Internacional

Copa no Qatar: A festa começou, mas mulheres e LGBTIs não são bem-vindos

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

25 de novembro de 2022
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“Mulheres, vida e liberdade”. Torcedores do Irã fazem protesto contra o governo iraniano | Foto: Reprodução

No artigo anterior, falamos sobre os protestos e denúncias que cercaram a escolha do Qatar, em 2010, como sede da Copa e, particularmente, sobre a superexploração que levou à morte de quase sete mil trabalhadores migrantes desde então. Neste, o tema será a deplorável situação de mulheres e LGBTIs no país, e como a Federação Internacional de Futebol, a Fifa, tem sido cúmplice ativo do emirado e, portanto, conivente com a opressão.

| Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação

Na segunda-feira, dia 21, apesar de chamarem a atenção, muita gente pode não ter entendido os gestos que marcaram o início do jogo entre Inglaterra e Irã. De um lado, os ingleses se ajoelharam e o capitão da equipe, Henry Kane, estendeu o braço esquerdo. Do outro, os iranianos ficaram completamente calados enquanto se ouvia o hino nacional de seu país.

Mas, ambas as atitudes, apesar de silenciosas (refletindo a censura que ronda a Copa), ecoaram fortemente um protesto mais do que justo e foram estrondosos tapas nas caras do governo do Qatar (como também do nefasto regime de Ali Khamenei, “Líder Supremo” iraniano) e da própria Fifa, em relação a questões que, queiram eles ou não, estão no centro desta edição do torneio: deplorável situação a que mulheres, lésbicas, bissexuais, travestis, pessoas transgêneras e intersexos (LGBTIs) enfrentam no país que sedia a Copa.

Protestos importantes diante de uma situação insustentável

O gesto dos ingleses foi a forma encontrada para “marcar posição” depois que a Fifa proibiu, de forma covarde e na última hora, que o capitão do time usasse uma braçadeira em apoio à diversidade, principalmente como protesto à criminalização de LGBTIs no Qatar.

Kane estendeu o braço para dar visibilidade ao fato de que no lugar da braçadeira original, que seria usada por ele e outros capitães de vários times europeus, com a inscrição “One Love” (“Um Amor”) contra um fundo colorido que lembra o arco-íris do movimento LGBTI, portava outra, em branco e preto, com a inscrição “Não há discriminação”; já que o uso da original resultaria em um cartão amarelo, mesmo antes do início da partida.

O silêncio dos iranianos fez coro com milhares de torcedores e torcedoras, que vaiaram o hino, levantando cartazes e exibindo camisetas com a palavra de ordem “Mulheres, vida e liberdade”, símbolo dos protestos que explodiram desde que a jovem Mahsa Amini foi brutalmente assassinada pela “polícia moral” do país, no dia 16 de setembro, e já resultaram na morte de mais de 320 pessoas.

Nas partidas seguintes, os capitães Virgil Van Dijk (da Holanda, contra o Senegal) e Gareth Bale (do País de Gales, contra os Estados Unidos) usaram braçadeiras semelhantes à de Kane. Fora do campo, Alex Scott, ex-atleta da seleção feminina de futebol da Inglaterra e atual comentarista de futebol, não deixou por menos e cobriu a partida usando a braçadeira original.

Diante dos protestos, Gianni Infantino, o energúmeno presidente da Fifa, continuou servindo de capacho do governo qatari e cúmplice da opressão. “Tenho falado sobre esse assunto com a mais alta liderança do país. Eles confirmaram e posso confirmar que todos são bem-vindos. Se alguém disser o contrário, bem, não é a opinião do país e certamente não é a opinião da FIFA”, disse Infantino.

Uma mentira deslavada que, inclusive, caiu por terra logo em seguida, quando o jornalista norte-americano Grant Wahl, da CBS, foi barrado por seguranças na entrada do jogo entre seu país e o País de Gales (por usar uma camiseta com uma bola nas cores do arco-íris), ficou detido por meia hora, teve seu celular retirado à força de suas mãos e, ainda, foi obrigado a ouvir a “desculpa” oficial para a censura e opressão. “Um dos seguranças me disse que eles estavam apenas tentando me proteger dos torcedores que poderiam me machucar por usar a camisa”, disse ele depois.

