Candidaturas negras do PSTU: Dentro ou à sombra da Casa-Grande, não há paz, não há justiça
Nestas eleições, o PSTU e o Polo Socialista e Revolucionário têm a única mulher negra como candidata à presidência, a Vera, uma operária nordestina que tem como vice Raquel Tremembé, uma militante indígena maranhense. Além disso, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 55,8% de nossas candidaturas são de negros e negras, o que faz que sejamos um dos poucos partidos que apresentaram um índice próximo ao da população negra brasileira (56%, considerando os que se autodeclaram “pretos” e “pardos”, de acordo com os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, o IBGE).
Também segundo o TSE, somos um dos poucos que, até o momento, atingiu as cotas determinadas por lei em relação aos repasses do Fundo Eleitoral, investindo 69,7% dos recursos em nossas candidaturas negras.
Tudo isto é motivo de enorme orgulho para nós. Mas, não porque atende ao critério da “representatividade” e muito menos porque respeita a legislação. Nosso orgulho é de “raça e classe”. Orgulho de um partido que, também nas eleições, se esforça para apresentar nomes que personificam um programa e uma perspectiva econômica, social e política que são as únicas saídas viáveis para a humanidade, a começar para seus setores mais explorados e oprimidos: a luta pela revolução para construirmos um mundo socialista.
Vera e Raquel, em grande medida, sintetizam isto. Ter uma negra e uma indígena encabeçando nossa chapa é, inquestionavelmente, uma forma para darmos visibilidade ao tema das opressões, algo importantíssimo num país de tradição colonial e escravocrata como o nosso. Mas elas não são representantes de um determinado “lugar de fala”. São quilombo e oca. São, acima de tudo, trabalhadoras socialistas e revolucionárias. São expressões da necessidade de construirmos um mundo que seja um “lugar” onde possamos viver com liberdade, igualdade e justiça.
Neste artigo queremos apresentar algumas de nossas candidaturas negras, discutir o que defendemos sobre o tema e o porquê, para nós, um voto útil nestas eleições também é um voto de “raça e classe”.
“Voto útil” é aquele que fortalece a consciência, a organização e as lutas também contra o racismo
Pra começar, resgatemos um trecho de um artigo de Luiz Gama, escrito em 1876, mas atual como nunca e que tem tudo a ver com o que segue abaixo: “É muito difícil organizar uma revolução, muito mais difícil realizá-la, e absolutamente insuportável a opinião dos humanitários que nos apregoam máximas, e dão lições de prudência no meio das tempestades e hecatombes.”
E o que nós vivemos senão um momento de catastrófica hecatombe? Uma hecatombe provocada por um capitalismo em crise, que está fazendo o mundo naufragar no desastre ambiental, na fome, na crescente miséria, no desemprego, num genocídio provocado por uma pandemia e falta de perspectivas. Uma tempestade que se abate sobre a grande maioria da humanidade, mas que causa danos ainda piores sobre aqueles e aquelas que têm sido historicamente marginalizados e deixados ao léu pela discriminação e o preconceito.
É neste contexto que dizemos que, hoje, “voto útil” é aquele que possa nos armar e nos proteger contra tudo isto, fortalecendo a consciência, a organização e a luta dos “de baixo”, principalmente os mais explorados e oprimidos, seja pelo racismo, o machismo, a LGBTIfobia ou quaisquer outras formas de opressão.
E é por isso, também, que nossas candidaturas têm sido boicotadas pela grande mídia, contando, inclusive, com a cumplicidade de setores da chamada esquerda, como PCdoB e PSOL, e dos movimentos negros (particularmente no que diz respeito à candidatura da Vera), que dizem que, agora, só há espaço para um “voto útil” contra os ataques às liberdades democráticas e ameaças golpistas de Bolsonaro: o apoio a Frente Amplíssima personificada por Lula e Alckmin.
Uma postura inadmissível, pois, afinal, estão fazendo campanha abraçados com empresários, banqueiros e latifundiários e, ainda, dando “visibilidade” para uma figura nefasta como Alckmin, cuja passagem pelo governo de São Paulo (2001-2018) foi marcada por atrocidades com forte teor racista, que vão da violenta invasão policial na Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos, e uma infinidade de outras comunidades, ao fato de ter chegado ao final do mandato registrando um recorde no número de mortos pela polícia, cuja letalidade aumentou em 96%, somente no período de 2011 e 2017.
