Capitalismo aprofunda crise climática e racismo na Amazônia
A crise ambiental vem se intensificando e as soluções postas na mesa são não só ineficazes, mas aprofundam o problema. Entre a barbárie climática e as medidas paliativas do capitalismo verde, a classe trabalhadora sofre as consequências de um capitalismo hostil à vida. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o mês de agosto deste ano registrou 38.266 focos de queimada na região amazônica, o que fez com que a capital amazonense, Manaus, e vários municípios do estado passassem por sete dias imersos na fumaça. A partir dos dados captados pelo satélite Copernicus, as áreas em chamas, àquela altura, correspondiam a 500 quilômetros de extensão do bioma amazônico. Além do Amazonas, o chamado “cinturão de fogo” corresponde aos estados do Acre, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pará. Hoje, já no final de novembro, a população amazonense ainda convive com a fumaça, com a capital, Manaus, ainda com o horizonte esbranquiçado.
A população amazonense entre a crise climática e o racismo ambiental
No dia 9 de outubro, a vazante atípica do Rio Negro atingiu recorde histórico, com uma cota de 12,1 metros. Nas últimas três semanas, o rio voltou a encher, não reparando o fato de que as alterações de ordem climática atingiram um patamar delicado: os próximos anos tendem a ser piores, mesmo que as atenções e iniciativas globais em prol da preservação ambiental e climática ultrapassem o formalismo das convenções burguesas – estamos correndo contra o tempo, muitas oportunidades imediatas já passaram.
O peso dessa urgência ganha evidência quando entendemos a gravidade de se alcançar o ponto de não retorno, algo que demonstra a integralidade da vida biológica no planeta e a importância de um bioma como a Amazônia, que é parte essencial da regulação do ecossistema terrestre. Eventos naturais, já previstos e em convivência com os povos e comunidades tradicionais, não podem ser confundidos com o que se tem visto, pois os recordes estão sendo batidos com mais rapidez. O que era para ser de 100 em 100 anos, agora está ocorrendo em décadas ou menos. No contexto amazônico, as águas cumprem um papel fundamental. Essa realidade alarmante, que tende a piorar nos próximos anos, cria empecilhos materiais de magnitude extrema à população amazonense, prejudicando o abastecimento das cidades, o transporte, alterando a geografia local e afetando ecossistemas, gerando insegurança alimentar e prejudicando o manejo sustentável, por exemplo, do Pirarucu, essencial para a região.
Violência policial
Entretanto, não é apenas na questão ambiental e climática que enfrentamos problemas. Segundo a Rede de Observatórios da Segurança, no ano de 2023, 92,6% das mortes causadas pela polícia no Amazonas vitimaram pessoas negras ou pardas, todos homens. Para além do dado alarmante, outro problema são os critérios utilizados para se ter a verdadeira dimensão racial do problema, quando estamos em uma região que corresponde a 29% da população indígena no país, em que a categoria “pardo” acaba por permitir escapar diversas nuances cruciais para se compreender especificidades regionais e étnicas. Temos, então, o problema do genocídio da população preta e indígena, que perpassa todo um processo histórico de apagamento cultural violento e políticas concretas de embranquecimento da população.
O relatório da Rede de Observatórios da Segurança expõe um padrão que, apesar de trágico, não surpreende, tendo em vista o caráter do Estado brasileiro: das 4.025 vítimas da violência policial, tendo 3.169 identificação étnico-racial (raça/cor), 2.782 são pessoas pretas, o que equivale a 87,8%. Os estados de atuação da rede foram Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. A questão se torna mais complexa quando, para além da violência brutal e contumaz do Estado, está a dificuldade de se trabalhar as categorias e critérios étnicos por uma perspectiva crítica, gerando dificuldades várias no que diz respeito à leitura que podemos fazer a partir de determinados levantamentos. A violência policial é indissociável da política de guerra às drogas, que criminaliza o usuário e mata a população pobre, com o genocídio da população negra tendo continuidade à medida que a fé nessa lógica aberrante se sustenta.
No mês da Consciência Negra, que concentra esforços de uma luta incessante e cotidiana, é preciso exaltar a memória negra formadora da sociedade manauara e amazonense, tão ignorada, negada e estigmatizada. A história da classe trabalhadora manauara é atravessada por lideranças como Nestor Nascimento, por exemplo, um militante ativo do movimento negro na segunda metade do século XX. A história da nossa região é atravessada, por exemplo, por Alexandrina, que teve em seu corpo os olhos racistas dos teóricos raciais dos Agassiz que tentavam defini-la a partir de aspectos essencialistas sobre sua ancestralidade indígena e africana. Na segunda metade do século XVIII, ela fora recrutada para ajudar a família Agassiz na sua expedição, contribuindo com as elaborações científicas e tendo domínio de saberes naturais e culturais, mas não sendo reconhecida, é claro. Alexandrina é parte importante da memória negra da nossa região, principalmente em um contexto de negação constante a essa memória, trazendo a figura da mulher negra enquanto conhecedora de saberes ancestrais e familiaridade com a natureza.