Contudo, o que aconteceu com Wahl e foi visto durante os jogos nem sequer pode ser comparado à situação vivenciada pelas mulheres e LGBTIs do Qatar. Um nível de opressão que, como destacamos no artigo anterior, não pode ser vinculado ao islamismo, como, inclusive, parte da imprensa tem feito; mas, sim, ao caráter ditatorial, fundamentalista e dinástico do emirado qatari, que se utiliza de sua visão distorcida da religião para oprimir seu povo de forma brutal.

Algo que, inclusive, é sabido há muito, o que só amplifica a imperdoável responsabilidade da Fifa em transformar um evento que mobiliza a paixão de milhões, inclusive mulheres e LGBTIs, na “Copa da Opressão”.

Torcedores do Irã com cartazes a favor dos direitos das mulheres | Foto: Reprodução

Quando as mulheres não têm voz e são culpadas pelos crimes dos opressores

Segundo relatório do “Human Rights Watch” (HRW, ou “Observatório de Direitos Humanos”), divulgado no ano passado, as mulheres (principalmente as solteiras abaixo de 25 anos, mas também as casadas) vivem sob um regime rígido e “legal” de tutela masculina. É comum, por exemplo, a exigência de um “tutor” para conseguir permissão para disputar uma vaga de trabalho, estudar, viajar para o exterior ou, ainda, se casar.

Além disso, em caso de separação (o que é raro), os homens têm preferência em relação à guarda dos filhos e, em casamentos com estrangeiros, os filhos perdem a cidadania. Além disso, em vários casos, os tribunais de família, com base na forma como a família Al Thani interpreta a “sharia”, consideram que o testemunho de uma mulher vale metade do de um homem, ou nem sequer é aceito.

Como parte de sua propaganda visando sediar a Copa, em 2009, o Qatar tornou-se membro da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, no entanto, de forma descarada, mas oficial, simplesmente se recusou a adotar o “coração” da resolução, sintetizado no artigo que defende a “igualdade de gênero nas leis e políticas internas, igualdade em relação à nacionalidade, igualdade perante a lei, liberdade de circulação e de residência e domicílio e igualdade no casamento e na vida familiar”.

Manobra que dispensa comentários, até mesmo porque sabemos que nem mesmo os países que assinam a convenção sem fazer restrições, de fato, se comprometem com tais coisas. Contudo, no caso do Qatar é de um descaramento odioso, já que o grau da opressão machista, recentemente, teve como um de seus casos mais emblemáticos uma mulher que estava no país trabalhando para o Comitê Organizador da Copa.

Em junho de 2021, depois de um ano e meio de trabalho no país, a mexicana Paola Schietekat foi agredida em seu apartamento por um conhecido. Mesmo aconselhada a não fazer alarde, Paola foi à delegacia e, aí, abriram-se as portas de um verdadeiro inferno: de vítima, passou à ré, num processo que acabou em sua condenação a 100 chicotadas e mais sete anos de prisão.

Felizmente, apesar de ter passado por um verdadeiro calvário, uma forte campanha internacional permitiu que Paola deixasse o país e denunciasse o que aconteceu. Evidentemente, o agressor não recebeu punição alguma e sequer teve sua identidade revelada.

O caso de Paola é uma exceção em relação a tantas outras mulheres que passam exatamente pela mesma situação, já que sua história é exemplar de como, em casos de violência sexual e estupros, mulheres podem ser condenadas pura e simplesmente por não conseguirem “provar sua virgindade”, já que o Código Penal pune qualquer relação sexual por fora do casamento.

O nível da opressão machista é tamanho que até mesmo gente literalmente apaixonada pelo futebol fez campanha de boicote aos jogos da Copa. Esta foi a postura, por exemplo, da jogadora do Arsenal e capitã da seleção feminina da Inglaterra, Leah Williamson. “É uma pena que estejamos nos aproximando daquilo que deveria ser o maior espetáculo na Terra com esta enorme sombra pairando sobre nós. E nem sei como chegamos até aqui, pra ser sincera. Estou desapontada e acho que é uma vergonha, pois cresci vendo a Copa do Mundo como uma das coisas que juntam todas as pessoas”, declarou a jogadora em entrevista a BBC, na sexta, dia 18.