E é desnecessário dizer de qual raça e etnia era a maioria dos assassinados, bastando lembrar que um levantamento do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos revelou que, somente entre 2009 e 2011, a taxa de prisões em flagrante de negros, em São Paulo, era 2,5 vezes maior que a verificada entre os brancos.
Pra nós, não há nada de “útil” em chamar o voto para algo assim. Pelo contrário, é um desserviço, comparado a dizer que negros e negras escravizados deveriam ter depositado confiança ou esperado sua liberdade pelas mãos de seus carrascos e senhores.
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Lista dos candidatos do PSTU e do Polo Socialista Revolucionário por estado
Dentro ou à sombra da Casa-Grande, não há paz, não há justiça!
Dentre as candidaturas negras que apresentamos, temos trabalhadores e trabalhadoras das fábricas, dos canteiros de obra, das salas de aula, ativistas sindicais, mulheres, LGBTIs, jovens e estudantes que têm um “princípio” em comum: a luta contra o racismo ou quaisquer outras formas de opressão é cada vez mais urgente e tem que ser cotidiana, mas só pode ser travada de forma coerente se for combinada e, inclusive, condicionada à luta contra a exploração capitalista.
Gente que carrega o sangue dos quilombolas em suas veias e aprendeu com Zumbi, Dandara, Luiza Mahin, Teresa de Benguela, João Cândido e tantos outros que não há como lutar pela liberdade sem confrontar o sistema que nos acorrenta e oprime e, por isso mesmo, que diante dos “sinhozinhos” e seus herdeiros não há trégua.
Não há conversa possível com quem quer nos jogar, de novo, nas senzalas (ou nos porões dos regimes ditatoriais) e, por isso mesmo, sempre estivemos na linha de frente contra Bolsonaro, o fundamentalismo e as muitas formas de ódio e violência racista, machista, LGBTIfóbica e xenófoba que ele, seus comparsas e “capitães do mato”, como o nefasto Sérgio Camargo, praticaram e estimularam nos últimos anos.
Mas, também, gente que sabe que não pode haver paz nem justiça à sombra da Casa-Grande. Que a ilusão alimentada por “Lula & Alckmin”, “Trabalhadores & Empresários, Banqueiros e Latifundiários”, “Reformas & Ricocracia”, é uma perigosa farsa, que tende a perpetuar a exploração e a opressão, assim como “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freire, deu fôlego e impulso para o racismo, através do mito da democracia racial.
Por isso mesmo, se nos orgulhamos de nossa maioria de candidaturas negras, também nos orgulha que todos nossos candidatos das demais etnias também estejam a serviço de fortalecer a consciência de que, como já nos disse Malcolm X, “não há capitalismo sem racismo”.
Uma luta que só pode ser travada com independência de classe e em confronto aberto com os “de cima”; a única forma possível para criar as condições que possam garantir as reparações históricas que o povo negro tanto necessita e merece. Algo que a burguesia nunca fará e os reformistas pedem que joguemos para um futuro sempre adiado.
Exemplos disto é o fato de que, este ano, temos um recorde de candidaturas negras (50,4%), algo que não pode ser explicado sob o argumento de que o racismo tem recuado na sociedade. Pelo contrário. Este alto índice ecoa décadas de lutas e, particularmente, o grito de que “Vidas negras importam” que varreu o mundo mais recentemente.
Mas, o índice também esconde um tanto de farsa e da forma irresponsável e leviana como o tema é tratado, tanto pela burguesia quanto pelos que pregam o mito do “capitalismo com cara humana”. De Bolsonaro e seus aliados, não poderia se esperar outra coisa. Afinal, o presidente é um racista convicto, que trata negros quilombolas como “peças”, cujo peso é medido em “arrobas” e a principal função é a procriação.
