Cláudia Celeste e as histórias de invisibilização, discriminação e hipocrisia que cercam as mulheres trans
Hoje, 22 de agosto, ao abrirmos o Google, vemos a imagem de uma mulher glamourosa, à frente de uma bandeira do Orgulho Transexual estilizada e com a frase “Celebrando Cláudia Celeste”.
Quem não conhece a história ou não tenha a curiosidade pra ir atrás, não saberá que a Cláudia virou manchete nos anos 1970 ao se tornar “A primeira travesti na TV”, exatamente em 22 de agosto de 1977, quando surgiu, dançando e cantando, como uma corista, na novela “Espelho Mágico”, ao lado de Sônia Braga.
Um feito que, contudo, não durou muito: exatamente por ter ganho as manchetes, Cláudia, que já havia gravado outras cenas, foi definitivamente “deletada” da novela pelo produtor Daniel Filho, que só se deu conta pelos jornais de que havia contratado uma transexual.
Uma diva guerreira e pioneira
Cláudia nasceu em 1952, no Rio de Janeiro, e antes deste episódio lamentavelmente exemplar da marginalização e discriminação que persegue as mulheres trans, já era uma pioneira e símbolo da garra dentre elas.
Rompendo com a proibição da presença de “travestis” em espetáculos públicos, imposta pela ditadura desde 1969, em 1973, Cláudia estreou no chamado “teatro de revista”, uma antiga tradição brasileira que, a partir de meados dos anos 1970, passou a ser “apropriado” por travestis, trans e gays, em impagáveis recriações exibidas nas boates e clubes LGBTIs das grandes cidades, lhes oferecendo uma importante alternativa de emprego.
Como registrado no comovente e fabuloso documentário “Divinas Divas” (dirigido por Leandra Leal) – centrado nas vidas de outros nomes importantes, como Rogéria, Jane Di Castro, Marquesa, Eloína dos Leopardos, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Holliday e Brigitte de Búzios –, esses shows eram como um “oásis” em meio aos terrores do dia-a-dia, marcados por prisões e internações forçadas em manicômios, violência nas ruas e nas mãos da polícia. E mortes, muitas mortes.
Cláudia “escapou” desta sina dedicando-se às artes. Algo, inclusive, que teve início quando fazia o serviço militar. Tornando-se cabeleira, ela começou a circular pelo meio artístico iniciou sua transição de gênero e sua beleza e talento a levaram aos palcos na estreia de “O mundo é das bonecas”, no Teatro Rival, em 1973. Depois disto, participou de vários concursos de beleza trans, sendo eleita “Miss Brasil Pop”, em 1976.
45 anos depois, a invisibilização e a hipocrisia continuam no ar
O sucesso atraiu a atenção dos produtores da Globo, mas, como vimos, não impediu que Claúdia fosse vítima de preconceito. Aliás, ainda mais absurdo é que, diante da homenagem do Google, a empresa da família Marinho sequer teve a vergonha na cara de se desculpar pelo episódio, jogando a “culpa” (num artigo publicado hoje, nas suas redes) para o “alarde” feito pela imprensa.
Na época, Cláudia ainda tentou seguir com sua carreira, mas os muitos obstáculos numa sociedade onde um bando de trogloditas militares ainda identificavam a não-heterossexualidade com um “plano” mirabolante para os comunistas minarem os valores familiares e destruírem o capitalismo, Cláudia, como muitas outras, se autoexiliou na Europa, só regressando ao Brasil no início dos anos 1980.
Em 1988, ela fez uma nova passagem pelas novelas, em “Olho por olho”, da extinta Rede Manchete, onde, diga-se de passagem, foi escalada para viver uma garota de programa, como se este fosse o “lugar comum” para uma mulher trans. E, como a Arte, às vezes, imita a vida, sua personagem, no final, a “saída” foi ir para Paris.
Cláudia morreu em 2018, com 66 anos muito bem vividos. Apesar de todos os pesares. Em uma longa entrevista para o site da Revista Geni, em 2013, Cláudia Celeste sintetizou como a sociedade transfóbica trata gente como ela: “(…) A gente não cozinha, não lava, não passa, não vive vida nenhuma, não tem inteligência nenhuma, não estuda… Não é professora, não é médica, não é nada – é sexo. E, depois dos anos 80, o travesti ficou ligado à prostituição.”
O fato de que sua imagem esteja sendo resgatada hoje, mesmo sem contexto e/ou problematização da profunda violência – psicológica, emocional e física – que continua vitimando LGBTIs, particularmente, travestis e transexuais (e, mais ainda, se são negras e periféricas), é um “sinal dos tempos”.
Não de tempos em que os meios de comunicação e a sociedade capitalista deixaram de ser LGBTIfóbicos. Mas, sim, de décadas de lutas de gente como Cláudia Celeste e milhares e milhares de outros e outras que se recusaram a “dar a cara pra bater” e se rebelaram contra o preconceito e a hipocrisia.
Uma luta que, sabemos, está longe de ser vitoriosa, principalmente no país que continua sendo responsável pelos maiores índices de mortes de LGBTIs no mundo. Uma luta para a qual não há saídas individuais, pois depende do fim da exploração que beneficia os mesmos senhores que, pressionados pelas mobilizações, pode fazer concessões pontuais, mas, também, retirá-las sem nenhum pudor.