Criança não é mãe. Estuprador não é pai. Pela legalização do aborto, seguro e gratuito sem restrições
Vinte e três segundos… Esse foi o tempo que a Câmara de Deputados levou para aprovar, sem qualquer tipo de discussão, o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, do Deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), que equipara a interrupção da gravidez a partir de 22 semanas ao crime homicídio e eleva para até 20 anos, a pena de prisão para gestantes que correm risco de morte, grávidas de fetos inviáveis ou que foram vítimas de estupro que insistirem em interromper a gravidez. Lembrando que a pena máxima no Brasil para quem comete o crime de estupro é de 10 anos. Um absurdo!
Não se trata somente de um retrocesso na legislação, mas da total conivência com a situação de violência que inúmeras meninas e mulheres brasileiras são submetidas quotidianamente. O Brasil vive uma explosão de casos de estupros e de estupros de vulneráveis, aquele que é praticado contra menores de 14 anos, deficientes mentais e pessoas sem condições de consentir.
Ao todo, em 2022, foram 75 mil registos desse tipo violência. No primeiro semestre de 2023, 34 mil casos foram registrados, um aumento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano anterior e somente entre janeiro e maio deste ano, o Disque 100 recebeu 7,9 mil denúncias de estupro de vulneráveis.
E isso é apenas a ponta do iceberg. Estima-se que menos de 10% dos casos de estupros são relatados. A maioria absoluta, 6 em cada 10 vítimas, são meninas de até 13 anos de idade, negras e pobres que tem como agressores, familiares – pai, avô, irmão, tio, primo, padrasto ou pessoas do convívio social – vizinhos, amigos, colegas de escola, ou conhecidos da igreja, pastores, padres, etc.
Em decorrência disso, em média 15 mil meninas entre 10 e 14 anos vítimas de violência sexual dão à luz todos os anos no país. Por hora 44 bebês nascem no Brasil de meninas vítimas de estupro. Em 2021 foram registradas 1.556 internações por abortos na faixa dos 10 aos 14 anos, mais de 4 por dia. Apenas 131 delas (8%) ocorreram por causas autorizadas. Em todos esses casos a gravidez é resultado de estupro. 94% dos abortos legais são resultados de estupro.
Punir o estuprador. Proteger a mulher
Seria de se esperar que diante dessa tragédia social, o parlamento estivesse discutindo como enfrentar a violência e a cultura do estupro e como aprimorar os mecanismos de proteção e assistência às vítimas, incluindo os serviços de aborto legal.
No entanto, o que assistimos é a extrema direita bolsonarista e setores religiosos ultraconservadores, católicos e evangélicos, na maioria homens brancos e heterossexuais, tentando aprovar, em nome da religião e da família, um projeto de lei que institucionaliza a maternidade forçada às vítimas de estupro. E o que é pior, de forma apressada, sem passar pelo debate público.
A pressa desmedida da burguesia brasileira e seus setores reacionários no Congresso, a começar pelo presidente da Câmara, o Deputado Arthur Lira (PP/AL), em aprovar esse projeto de lei é só mais uma demonstração de seu desprezo pela vida das meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestar da classe trabalhadora, visto que para as mulheres burguesas que podem pagar pela segurança de clínicas particulares que realizam o procedimento de maneira discreta e sem chamar a atenção das autoridades ou ainda viajar a qualquer momento para o exterior e realizar o aborto em um dos países onde a prática é legalizada, nada muda.
Liberar a bancada é fazer o jogo da ultradireita
Após a enorme revolta que a aceleração da tramitação do projeto na Câmara causou na sociedade, inclusive com manifestações de rua por todo o país, alentados pela indignação nas redes sociais e pronunciamentos públicos de artistas e influenciadores, o presidente Lula se apressou em declarar que é contra o PL e que a proposta é uma insanidade.
Mas o que ele não disse, é que o governo e o PT não só optaram por lavar as mãos frente a qualquer esforço para barrar o avanço do PL do estupro na Câmara, como ainda ajudaram a costurar um acordão para que a votação ocorresse de forma simbólica, ou seja, sem registrar o nome dos parlamentares no painel, em troca do apoio de Arthur Lira e do Centrão para a aprovação das medidas econômicas encaminhadas pelo governo ao Congresso.
O Deputado José Guimarães (PT/CE), que é líder do governo na Câmara, chegou a declarar que a matéria não é de interesse do governo e que a prioridade são as pautas econômicas, liberando a bancada do partido e da base aliada para votar a favor do regime de urgência.