Também seria uma ilusão esperar algo dos partidos da burguesia “liberal” (PDT, MDB, PSB, PSDB e similares), já que seu único objetivo ao “valorizar” candidaturas dos setores oprimidos é usá-los(as) como “símbolos” de um suposto, mas nunca real, apoio à causa negra; ao mesmo tempo que os mantém acorrentados à lógica do capital e da democracia burguesa. E, como já disse Solano Trindade, “negros que são amigos do Capital, não são meus irmãos”.
Contudo, não há como não mencionar o partido de Lula. Só para dar um exemplo, apesar do PT ter 50,2% de candidaturas negras, até agora, destinou apenas 25,6% dos recursos do Fundo Eleitoral para elas, enquanto algumas destas candidaturas estão recebendo até centenas de milhares de reais de banqueiros e empresários.
Algo exemplar sobre tanto da abismal distância entre “discurso” e “prática” quanto da submissão ao capital. Com uma mesma conseqüência: a perspectiva social, econômica e política, inclusive para negros, apresentada por Lula e sua Frente Ampla é ainda mais rebaixada do que as verbas destinadas para seus candidatos.
Para falar sobre a diferença de nossas candidaturas em relação tanto à burguesia quanto aos que pregam a possibilidade de lutarmos contra o racismo à sombra da Casa-Grande, conversamos com Claúdio Donizete, operário do ABC Paulista, dirigente da Secretaria de Negros e Negras do PSTU e candidato a deputado federal.
“Nossas candidaturas são expressões da necessidade de um programa classista e socialista contra o racismo. A burguesia nacional, que carrega em sua história os crimes da escravidão, jamais poderá nos oferecer nada. Falar em liberdade e igualdade baseadas no empoderamento individual, na ascensão social ou no empreendendorismo, é uma farsa, pois não há como garantir reparações históricas sem antes expropriar as riquezas tomadas de nosso povo e nossa classe, ou por dentro do chamado ‘Estado democrático de direito’. A Casa-Grande não abriga nossas demandas.”, nos disse Cláudio.
Num sistema em crise, a opressão corre solta
Se 500 anos de História, 388 deles vividos sob a chibata da escravidão, já provaram que para a burguesia o lugar de negros e negras é nas margens da sociedade e sob as piores condições de vida; agora, quando o capitalismo vive uma de suas piores crises, esperar que o racismo diminua ou seja extinto é um verdadeiro contrassenso.
Foi sobre isto que nos falou Luis Carlos Prestes, o Mancha, metalúrgico de São José dos Campos, dirigente da CSP-Conlutas e candidato ao senado, pelo Coletivo Socialista, em São Paulo. “Há muito, negros ocupam as piores ocupações no mercado de trabalho e recebem os piores salários, algo ainda pior dentre as mulheres. E tudo isto só tem piorado, principalmente depois da pandemia. Um estudo do Instituto Latino Americano de Estudos Socioeconômicos (Ilaese), baseado em dados do IBGE de 2019, revelou, por exemplo, que a remuneração média dos trabalhadores brancos era R$ 3.338; enquanto a de homens negros é R$ 1.710 e a das mulheres negras menor ainda: R$ 1.471. Ao mesmo tempo, somos 46% da mão de obra desempregada e, durante a pandemia, 41,5% daquelas que se declaram “pretas” perderam seus empregos. Um índice muito superior ao das mulheres brancas (28,2%).”
“Diante disto, é uma falsa ilusão pregar, como faz o PT e seus aliados, inclusive em sintonia com muitas empresas capitalistas, que saídas individuais vão reverter esta situação. As opressões são importantes para dividir a classe, manter um exército de reserva e aumentar a exploração do capitalismo. Exatamente por isso, precisamos unir os trabalhadores para enfrentar o racismo , o machismo e a LGBTIfobia para superar esta sociedade que, para explorar mais, oprime mais ainda”, concluiu Mancha.
E se isto é uma realidade para a enorme maioria da classe operária, a situação é ainda pior para seus setores mais explorados, algo que nosso candidato ao governo do Ceará, Zé Batista, um trabalhador da construção civil, conhece de perto.