Uma decepção ainda mais profunda e praticamente incontornável para Leah, já que ela é uma mulher assumidamente lésbica. E, portanto, uma perigosa “criminosa” aos olhos do governo do Qatar.

Protesto em Londres. Nos cartazes: “Qatar detém, prende e submete LGBTs à conversão” | Foto: Getty Images

LGBTIs: crime, castigo e completa exclusão da Copa

Diga-se o que quiser na imprensa e nos discursos oficiais, esta é uma Copa onde há um grupo que, inequivocadamente, não é bem-vindo: lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexos (LGBTIs) ou quaisquer outras orientações sexuais e identidades de gênero que não seja a heterossexualidade e a cisgeneridade (identificação com o sexo biológico do nascimento).

No Qatar, ser LGBTI+ e muçulmano significa estar suscetível à pena de morte. Apesar de não haver registros de aplicação da pena, os casos de chibatadas mencionados acima ou a possibilidade de três a 10 anos de prisão são extremamente concretos e suficientes para manter a população LGBTI local em constante estado de terror. Quando, não, buscar o exílio.

A realidade nua e crua foi registrada pelo HRW em uma reportagem publicada no dia 24 de outubro, na qual a organização relatou as histórias de seis LGBTIs (quatro mulheres transexuais, uma bisexual e um homem gay) e todos relataram terem sido detidos entre 2019 e 2022 e submetidos a abusos verbais e físicos, incluindo tapas, chutes e socos que provocaram sangramentos.

“Todos os seis disseram que a polícia os forçou a assinar promessas indicando que iriam ´cessar a atividade imoral´”, destacou a organização, acrescentando que as mulheres transexuais foram obrigadas a participar de sessões de “terapia de conversão” (a famigerada “cura gay”) em uma clínica patrocinada pelo governo.

Além disso, o relatório também informa que as LGBTIs tiveram confissões forçadas, sendo-lhes negados atendimento médico, contato com suas famílias e acesso à representação jurídica. E, ainda, foram obrigadas a desbloquear os celulares e entregarem os contatos de outras pessoas LGBTIs às autoridades do governo do Qatar. Por fim, o relatório também detectou que até mesmo referências às questões LGBTI+ presentes em jornais internacionais, como o The New York Times, que são republicados no país, sofrem censura, sendo literalmente deletados.

Apesar de relatos como estes terem pipocado constantemente na mídia nos últimos 12 anos, como parte de seu discurso de “modernização”, as autoridades do país tentaram vender a ideia de que todos e todas seriam bem-vindos.

Bem-vindos, mas deixem suas orientações sexuais e identidades de gênero em casa

Algo que, contudo, não convenceu ninguém, até mesmo porque nem eles próprios conseguem sustentar a farsa, basta lembrar que, no dia 8 de novembro, Khalid Salman, que nada mais é do que o rosto do Qatar para as nações estrangeiras, como Embaixador da Copa, declarou que a homossexualidade é um “problema mental”, numa postura que praticamente nos remete a um mundo pré-Stonewall.

Se isto fosse pouco, o pior é pensar que a declaração supostamente serviu para “amenizar” o enorme mal-estar provocado pelas falas anteriores do major-general Abdulaziz Abdullah Al Ansari, que ocupa o posto mais alto nas forças de segurança do país.

Em uma entrevista à agência de notícias Associated Press, no início do ano, por exemplo, depois de afirmar que todos os torcedores estrangeiros seriam bem-vindos, o militar “ponderou” que não seria possível garantir a segurança de LGBTIs, recomendando que, caso fossem para a Copa, deveriam evitar símbolos relacionados à comunidade, a começar pela bandeira do arco-íris. E, de quebra, praticamente garantiu que ele mesmo usaria da repressão. Tudo em nome de nossa segurança, como é típico da lógica torta dos opressores.

