Cultura

Como seria “O mundo depois de nós?”

Um suspense com várias camadas interpostas que vão de questões raciais à dependência humana das tecnologias

PSTU-PA

29 de dezembro de 2023
star4.33 (9 avaliações)
O filme dirigido por Sam Esmail está disponível na Netflix | Foto: Netflix/Divulgação

Otávio Aranha, de Castanhal (PA)

Esta é uma questão que não pode ser respondida por nós, mas para o novo filme dirigido por Sam Esmail, disponível na Netflix, a pergunta nos é mostrada de modo intrigante. No original “Leave the World Behind” (em tradução literal: “Deixar o mundo para trás”) é um suspense com várias camadas interpostas que vão de questões raciais à dependência humana das tecnologias.

A trama começa com o despertar de uma parte do planeta, em particular, a residência dos Sandford, em Nova Iorque, onde, singularmente, um diálogo entre um casal tem início. Logo após Clay acordar ao sentir o lado direito da cama vazia, depara-se com Amanda transferindo roupas do armário para as malas. Durante a noite não dormida, ela decidiu tirar férias improvisadas com a família. Aproveitando-se do menor custo do período de baixa temporada, aluga uma casa de veraneio, local onde será desenvolvido os capítulos dessa trama.

“Parece que, todo dia, eu só trabalho e nem me dou conta e você vive tenso com o trabalho por causa dos cortes de orçamento”, diz, deixando Clay atordoado com as férias repentinas. O casal, junto com o Archie e Rose Sandford, seu casal de filhos, chegam até a magnífica e luxuosa casa de praia alugada pela Airbnb, quando estranhos acontecimentos têm início.

Estranhas situações

As estranhas situações são diversas e possuem vários sentidos, vão desde a opção estética de angulação de filmagem em algumas cenas, que dá a sensação de serem observados por algo ou alguém situado acima dos personagens, até a presença, cada vez maior, de cervos na parte de trás da casa de praia. Há ainda a estranheza nas próprias relações sociais: Clay, por exemplo, não entende por que Amanda decidiu viajar logo de manhã cedo; Amanda desconfia os reais motivos que levaram duas pessoas negras a bater na porta da casa tarde da noite; já o empreiteiro Danny, interpretado por Kevin Bacon, mesmo reconhecendo o seu cliente e vizinho, manda-o se afastar da varanda e o recebe com uma espingarda em mãos.

Mas se nas relações sociais esta estranheza, que até faz parte de nosso cotidiano, é sutil e “aceitável” até certo ponto, tal como Clay, que aceita viajar em família, mesmo não entendendo muito bem o ponto de vista de Amanda ou G. H. Scott, interpretado pelo premiado Mahershala Ali, que concorda em dormir no chão do quarto de hóspedes, no porão, mesmo sendo o proprietário da casa; outros acontecimentos, por sua vez, não possuem tanta sutileza, pelo contrário, a vinda de um grande cargueiro de petróleo em direção à praia surpreende os banhistas presentes, tal qual a manada de cervídeos que se deparou Ruth Scott, filha de G. H., deixando-a paralisada.

Os acontecimentos inexplicáveis da película se desenvolvem de tal modo que levam até às teorias da conspiração, enquanto interrompem as relações dos personagens e a profundidade com o qual eles são e não são mostrados. Expliquemos: a cada convívio entre eles, aprofundam-se até serem chamados ao fio condutor maior da história: um ruído, talvez provocado por algo sobrenatural? Um ataque de grupos terroristas árabes? Ou um suposto ataque cibernético feito por hackers? A causa dos acontecimentos é o que menos importa, mas a sensação, ou melhor, a reação que ele causa nos personagens e a resposta que eles (e nós) damos a uma situação de crise.

Amanda Sandford, muito bem interpretada pela talentosa Julia Roberts, desconfia abertamente que os que bateram à porta em meio a escuridão da noite, não sejam quem se dizem ser, pois eles são “estranhos”, revelando, em conversa privada com o marido, que eles não “parecem” serem os donos da casa, pois “parecem” mais como zelador e empregada, não dizendo explicitamente se referir a cor da pele deles, já que estavam bem trajados naquela noite.

Mas Clay, que aparenta ser mais compreensivo e humano do que sua desconfiada companheira, quando se perdeu na estrada, relutou em ajudar uma senhora latina, aflita por finalmente ter encontrado alguém de carro. Neste caso, a senhora não estava nem bem trajada e tão pouco se comportava com a educação mostrada pelos convidados indesejados da noite passada, não conseguindo se quer se comunicar na língua do colonizador. O professor universitário simplesmente nega o pedido desesperado de ajuda, fechando o vidro da janela de seu carro e voltando o seu olhar friamente para o horizonte, logo após um sorry!. A estranheza das situações não apenas produz a desconfiança entre os seres humanos, mas também nos mostra a nossa verdadeira “natureza”: a de que somos egoístas!

A personagem que mais traduz isso é a pequena Rose Sandford, alheia a todos os acontecimentos, ela quer apenas se conectar ao wi-fi ou, na ausência deste, a televisão para terminar de assistir a sua série preferida, o clássico sitcom “Friends”, que, curiosamente, não é contemporâneo aos seus anos de vida na Terra. Já o Archie, irmão mais velho, apesar de seu personagem ser bastante secundário de coadjuvante, é o suficiente para gravar secretamente Ruth Scott, interpretada por Myha’la, quando aparece de biquini na piscina da casa.