“Nossa categoria é majoritariamente negra e vivemos uma contradição: construímos grande parte da riqueza de nossa cidade, mas estamos à margem disso tudo. Moramos na periferia e sofremos com a violência e as opressões, como ouço, todos os dias, de operários e operárias nos canteiros de obras. Além disso, a mulher negra ainda é tratada como ‘objeto’ e o jovem operário, como marginal. Por isso mesmo, não temos medo de ‘remar contra a maré’, contra o capitalismo em decomposição. Enquanto muitos por aí nos desprezam, pedem ‘calma’ ou para acreditar na ‘bondade’ de setores da burguesia, nós combatemos o racismo com raça e classe, porque não basta ter identificação com a causa negra, é necessário atacar as causas, que estão nas raízes do sistema”, nos disse o companheiro cearense.
Algo que também nos foi lembrado por Antônio Duarte, morador da Brasilândia, em São Paulo, onde é candidato a deputado federal. Destacado recentemente pelo portal “Terra” como um dos “10 candidatos da quebrada”, o companheiro ressaltou: “Não basta ter o CEP ou dizer que tem origem na periferia, é preciso defender os interesses de quem mora na quebrada. E, pra isso, é importante votar nos 16, porque os partidos dos ricos e bilionários só querem tirar nossos direitos e os reformistas tentam nos iludir dizendo que é possível fazer mudanças em aliança com estes mesmos senhores. Mas, aqui, o povo negro e trabalhador quer emprego, salário e comida no prato. E isso só pode vir através de um projeto revolucionário.”
Racismo e capitalismo ferem e matam. Então, que morram!
Numa sociedade em que já fomos tratados como “coisas” que podem ser “quebradas” e “descartadas” impunemente, o desemprego e as péssimas condições de vida há séculos têm deixado negros e negras mais expostos à violência. E, se não bastasse, ainda nos enfrentamos com a violência racista “institucionalizada”, seja através das forças de repressão do Estado ou dos aparatos paramiltares, como as milícias e jagunços, que vivem à sombra e a serviço dos poderosos.
Na edição de 2021 do “Atlas da Violência”, publicado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Seguranças Pública, foi detectado que somos 75,8% das vítimas de homicídios (com 2,6 vezes mais chances de ser morto do que uma pessoa branca) e que jovens negros entre 15 e 19 anos são 81% das vítimas da violência letal. Além disso, somos 79% das vítimas das “intervenções policiais” e nossas mulheres são 61,8% das vítimas de feminicídio.
Números certamente inaceitáveis, mas com os quais, é preciso dizer, o PT conviveu durante seus 13 anos de governo, como demonstrou a edição de 2017 do “Atlas”, que constatou que entre 2005 e 2015 de cada 100 vítimas de homicídio no país, 71 eram negras.
Uma demonstração de que mesmo as já pífias políticas pontuais e assistencialistas do PT, ao serem limitadas e subordinadas ao projeto de governar com banqueiros, empresários e latifundiários e à aplicação do receituário neoliberal, não tocaram no centro do problema – a exploração – e, consequentemente, foram tão ineficazes para os setores mais oprimidos e explorados quanto as dos governos burgueses liberais. E não podemos esperar algo muito diferente de um eventual governo da Frente, como como foi destacado pelo nosso candidato ao governo do Rio de Janeiro, Cyro Garcia.
“Aqui, o racismo é visível em todos os cantos. Somos a maioria nas residências insalubres, 80% da população de rua e recebemos metade do salário pago aos brancos. Mas, a manifestação mais perversa do racismo, no Rio, é a política de Segurança, que na verdade é uma grande farsa, a chamada “guerra às drogas”, que promove um verdadeiro genocídio contra o povo negro, em particular a juventude que mora nas favelas e na periferia. Pessoas, em sua esmagadora maioria, que nem sempre estão envolvidas como o tráfico. Volta e meia, são crianças, estudantes, trabalhadores(as), adolescentes que são assassinadas indiscriminadamente, vítimas desta política. Nós somos radicalmente contra isto. Defendemos que drogas não são um problema de Segurança Pública, mas de Saúde Pública. E, por isso defendemos a descriminalização das drogas”, destacou Cyro.