 “Se ele (um torcedor) levantou a bandeira do arco-íris e eu a peguei dele, não é porque eu realmente quero insultá-lo, mas para protegê-lo. Porque se não for eu, alguém ao redor dele pode atacá-lo. Não posso garantir o comportamento de todo o povo”, declarou o militar, no dia 30 de março.

Ou seja, somos todos e todas bem-vindos, contando que deixemos nossas orientações sexuais e identidades de gênero em casa ou escondidas num fundo falso da bagagem. Caso contrário, o retorno pra casa, simplesmente não está garantido.

E vale dizer que no caso de LGBTIs não houve sequer o jogo de cena feito em relação às mulheres. Em 2010, o país foi orientado a abolir os códigos penais que criminalizam os atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, os castigos corporais e a pena de morte. Todas as recomendações foram ignoradas.

Ao mesmo tempo, em 2013, o Qatar foi um dos países do Conselho de Cooperação do Golfo que defendeu a proibição de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros estrangeiros de trabalhar na região, posição na qual, oficialmente, houve um recuo, em função de uma ameaça de boicote à Copa por profissionais de várias áreas.

O resultado é que o Qatar é literalmente um campo minado para LGBTIs que, por ventura, se aventurarem a acompanhar os jogos. Exemplo disto foi constatado por uma pesquisa que jornalistas da Suécia, Dinamarca e Noruega fizeram nos 69 hotéis que foram recomendados pela Fifa, em setembro, apresentando-se como casais LGBTIs e tentando fazer reservas.

De acordo com o site “Queerty”, 33 deles, formalmente, não fizeram restrições; três se recusaram por completo e outros 20 fizeram alguma ressalva, como solicitar que os hóspedes “não se vestissem como gays” ou fizessem qualquer demonstração pública de afeto, sob risco inevitável de punição. Treze simplesmente não responderam.

Enquanto isto, apesar de não assumidos oficialmente nem pelo governo nem pelas empresas hoteleiras, há tempos circulam pelas redes imagens de “cartões” com recomendações sobre “o que não fazer” no Qatar, onde a segunda imagem, depois da proibição de bebidas alcoólicas, refere-se à homossexualidade, bem antes da profanação de locais de devoção. Enfim, uma coisa é certa: nesta Copa, LGBTIs são ainda menos bem-vindos do que foram até mesmo do que na Rússia governada pelo ditador Putin.

Os jogadores da Alemanha cobriram a boca ao posar para a foto no jogo de estreia na Copa 2022 | Foto: DFB/Divulgação

A atitude exemplar das seleções europeias diante de um estrago odioso e irreparável

Diante de tudo isto, e de forma louvável (e, ao mesmo tempo, vexatória para todos as Federações nacionais, times e jogadores que têm se fingido de mortos diante de todos estes absurdos, como o Brasil, inclusive), não surpreende que a indignação tenha ultrapassado as fronteiras da comunidade LGBTI.

O exemplo mais expressivo, o das braçadeiras mencionadas no início, teve início ainda em 2020, nos campeonatos europeus e na fase dos jogos eliminatórios da Copa, quando o capitão do time holandês começou a usar a “One Love”. É verdade que o protesto é um tanto limitado e a “mensagem” não é exatamente direta, já que parte do pressuposto de que o “amor ao futebol” deve unir todos e todas, acima das diferenças étnico-raciais, de origem, identidade de gênero, orientação sexual etc.

De qualquer forma, no Qatar, a braçadeira será usada pelos capitães da Inglaterra, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Suíça e País de Gales (onde, inclusive, o protesto foi ainda mais longe, com vários membros da equipe técnica que se recusaram a participar do torneio), o que, no mínimo, serviria como um lembrete mais evidente diante de um estrago já feito e literalmente irreparável.

Algo que já foi destacado ainda quando da escolha do Qatar como sede da Copa. Na época, por exemplo, Ed Conell, porta-voz da Rede de Apoiadores do Futebol Gay, da Inglaterra, afirmou que “é obviamente muito decepcionante ver a Fifa dando seu apoio a um país onde a homossexualidade é ilegal e onde as pessoas podem ser presas”, inclusive porque, ao endossar a postura criminosa do país, a Fifa contradiz todo e qualquer esforço que ela própria diga fazer para combater a LGBTIfobia nos campos e nos times mundo afora.

