com estranhamento a notícia, mas sigo tentando saber mais informações nas redes sociais. Naquele dia optei por ficar na plataforma dos veículos rápidos, na tentativa de ganhar tempo quando a interdição da via acabasse. As filas estavam enormes. A plataforma estava apinhada de gente. De repente, as pessoas que estavam do lado de fora da estação começaram a correr em direção contrária à via e tiros, muitos tiros puderam ser ouvidos. Eram muitos tiros. As pessoas na estação corriam apavoradas. O som das rajadas era alto e difuso. Não sabíamos de que direção estavam vindo. Só sabíamos que estava perto. Como num estouro de manada, corríamos. Alguns se jogavam no chão, outros, como eu, se espremiam agachados nas laterais da plataforma, numa tentativa insana de se proteger. Foi a pior sensação da minha vida. Mesmo trabalhando na Maré há oito anos, eu não me acostumo a essa sensação. A sensação de se sentir alvo. Fora da estação, a população se jogava embaixo dos carros, a mureta da avenida se transformou em escudo. Cada um se protegeu como deu. Os tiros continuavam, em um ato desesperado corremos para outra plataforma, mais longe de onde parecia que vinha os tiros. Na outra plataforma, as informações chegavam desencontradas e a todo instante. Relatos de pausa no confronto e de que o BRT voltaria a funcionar eram entrecortados por homens que abordavam o motorista do carro parado na estação e impediram-no de avançar um pouco além da estação, relatando a probabilidade de vandalismo à frota caso o motorista insistisse em prosseguir. Uma mulher ficou presa do lado de fora da estação.
A vida do trabalhador carioca já começa no risco de morte desde as primeiras horas do dia.
O que eu vivi nesta quinta feira faz parte da rotina de muitos cariocas que acordam cedo para trabalhar e tem sua rotina atravessada por um cenário de guerra. Eu cheguei viva ao trabalho nesse dia, mas essa não foi a sorte de Paulo Roberto de Souza, Renato Oliveira Alves dos Reis, Genilson Eustáquio Ribeiro, três trabalhadores que saíram de casa para trabalhar e não voltaram mais para suas famílias.
Que Estado é esse que normaliza a morte de trabalhadores? Que em nome de uma falsa guerra às drogas criminaliza, fere e mata corpos que tem cor e tem classe. Na última quinta morreram 3 dos cinco trabalhadores feridos no confronto entre polícia e bandidos. Hoje são página virada no folhetim. E o Estado não se responsabiliza por essas mortes. O Estado utiliza-se da fachada do combate às drogas para sustentar a violência das operações como legítima, produzindo na população aterrorizada outras formas de violência. As operações policiais não são violentas apenas porque ferem e tiram vidas, mas principalmente porque negam a indivíduos o acesso a meios institucionais, o ir e vir, a usufruir da cidade e dos equipamentos públicos, principalmente nega o direito a vida plena. Não é o Estado que deve garantir nosso direito à vida? Essas vidas perdidas não são efeito colateral de uma guerra às drogas, são o objetivo.
Por isso eu sou contra as operações policiais, porque matam, ferem, criminalizam uma parcela da população preta, pobre e periférica. Por que às operações policiais ocorrem prioritariamente em dias, horários que o trabalhador, estudante, filho da classe trabalhadora está indo para o seu trabalho ou estudo? Só nesse ano, na Maré, minha escola e tantas outras ficaram mais de 50 dias fechadas, sem contar os dias em que fomos surpreendidos com tiros estando dentro da escola. Um quarto do ano letivo foi negado aos filhos e filhas dos trabalhadores da Maré. Segundo a página Fogo Cruzado, a política de operações nas favelas teve menos de 1,5% de “sucesso” no último ano, ou seja, não alcançou o objetivo oficial que seria apreensão de drogas e armas e/ ou a coibição desse tipo de comércio no Rio de janeiro. Mas continua sendo aplicada pelo Governador Claudio Castro. A insistência nessa política, que é de responsabilidade do governo do Estado, mas tem o aval do Governo Federal e a conivência da prefeitura, não é acaso, isso é uma política de genocídio de uma parte da população.