Ou seja, mais uma vez vemos os direitos das mulheres utilizados pelos governos do PT, como moeda de troca pelo apoio da bancada conservadora no Congresso, para aprovar medidas que além do mais são de interesse da burguesia e ainda atacam conquistas sociais, como a aprovação do arcabouço fiscal, por exemplo.
Em 13 anos à frente da Presidência da República o PT não foi capaz de legalizar o aborto. Na verdade não foi capaz sequer de pautar de forma séria o tema na sociedade. Novamente Lula faz o jogo da ultradireita e seus setores mais reacionários, negociando com Lira a votação de urgência do PL e liberando a base para votar como quisessem. Essa atitude só ajuda a fortalecer a ofensiva ideológica moralista e hipócrita que naturaliza a opressão às mulheres e o controle sobre nossos corpos.
Diante da reação negativa, o PT agora tenta negociar antes da votação em plenário, uma mudança cosmética no projeto de lei, de modo a proibir uma técnica específica utilizada no aborto de gestações avanças, denominada assistolia fetal, que é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e utilizado no Brasil em casos de aborto legal.
Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal suspendeu há poucos dias uma resolução do Conselho Federal de Medicina cujo conteúdo é o mesmo que o PT negocia, impedir que médicos que realizam o aborto legal recorram à técnica de assistolia fetal dificultando assim a realização do aborto de gestações avançadas o que significa um passo a mais em direção ao criminalização total do aborto. Uma vergonha!
Já os partidos que supostamente estão contra o PL e, inclusive, impulsionando a luta para derrubar esse projeto asqueroso, como o PSOL e PcdoB, ao manterem-se como base de Lula, ainda que com críticas ou alentando a ilusão na frente ampla para derrotar a ultradireita, acabam legitimando atitudes como essa, e contribuindo para a confusão e inclusive para que parte da classe trabalhadora descontente com o governo se transforme em base de apoio do bolsonarismo, quando o que deveriam fazer é fortalecer a oposição de esquerda ao governo, defendendo a independência de classe e a mobilização como saídas.
Fora Lira
Já Arthur Lira também recuou diante da pressão das ruas, declarando recentemente que não pretende colocar o projeto para votação no primeiro semestre, e que criará uma comissão para debater o tema com a sociedade. Também sinalizou que pretende escolher uma relatoria moderada para a matéria, sendo o nome mais cotado nesse momento, o da Deputada evangélica Benedita da Silva do PT/RJ.
Cabe nos perguntar o seguinte: se o objetivo de Arthur Lira nunca foi o de atropelar o regimento do Congresso, mas de colocar a proposta em debate com a sociedade, antes de qualquer decisão dos parlamentares, então por que não deixou o PL tramitar passando pelas comissões temáticas como é de praxe? Porque não chama, então, a sociedade a se posicionar, por meio de audiências públicas, conferências e debates em todos os espaços, dando a oportunidade e amplo direito de defesa com igual tempo de se manifestar de setores contra e a favor do PL? Por que aprovar o regime de urgência para a votação da proposta numa votação relâmpago, sem anunciar o teor da matéria que estava sendo votado e sem a obrigatoriedade de registrar no painel o voto dos deputados e deputadas?
Isso demonstra que essa declaração não passa de um jogo de cena para acalmar os ânimo e deixar a poeira baixar. Não podemos ter nenhuma confiança nem em Arthur Lira e nem no Congresso, pois da mesma forma como o regime de urgência foi votado de maneira atropelada e sem discussão, nada impede que se faça o mesmo com o próprio PL se a pressão das ruas retroceder. Por isso é preciso organizar a resistência e intensificar as mobilizações para enterrar de vez esse PL do estupro, pois só a mobilização das mulheres aliada a classe trabalhadora de conjunto pode se contrapor a essa ataque e avançar na luta pela legalização do aborto sem restrições.
Lula e o PT devem se consequentes
O governo Lula e o PT se querem ser mesmo consequentes com a luta em defesa da vida e dos direito das mulheres e contra a criminalização das vítimas de estupro, devem parar imediatamente qualquer tipo de negociação de mudanças no projeto e propor seu arquivamento já. Devem também reforçar a rede de assistência ao aborto legal, além de impulsionar um amplo debate em favor da legalização do aborto, enviando ao Congresso um projeto de lei que garanta o aborto seguro e gratuito sem restrições para todas as mulheres que assim o desejarem. Caso contrário suas declarações não passarão de populismo.