Algo inegável. E, por isso mesmo, mais que decepcionante. Inaceitável. Até mesmo porque a Fifa e gigantesca maioria de seus associados, bem como todas as estruturas, dirigentes e, também, jogadores e membros de times mundo afora têm feito pouquíssimo para reverter uma situação já intolerável. Não só contra a LGBTIfobia é verdade, pois sabemos que o racismo corre solto nos campos e fora deles. Contudo, é praticamente impossível comparar.

Exemplo disto, é o fato de que, no mundo inteiro, exista apenas um jogador de times da primeira divisão que tenha tido a coragem de assumir sua homossexualidade: o heróico Josh Cavallo, craque do Adelaide United, da Austrália, que já representou sua seleção nacional, na categoria sub-20, e se assumiu publicamente em outubro de 2021.

Cavallo, inclusive, se tornou um ícone gay, não só por sua atitude, mas também por ter se transformado em um dos principais porta-vozes das denúncias contra o Qatar e da Fifa, fazendo constantes críticas ao processo que levou à escolha do país, afirmando que isto jamais deveria ter acontecido. Algo com que concordamos plenamente.

Depois de afirmar que temeria caso fosse convocado para a Copa, Cavallo, ainda deu uma resposta categórica às provocações que recebeu, inclusive do Supremo Comitê da Copa, que se pronunciou cinicamente, dizendo que ele seria recebido de braços abertos e em segurança.

“Sei pessoalmente que, se lá for, estarei protegido porque estou aos olhos do público. Mas não é comigo que estou preocupado. Minha preocupação é com aqueles que me enviam mensagens. As pessoas que não estão aos olhos do público, que têm medo até de serem elas próprias ou andarem nas ruas”, declarou Josh a agência CNN, em 18 de outubro passado.

O fato de que ele seja o único jogador assumido em um grande time já é um contrassenso em relação a todas as conquistas (que, sabemos, já são muito parciais e limitadas) que LGBTIs já tiveram em outros setores da sociedade, ainda mais quando se sabe que o único outro jogador, do mesmo nível, que teve a mesma coragem, Justin Fashanu, e se assumiu gay quando atuava na Primeira Divisão inglesa, em 1990, se suicidou (em 1998), depois de ver sua carreira afundar, além de ser alvo de uma campanha de calúnias e ataques.

Manifestante dá “cartão vermelho” para a Fifa | Foto: Getty Images

FIFA: imbecilidade odiosa, hipocrisia e cumplicidade pra lá de ativa

A coragem de Josh Cavallo e o exemplo das seleções europeias jogam ainda mais holofotes sobre a covardia da Fifa e seus comparsas. Uma postura criminosa que, evidentemente, incentiva ainda mais as atitudes LGBTIfóbica e opressivas que já caracterizam setores das torcidas, principalmente quando elas se limitam aos muito endinheirados que têm condições de arcar com os custos de uma viagem ao Qatar.

Algo, inclusive, já presenciando, antes mesmo do início dos jogos. Na sexta, dia 18, torcedores argentinos fizeram um violento ataque racista e transfóbico contra o jogador francês Mbappé, de origem africana e “condenado” pelos torcedores por ser “suspeito” de se relacionar com a modelo Ines Rayu, uma mulher trans.

A musiquinha asquerosa e nojenta lamentavelmente precisa ser conhecida, até mesmo para que entenda a profundidade dos insultos que são parte do cotidiano de muita gente: “Escutem, corre a bola, eles jogam na França, mas são todos de Angola. Que lindo que vão correr, comem travestis como o puto do Mbappé. Sua velha (mãe) é nigeriana, seu velho (pai) é camaronês, mas no documento é naturalizado francês”

Nesta história toda, a Fifa, desde das denúncias de corrupção em 2010, não tem sido nada menos do que uma comparsa do governo do Qatar, com um grau de total subserviência e desculpas esfarrapadas. Em países, principalmente na Europa, onde a discussão ganhou alguma proporção, dirigentes da Fifa, assim como órgãos da imprensa e gente ligada aos times, chegaram a dizer que levar a Copa para o Qatar seria algo similar a entregar um Cavalo de Tróia, já que poderia “contagiar” o país com a “liberdade, igualdade e fraternidade” do mundo Ocidental.