Essa perspectiva, diga-se de passagem, já foi comum dentre os partidos de esquerda. Algo, contudo, que também tem mudado radicalmente, na medida em que suas direções foram mergulhando no discurso e na prática da conciliação de classes. “É forçoso lembrar que foi a partir da Lei de Drogas, que vem dos governos petistas, que houve o encarceramento em massa da juventude negra, não só aqui, mas no país inteiro. E, hoje, no Rio, o PT está defendendo a candidatura do Marcelo Freixo, que não defende mais a descriminalização das drogas e diz que vai manter as operações nas favelas, inclusive com malditos “caveirões”. Como também deixou de defender a legalização do aborto, coisa que defendemos porque sabemos que a maioria das mulheres que morrem pelo fato do aborto ser clandestino é de mulheres pobres e negras”, continuo o candidato ao governo do Rio.
Cyro exemplificou a profundidade e o caráter genocida do racismo, lembrando que em uma única semana, no final de janeiro e início de fevereiro, tivemos três exemplos lamentáveis: a tortura e espancamento até a morte do refugiado congolês Moísse Kagambe; o assassinato do trabalhador Durval Teófilo, baleado em seu próprio condomínio, ao ser confundido com um “bandido” por um sargento da Marinha, e a morte do vendedor de balas Hiago Macedo, assassinado por um PM, em dia de folga, na fila das barcas de Niterói,
“Diante disto, nós defendemos a desmilitarização das PMs, o fim das operações policiais nas favelas, principalmente com os caveirões, e a geração de empregos pra juventude negra, através de um plano de obras públicas. O Estado tem um dívida com o povo negro e o que precisamos é de uma política global de reparações. E ainda campo da ‘justiça’, também defendemos o fim da falácia da injúria racial. Racismo é crime e tem que ser inafiançável. Injúria racial é racismo da mesma forma. E lugar de racista é na cadeia”, concluiu Cyro.
Opressões combinadas geram exploração sem limites
Numa sociedade onde as opressões se acumulam nas costas dos que já são os mais explorados, evidentemente o racismo, ao se combinar com o machismo, a LGBTIfobia, a xenofobia etc., ganha contornos ainda mais cruéis.
Algo que, diga-se de passagem, é assim desde muito antes que os “pós-modernos” tenham sacado o conceito de “interseccionalidade” para definir dois ou mais fatores sociais que definem uma pessoa. E com uma importante diferença. Essa é uma realidade condicionada e definida por uma “identidade” que se sobrepõe a todas as demais na sociedade capitalista: a classe a que se pertence; algo menosprezado pelos teóricos do “identitarismo” e seus primos-irmãos reformistas.
No estudo “A mulher negra no mercado de trabalho”, publicado pela Fundação Getúlio Vargas, em julho de 2021, com dados de 2019, se constatou que mulheres negras apresentam, em média, rendimentos 71,31% menores do que os homens brancos. Dados do mesmo ano, levantados pelo Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), revelam que apenas 21% das mulheres negras concluíram o Ensino Superior, sendo que 84% delas estudam em instituições privadas.
Já em relação às LGBTIs, infelizmente, a dificuldade em apresentarmos dados é proporcional à invisilização que caracteriza suas vidas. Principalmente se são negras. Contudo, um único dado já diz muito: este é o país onde mais se mata transexuais e 82% das que foram mortas em 2019 eram negras, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Estes números escancaram uma realidade histórica, como destacou Wellingta Macedo, jornalista, educadora social, atriz e candidata a deputada federal no Pará.