É importante ressaltar que o tipo de relação que temos hoje com o meio ambiente, ou seja, a relação que temos entre humanidade e natureza, é a relação imposta pela dinâmica do capitalismo hegemônico, por sua vez, totalmente hostil ao meio ambiente e a uma vida sustentável no planeta. Povos originários africanos e americanos, descendentes de africanos e africanas sequestradas, comunidades tradicionais, caboclos e ribeirinhos, por exemplo, costumam herdar uma relação com a natureza totalmente diferente e opositora à dinâmica capitalista. Com o capitalismo, humanidade e natureza se separam, ocorre uma ruptura socio-metabólica – a humanidade e a natureza são, em realidade, indissociáveis. Essa separação contribui para uma atividade cada vez mais destrutiva do sistema capitalista para com o ecossistema do qual pertencemos. O capitalismo é hostil à vida.
Desiguladade
Sobre o contexto urbano, Manaus escancara a lacuna entre a riqueza e a desigualdade. É a 5ª cidade com o maior PIB do país, sendo a 2ª cidade mais favelizada. Ou seja, Manaus é uma cidade muito rica e com uma desigualdade crescente. O próprio contexto da pobreza, de se estar no limite das piores situações impostas pela rotina capitalista, como as condições precárias de moradia, já deixa a classe trabalhadora manauara, em sua maioria negra e indígena, em uma posição fatal frente às alterações climáticas e crises ambientais. Há a necessidade de revitalizar os igarapés da cidade, o que parece ser terceira opção para os governantes. O convívio com o esgoto a céu aberto é uma realidade em, praticamente, toda Manaus, com a exceção de alguns bairros elitizados. Isso repercute na saúde da população, em um contexto de calamidade na saúde pública, a nível estadual e municipal, retroalimentando uma dinâmica que oprime a população pobre e estende a crise do regime capitalista em proporções cada vez piores. Basicamente, a situação está um inferno. Isso tudo se soma com a realidade do desemprego de mais da metade da população, com o aumento da violência urbana e com o descaso da educação sendo tratado como mero detalhe. Em meio a tudo isso, parece claro que, dentro do capitalismo, a solução é ilusória.
Os governos federal, estadual e municipal como agentes da destruição capitalista
Na Amazônia, se vê o problema do expansionismo do agro, além da postura irresponsável do governo federal que se põe permissivo à exploração de petróleo e minério na Amazônia, parecendo ignorar todo e qualquer aviso vindo de especialistas, movimentos sociais e setores ambientalistas críticos às decisões do governo petista. A construção da BR-319 é mais um dos exemplos do ataque que se trava entre o poder do agronegócio e a luta de resistência dos povos que habitam a região, que possuem a noção do perigo de uma construção do tipo. Não é uma iniciativa isolada, tampouco recente: a rodovia Manaus-Porto Velho teve início em 1976, durante a ditadura empresarial-militar, à época sob o governo Geisel, na empreitada da integração nacional. O Opinião Socialista possui matérias importantes tratando dos problemas da BR-319, assim como há vídeos essenciais no canal Ecologia Marxista, conduzido por Jeferson Choma.
Em se tratando da fumaça que cobre Manaus e outros municípios do Amazonas, a situação se estabilizou num convívio ininterrupto entre a população e os poluentes, com um ar perigoso e que oferece risco maior àqueles acometidos por condições agravantes, como asma e outros problemas respiratórios. A classe trabalhadora sufoca enquanto luta pela redução da jornada de trabalho, o que evidencia os diferentes espaços na luta por dignidade ao povo trabalhador. Há a exploração no trabalho, as opressões cotidianas em casa e na rua, e há o resultado da voracidade do punhado de bilionários que destroem as condições básicas de vida no planeta Terra. A relação do governo federal com o agronegócio nos coloca, portanto, em um risco altíssimo. Ao invés de caminharmos rumo a uma responsabilização e penalização desse setor agressivo à vida do povo brasileiro, o caminho é outro – cada vez, mais o governo federal legitima e incentiva o agronegócio a prosseguir com sua destruição. A boiada segue passando.
As maiores vítimas são a população pobre, preta e indígena. No centro da luta por moradia ou por terra, o cenário se repete e se aprofunda, com a questão da mulher se evidenciando em praticamente todos os espaços de reivindicação. É comum o assassinato de lideranças comunitárias, mulheres, e perseguições políticas envolvendo a posse de terras rurais ou urbanas. Antes da ofensiva dos ruralistas, o que não faltava era vídeo de fazendeiros comemorando o ataque a comunidades indígenas, de maneira descarada. Nada foi feito, os assassinatos ocorreram, os incêndios foram endêmicos e a situação não parece melhorar. Voltando para o contexto manauara, segundo o Ranking do Saneamento 2023, Manaus é a 7ª pior capital no quesito saneamento básico, dentre as 27 capitais. O contraste da grande riqueza de Manaus e a desigualdade crescente demonstra de forma grosseira como o capital age contra os interesses básicos da população. A população de pessoas em condição de rua cresce cada vez mais, o que é evidente aos olhos, e o padrão racial persiste: são pessoas pretas e indígenas, o que se perde em meio à questão parda e formas de coleta de dados. O cenário da seca foi pior que o do ano passado, mas não foi algo inesperado: sabia-se há muito tempo o que estava por vir. Veio, nada ou quase nada foi feito.