Humanidade desconfiada e descrente em si mesma

O diretor de “Mr. Robott” apresenta uma humanidade desconfiada e descrente em si mesma, não há “heróis” e “vilões” no mundo presente em nós, tanto que G. H. Scott oculta informações relevantes do que está ocorrendo até para sua própria filha, enquanto Ruth, mesmo sendo negra, o que lhe daria uma condição desprivilegiada em muitos contextos, não deixa de esfregar na cara dos Sandford, sua condição de classe superior, ao lembrar reiteradamente que aquela casa de veraneio, alugada pela família de classe média, pertence-lhes.

O ponto de vista do diretor é claramente expresso logo no início da película por Amanda, publicitária que tem no seu ofício a obrigação de convencer pessoas a comprar coisas que elas não necessitam, conforme sua própria interpretação, daí a necessidade de estudá-las minuciosamente, no que chega à seguinte conclusão, numa cena que chega a quebrar a quarta parede:

“Quando não consegui mais dormir hoje cedo, vim até aqui [aproximando-se da janela]. Vi o sol nascer e todas aquelas pessoas começando o dia com tanta firmeza, tanto entusiasmo. Todas se esforçando para serem bem-sucedidas. Pra fazerem algo pelo mundo. Me senti sortuda por fazer parte disso. Mas, aí, eu lembrei como o mundo é de verdade. E tive uma compreensão mais precisa.  Porra, eu odeio as pessoas”.

As pessoas mentem umas para as outras e para si mesmas, almejam um status maior, uma carreira de sucesso, mesmo que para isso fiquem o amor e o companheirismo pelo caminho, tudo para comprar o carro do ano, o smartphones da vez ou o casaco da última coleção. As pessoas matam-se de tanto trabalhar objetivando um futuro incerto e, talvez, inexistente, esquecendo-se de viver o presente.

Em outras palavras, as pessoas colocam os seus interesses individuais acima dos interesses coletivos, daí que neste futuro distópico e apocalíptico não tem nada que venha de fora para derrotar a humanidade, é só a humanidade em guerra consigo mesma. No mundo que está a nossa frente, a humanidade simplesmente não tem esperança, por isso, a protagonista é uma senhora amargurada e desconfiada de tudo e de todos.

Outro tema relevante levantado pelo filme, trata-se da relação com as tecnologias, o que está ligada a questão anterior. Não bastasse os carros com direção autônoma da Tesla, outrora símbolo do progresso e do futuro, aqui, usados metaforicamente para bloquear o alcance da civilização. De modo mais direto, Clay chega a verbalizar: “não sei fazer quase nada sem o meu celular e meu GPS. Sou um inútil!”, o que nos coloca a seguinte reflexão: quantos milhões destes inúteis devem existir no mundo hoje? Ou melhor: o quanto estamos ou somos dependentes dos nossos aparelhos celulares? Artefato que supostamente nos trouxe maior “liberdade”, permitindo-nos acessar o conhecimento universal na palma da mão, mas que nos deixa mais ignorantes a ponto de não sabermos distinguir um conhecimento ou fato verdadeiro de uma mentira? O quanto nos tornamos escravos dos celulares, gastando boa parte de nossa vida visualizando instagrans e tiktoks?

Problema na visão política

O filme é uma reflexão ao um apocalipse real e possível, no qual o contexto de um apagão tecnológico e a falta de informações sobre o que está ocorrendo levam a diversas especulações o qual os personagens e o telespectador se encontram no mesmo nível. A troca de planos vertical e horizontal numa mesma tomada, como se virássemos a tela do celular e a interposição de cenas distintas, unidas pelo clímax e trilha sonora, elevam o clima de suspense de forma bem eficaz.

Há um grande problema na visão política do filme, produzida pela produtora do ex-presidente Barack Obama, que chegou a dar algumas “contribuições” ao roteiro original. Para ele, caso o governo (leia-se Estado) caia, no caso, dos Estados Unidos, pelas mãos dos incontáveis inimigos que fez pelo mundo, a sociedade norte-americana sucumbiria ao caos e a própria sorte. Daí a necessidade de um “comitê do mal” para evitar coisas do tipo.

Contudo, no mundo real, apesar deste “comitê” existir, uma parcela importante do mundo, como na Palestina e na Ucrânia atuais, por exemplo, o caos e a destruição já existem, mas diferente do modo de vida individual e egoísta do norte-americano médio, não serão bunkers de “babacas ricos” que salvarão a futura geração, mas unicamente a organização coletiva e a solidariedade internacional. Sem isso, provavelmente não haverá um mundo depois.

“O mundo que deixamos para trás” é o mundo onde apreciamos um vinil e uma boa conversa, onde um jogo de “torre de equilíbrio” pode ser o centro da diversão, como também uma praia ou, para quem é da região Norte do Brasil, um igarapé. O mundo que deixamos para trás são as pilhas de artefatos, obsoletos ou considerados lixo, como fitas e videocassetes, no qual poderíamos maratonar uma sitcom, provavelmente impossível para a “geração z”, desconhecedora de como manusear estes aparelhos, antes modernos, hoje antigos.

Somos a última geração que se lembra do mundo sem a existência das redes sociais virtuais e dos smartphones, será que o mundo de hoje, virtual e mais conectado, é realmente melhor e mais seguro do que o mundo que ficou para trás? Será que o mundo a nossa frente, do que jeito que está, vale a pena?