Mesmo que os protestos mencionados no início repercutam no país, a hipótese de que isto reverta completamente o nível de opressão é tão absurda quando desconectada da realidade, enquanto o país viver sob as mãos de ferro do regime imposto pela família Al Thani. Algo, inclusive, plenamente demonstrado pela proibição do consumo de cerveja, interpretado mundo afora com uma vitória do setor mais conservador da dinastia ditatorial sobre seus membros mais “moderninhos”.

Seja como for, os dirigentes Fifa ainta têm se superado em declarações que são até mesmo difíceis de serem qualificadas, já que, de tão odiosas, podem ser vistas como expressões de um descaso descarado, de pura provocação contra os setores oprimidos ou simplesmente sintoma de idiotia.

Um dos piores exemplos foi dado, no sábado, dia 19, por Gianni Infantino, que só abriu a boca para comentar o tema das opressões na Copa depois que viu o acordo com a cervejaria literalmente escoar pelo ralo. E, com certeza, seria melhor se tivesse ficado calado, pois o que fez foi conseguir insultar e revoltar todo mundo, ao ponto de ter virado “trending topic” nas redes sociais.

“Eu me sinto qatari, árabe, africano, gay, com deficiência e eu sinto tudo isso. Quando eu vejo essas coisas e o que dizem eu lembro de histórias pessoais”, disse o imbecil, numa coletiva de imprensa. Uma fala já toda ela errada, mas que ficou ainda pior quando Infantino revelou a razão de seu “sofrimento”: ter “sofrido, quando era criança”, por ser ruivo, sardento, de origem italiana e não falar bem o alemão, quando crescia na Suíça (algo, inclusive, difícil de acreditar, até mesmo porque ele nasceu lá).

Falta de vergonha na cara à parte e independentemente do que venha ocorrer durante os jogos, o fato é a Fifa já fez estragos mais que suficientes. E, vale lembrar, o mesmo pode ser dito por todos aqueles que nem sequer tiveram a coragem de tentar se manifestar diante de tudo o que foi apresentado.

E este é o caso do Brasil, o país onde mais LGBTIs são mortos, ano após ano. Algo nada surpreendente, considerando que, além de bolsonaristas declarados, como Neymar, Dani Alves e Thiago Silva, as equipes brasileiras tem como patrocinadores figuras execráveis como Luciano Hang, da Havan.

Aliás, além da conivência cúmplice, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) também compartilha da hipocrisia da Federação Internacional. Ao mesmo tempo em que se cala diante da opressão no Qatar, a entidade decidiu fazer média com a comunidade LGBTI e patrocinar a Parada do Rio de Janeiro, no dia 27, em Copacabana. E o fato de que as entidades que organizam o evento tenho se rendido a esta farsa (como também ao patrocínio da prefeitura de Eduardo Paes), é exemplo lamentável da distorção do “espírito” combativo e militante da Revolta de Stonewall, que deu origem às paradas.

O fato é que a Copa do Qatar, pelo menos fora dos campos, é parte de um espetáculo deprimente, lamentavelmente, envolvendo um dos esportes amados do mundo. E, diga-se de passagem, nem sequer há garantias de que venhamos a saber a dimensão dos problemas, já que a censura à imprensa é outra característica do país, já tendo ocorrido episódios em que jornalistas foram proibidos de gravar vídeos nas ruas, mesmo tendo uma autorização especial da organização dos jogos.

Mais um exemplo de que a luta contra as opressões, assim como contra a exploração capitalista, tem que ser travada todos os dias e em todas as frentes: dos campos de futebol aos regimes como o do emirado qatari. Mas, não só contra ele, já que a dinastia Al Thani é apenas uma expressão ainda mais opressiva e asquerosa do sistema que a sustenta: o capitalismo. E, enquanto for assim, não haverá igualdade, liberdade ou justiça.