Com aval do governo Lula, mudança no Minha Casa, Minha Vida autoriza a privatização da regularização fundiária de interesse social
A mudança permite que direitos sejam vendidos como “produtos” por empresas e, assim, afeta todos os que lutam por moradia digna no país
NOTA DO MOVIMENTO LUTA POPULAR
Quando, em julho de 2023, foi aprovada a Lei do novo Minha Casa, Minha Vida (Lei nº 14.620 de 2023), ninguém denunciou que a nova lei trouxe um duro ataque ao povo pobre e trabalhador. A nova lei trouxe alterações na Lei de Regularização Fundiária (13.465 de 2017), e agora permite que o direito do povo de ter regulamentado o seu pedaço de chão, com saneamento, luz e tudo mais, seja entregue para a iniciativa privada tirar daí o seu lucro.
A proposta veio do presidente da Frente Parlamentar Mista em Apoio à Regularização Fundiária, Desenvolvimento Habitacional e Desenvolvimento Urbano Sustentável (FPDUS), o deputado federal Marangoni (União Brasil / SP), e foi incorporada como parte das negociações do Governo Lula com o “centrão”. Ao rifar mais dos nossos já tão poucos direitos, em nome da governabilidade para os de cima, o governo contribui com a piora nas condições de acesso à moradia digna para os de baixo.
A regularização fundiária é uma ferramenta muito importante para lidar com a situação de moradias nas periferias, porque o que mais precisamos não é a construção de novas casas. Hoje existem mais casa sem gente do que gente sem casa no nosso país. A maior parte das grandes cidades é fruto de ocupações feitas por trabalhadoras e trabalhadores, que, expulsos do mercado formal de moradia por não ter condições de pagar por essa mercadoria tão cara, foram arrumando um cantinho para poder morar, já que os salários tão baixos nunca permitem garantir direito um aluguel, que dirá comprar uma casa.
Embora não se saiba o número exato de famílias que moram em domicílios instalados em favelas, conjuntos habitacionais e loteamentos irregulares ou clandestinos e outras formas de moradia precária, o fato é que essa é a realidade da maior parte da população nas cidades. Por isso, precisamos de garantias de direitos e de melhorias para essas milhões moradias que já existem em comunidades e bairros consolidados.
Viver de forma precária significa viver preocupado com a incerteza se vai conseguir pagar o aluguel sem deixar de colocar comida na boca dos filhos ou ter dinheiro pro transporte. Significa morar de favor, ou em um barraco, ou abarrotado com várias famílias e muitas vezes com o medo constante do despejo. A campanha Despejo Zero estima que hoje quase 1,5 milhão de pessoas estão ameaçadas de despejo no Brasil. Além disso, significa também não ter acesso a água potável e constante, saneamento básico, muitas vezes não ter nem asfalto, e ter que caminhar longas distâncias para acessar um posto de saúde ou uma escola, e gastar longas horas pra chegar ao trabalho. É estar mais exposto a enchentes, deslizamentos e a várias formas de violência, do Estado e de organizações criminosas (geralmente tudo junto e misturado).
Diante disso, a Regularização Fundiária de Interesse Social (REURB-S) é um instrumento para garantir a posse das famílias pobres sobre suas casas como primeiro passo para a regularização urbanística, que é a urbanização, com obras de infraestrutura urbana nas comunidades.
Com a mudança na lei, os projetos e as obras de infraestrutura essencial da REURB-S, incluindo vias de acesso, iluminação pública, solução de esgotamento sanitário e drenagem de águas pluviais, ligações domiciliares de abastecimento de água e energia elétrica poderão ser financiadas pelo setor privado. O que antes era um dever do Poder Público para com essas comunidades, agora pode ser passado para empresas e fundos de financiamento privado fazerem.
Mas não é só isso! O valor gasto com esses projetos e obras pode ser cobrado integralmente das famílias! O que antes era um direito da população (que inclusive é contribuinte) de receber essas obras de infraestrutura como parte daquilo que deve ser feito com o dinheiro público, agora será cobrado das próprias famílias, incluindo a indenização aos antigos proprietários de imóveis, em cima dos quais estão construídos bairros inteiros nas periferias. Ou seja, além de tudo, aqueles latifundiários urbanos, que não cumpriam a função social do seu terreno, que passou a ser ocupado por famílias pobres que ali estão instaladas há décadas, poderão ser indenizados, em vez de terem sido punidos, como manda a Constituição Federal e a lei, por instrumentos como a edificação compulsória, o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) progressivo e a desapropriação para fins sociais. Afinal, a terra deve ser de quem faz dela uso pra viver.
Mas não é só isso! O cálculo do valor total desse grande “negócio” é feito já com a projeção do valor que vão passar a ter a terra e as casas, quando o projeto e as obras forem finalizadas. Ou seja, o valor total que será cobrado das famílias já inclui a valorização dos imóveis. Quem vai embolsar esse dinheiro? As empresas. Quem vai pagar essa conta? As famílias pobres. Com isso, se fortalece a especulação imobiliária, que justamente é o que leva as famílias a não conseguir ter onde morar. É um ciclo vicioso que reforça aquilo que supostamente deveria combater: a expulsão da população pobre do direito de morar, e, agora, arrancando dinheiro do povo em cima daquilo que deveria ser um direito!
Quem mora em bairros regulares não paga pelo asfaltamento da sua rua, pelos postes de energia, pelos canos de esgoto e água, porque todo mundo já paga por isso indiretamente sendo contribuinte. Os pobres também pagam impostos, mas o mesmo não vai valer pra nós. Com essa privatização, cobrando do povo por toda a infraestrutura, além do terreno e indenização ao proprietário, e pelos “serviços” prestados pela empresa que faz o empreendimento, o lucro vai vir justamente de quem mais tá lascado; quem têm menos e que é quem mais precisa. E o pior, se alguma coisa der errado, quem paga pra empresa o que tiver faltando podem ser os Fundos Municipais de Habitação dos municípios, ou seja, o dinheiro público pra moradia!