Os governos de Wilson Lima e David Almeida, agora reeleito, se põem publicamente em oposição, brigam frente às câmeras. Se brigam por trás das câmeras, não há como saber, porém, a burguesia oriunda das oligarquias locais sai vencendo, com um e com o outro. Vale lembrar que, há não muito tempo, ambos estavam abraçados. Ambos são inimigos da classe trabalhadora amazonense, conduzem o município e o estado ao terror e corroboram com o sentimento nefasto produzido pela crise do oxigênio no Amazonas em 2021. Em todos os problemas mencionados neste texto, os esforços vindos dessas figuras foram mínimos ou nenhum. Durante o foco das queimadas,
Quando existem críticas a ação terrorista do agronegócio, como as feitas pela cientista do INPE Luciana Gatti, existe a reação na forma de perseguição. Luciana fora hostilizada pelo secretário de agricultura de São Paulo, Guilherme Piai, o que gerou uma onda de solidariedade à pesquisadora. Esse é só mais um exemplo do que esse setor político e econômico é capaz, no que se soma a tantos outros casos de hostilidade travados contra militantes, ativistas e personalidades que se localizam nas lutas, seja no campo, seja no contexto urbano. No caso de execuções políticas, são inúmeros exemplos. O Estado é responsável, tanto por sua omissão, quanto pelas políticas instituídas em apoio aos ruralistas, aos garimpeiros e grileiros. O Estado, por usa vez, também mata.
Os atravessamentos da vivência negra e a importância de uma saída independente
Nesse Novembro Negro, não se deve esquecer da pauta ambiental e sua relação com a pauta racial. As principais vítimas da ofensiva capitalista à estabilidade climática e à natureza são as pessoas pretas, juntamente da população indígena, assim como as comunidades tradicionais, dentre elas o povo caboclo e quilombola. É preciso que as lutas se unifiquem, tendo a exigência da legalização de posse para indígenas e quilombolas, em confronto ao Marco Temporal e ao arcabouço fiscal. Nisso, se atravessa a luta por moradia, em um contexto de constante ataque à organização de trabalhadores e trabalhadoras em ocupações e disputas que envolvem o direito básico à terra e moradia. É crucial demarcar essa discussão levando em conta o peso da marca racial em todas as vivências da classe trabalhadora. No desemprego, no feminicídio, no suicídio, na transfobia, na xenofobia e em todas as outras realidades de exploração e opressão, a pele preta, em especial a da mulher preta, está no alvo central.
Em termos de organização e construção, fazemos o convite aos setores do movimento negro e da luta antirracista para debater o futuro da nossa juventude, as nossas tarefas políticas conjuntas e para fazer um balanço realista, crítico e dialético do percurso do governo Lula/Alckmin. Também, ressaltamos a importância de debatermos os rumos da luta antirracista no Brasil e pela defesa de um movimento negro combativo e independente. A revolução socialista é inseparável da revolução negra, assim como da indígena, o que denota a importância da unidade da classe trabalhadora em todas as nossas esferas e com base em todas as nossas demandas. No exemplo histórico de Zumbi e Dandara, o legado de nossos heróis nacionais não-oficiais serve para inspirar e orientar a luta e organização da classe trabalhadora como um todo, no aspecto de resgate ancestral e cultural, no exercício da auto-organização independente e no ato de resistir frente ao horror da colonização e da escravidão.
No capitalismo, qualquer solução é ilusória. As tarefas ambientais e climáticas precisam estar dentro de um programa socialista, de transformação social, onde o planejamento econômico será sustentável por natureza, não por meio de medidas paliativas e pela lógica do lucro. Essas tarefas, seguindo a lógica de uma justiça ambiental e climática, passam pela organização do povo trabalhador e pobre, preto e indígena, de tal forma que, na ausência de qualquer dessas percepções, nada fará sentido, pois são fatores indissociáveis. O capitalismo é danoso à natureza e, consequentemente, à humanidade. A revolução socialista será, também, uma revolução pelo salvamento do clima, do meio ambiente e pela liberdade do povo preto!
“Dos pretos, pelos pretos, para os pretos, com os pretos
Todo ódio à burguesia!
Orgulho de ser da periferia!
Dos pobres, pelos pobres, para os pobres, com os pobres
Todo ódio à burguesia!“
Clã Nordestino, “Todo Ódio”