Ainda tem mais! A garantia dessa verdadeira operação financeira para obras de infraestrutura e melhorias na moradia é a própria casa da pessoa. Quem não conseguir pagar as prestações vai ser despejado, e o imóvel vai ser leiloado para pagar a empresa privada.
Logo depois dessa mudança da lei, o Supremo Tribunal Federal (STF) já deu uma decisão aprovando que os bancos e instituições financeiras possam retomar imóvel financiado em caso de não pagamento das parcelas, sem nem precisar acionar a Justiça. Ou seja, os três poderes alinhados para garantir que o mercado imobiliário tenha as condições mais favoráveis possíveis para garantir seus interesses.
Com isso, se retira o poder público do seu papel de promover direitos, para abrir caminho pra empresas lucrarem ainda mais em cima da das nossas já tão duras vidas. Em vez de ser o interesse público e social a comandar o jeito que a cidade vai sendo produzida e reconfigurada, agora pode ainda mais ser direto o setor privado, com foco no lucro, e o povo que se lasque!
Essa mudança na lei de regularização fundiária, que aconteceu com o aval do governo Lula, é uma nova forma de privatização do direito à moradia e faz com que o poder público, em vez de proteger quem precisa de um teto digno e infraestrutura, entregue esse direito para a ganância de banqueiros e empresários. Essa privatização é o melhor dos mundos e o negócio perfeito para os capitalistas, até porque estamos falando de obras grandes, que envolvem muito dinheiro.
A regularização fundiária, que é o direito de quem vive nessa situação irregular e precária poder morar com dignidade, por meio de uma política pública do Estado, agora, com o incentivo federal implementando o modelo de privatização, a porteira estará aberta para que novos grupos de empresários (como a Usucampeão, Blendlab/Grupo Gaia, Gerando Falcões, Terra Nova, Renascer/Sitawi) façam da cidade e da necessidade de moradia da população mais pobre, um negócio ainda mais lucrativo. E isso é um ataque gravíssimo à classe trabalhadora moradora das periferias.
O governo Lula, ao aceitar a inclusão dessa mudança no “pacotão” do novo Minha Casa Minha Vida, concordou com rasgar e jogar fora vários instrumentos urbanísticos que foram sendo construídos desde antes da Constituição de 1988, como fruto da mobilização dos movimentos sociais por moradia, movimentos populares de bairro, arquitetos, urbanistas e juristas. Esses direitos – reconhecidos ao menos no papel – já eram insuficientes pra enfrentar a propriedade privada e não eram aplicados como deveriam, mas eram importantes ferramentas da nossa luta.
Fica claro que o que importa não é que a regularização fundiária atinja a população de mais baixa renda e sirva efetivamente para diminuir o chamado “déficit habitacional”, e garantir a urbanização das periferias, porque o que se busca garantir é a sustentação do mercado imobiliário e financeiro, deixando a população à mercê de poderes locais que exercem poder territorial.
Em São Paulo, o governador Tarcísio e o prefeito Ricardo Nunes estão fazendo juntos propaganda dessa grande mudança na lei, que “agora sim vai viabilizar que sejam feitos obras e projetos para garantir a regularização fundiária de milhares de famílias”. Eles são da mesma laia de quem propôs essa privatização e já estão fazendo isso em algumas comunidades em São Paulo, onde já começaram a aparecer esquemas de facilitação para algumas empresas que já estão a todo vapor de olho grande nesse “filão” da regularização fundiária privada, onde vão poder ganhar muito dinheiro.
Inclusive, o Nunes disse que vai usar a regularização como carro-chefe da campanha eleitoral dele contra o Boulos, que justamente é conhecido historicamente pela questão da luta por moradia. Recentemente, vimos como o caso do revoltante assassinato da vereadora Marielle e do motorista Anderson teve a ver com a questão da regularização fundiária para fins sociais. Marielle se opunha ao uso comercial da terra, defendendo – e batendo de frente – em defesa da terra como direito da população pobre. Sua resistência e denúncia possivelmente fez ela virar uma “pedra no sapato” dos esquemas entre os políticos de várias esferas, as milícias e os empresários.
Portanto, proteger os direitos já alcançados no tema da regularização fundiária e avançar na democratização do acesso à terra, na garantia do direito à moradia e a infraestrutura urbana, bem como planejamento do desenvolvimento urbano, são bandeira fundamental pra mudar a realidade de desigualdade (e violência) tão brutal do nosso país.
Com que moral o PT, junto com o Boulos (PSOL), vai chegar na campanha falando que os pobres têm direito à moradia digna – e direito à cidade – diante dessa verdadeira privatização da regularização fundiária que o governo Lula aprovou?
É uma situação absurda, que precisa ser denunciada por todo mundo que luta pela terra pra quem dela faz uso pra morar e pra viver!
Em vez de fortalecer a construção e produção de cidades voltadas para as necessidades da classe trabalhadora e do povo pobre, cada vez mais vão sendo destruídas quaisquer barreiras para fazer da cidade um grande negócio e uma grande fonte de lucro. No esquema da “conciliação de interesses entres as classes”, pela ideia de que “todo mundo sai ganhando”, sempre quem sofre as consequências é o nosso povo! Por isso, fazer frente a esse ataque faz parte da luta para revolucionarizar as cidades, tornando-as um lugar justo e digno para aqueles que a constroem, e avançar no enfrentamento e essa sociedade capitalista que a cada dia destrói mais as nossas vidas!
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