“Mulheres da classe trabalhadora, principalmente as negras, indígenas, periféricas, lésbicas, bi ou trans, tiveram seus corpos e suas vidas ainda mais devastados que as pertencentes a outras etnias, identidades de gênero ou orientação sexual, em função das muitas formas de violência que nos perseguem desde a conquista do país, em 1500, quando o capitalismo dava seus primeiros passos. Ter mulheres negras como candidatas tem como objetivo não apenas denunciar esta violência; mas, sobretudo, colocar nossa campanha e um eventual mandato a serviço da luta dessas mulheres, bem como do conjunto dos trabalhadores, para lutar pela reunificação de nossa classe, dividida pelos preconceitos alimentados pelas ideologias burguesas”, destacou Well,
A importância da aliança com a classe trabalhadora também foi destacada por Raquel de Paula, carteira, moradora da periferia de São José dos Campos (SP) e candidata a deputada estadual. “Na sociedade capitalista, o racismo não tem limites nem fronteiras, como vemos nos campos de futebol, como o recente episódio envolvendo o jogador Vinícius Júnior. Contudo, é particularmente cruel com nós, mulheres negras. Vemos quase que cotidianamente casos pavorosos de feminicídio de nossas irmãs, empregadas domésticas negras humilhadas ou resgatadas do trabalho escravo e, ainda, somos jogadas para os trabalhos mais precários”, disse Raquel.
Situações que têm se intensificado em função da atual lógica da economia, também nos lembrou a companheira: “Tudo isso só tem aumentado com as políticas neoliberais, seguidas por todos os governos, inclusive os do PT, que, nos Correios, por exemplo, resultaram em precarização, aumento da terceirização e um projeto de privatização que pode gerar a demissão de mais de 90 mil trabalhadores. E nós sabemos muito bem que serão os primeiros a serem atingidos. É por isso que dizemos que não dá pra nos unirmos com nossos inimigos. É preciso erguer um novo tipo de quilombo, uma sociedade socialista.”
Uma luta que começa aqui e agora, como também nos foi dito pela Well, do Pará. “Hoje, se expropriarmos as 100 maiores empresas e os 315 bilionários que abocanham 60% das riquezas do país é possível garantir um projeto de emprego, renda e serviços para toda a classe trabalhadora, mas que também beneficie a população negra e indígena, particularmente suas mulheres, através, por exemplo, de um plano de obras públicas que garanta creches para as mães trabalhadoras, lavanderias e restaurantes públicos, casas-abrigo para as que sofrem violência, além daquilo que é básico, como moradia, saneamento, hospitais e laboratórios.”
“E não só isso. Algo que me preocupa em particular é a preservação e incentivo à cultura negra, em todos seus aspectos. Em um país que tem uma primeira-dama que compara a religiosidade de matriz africana a uma coisa ‘das trevas’, é preciso proteger a Cultura e Arte em geral e as negras, em particular. Algo que, pra mim, é tão importante quanto o pão. Por isso, precisamos incentivar a produção cultural e artística nas periferias e garantir o acesso da população negra a tudo o que existe nesta área, além de ampliar as leis de incentivo para os trabalhadores da Cultura, inclusive com cotas para as mulheres e LGBTIs negras”, concluiu Wellingta.
Outro tema fundamental para nós é a Educação, um dos centros da candidatura de Ana Célia, professora aposentada e candidata a deputada federal no Rio Grande do Norte. “Sei como o racismo se manifesta cada vez mais dentro das salas de aula, levando a que muitas crianças abandonem a escola sem concluírem sequer o ensino fundamental. Apesar das leis aprovadas depois de muita luta, a falta de destinação de verbas faz com que, de fato, não haja discussões sobre esse tema, já que os educadores(as) não são preparados e nosso ensino continua contaminado pelo mito da democracia racial”, destacou a candidata potiguar.
Diante disto, Ana Célia também ressaltou que precisamos, “garantir a manutenção e ampliação das cotas, numa Educação pública, gratuita, laica (sem vínculos religiosos), com a estatização de todas empresas que atuam nesta área, além de valorizar a abordagem de temas indígenas e afro nas salas de aula e materiais didáticos e punir todas as ações de discriminação no ambiente escolar.”
Negra é a raiz da liberdade. E liberdade se conquista na luta, com independência de classe!
No atual contexto, marcado por toda violência, social e institucional que tem sido incentivada por Bolsonaro, inclusive no processo eleitoral, a “esquerda” que alinha com Lula e Alckmin tem insistido que o voto na Frente Ampla é a única forma para garantir a liberdade. Uma noção não só limitada como também ilusória, como nos disse Patrícia Ramos, professora, em Minas Gerais, e candidata a deputada estadual.
“A crise econômica e política, fomentadas pela ultradireita, resultam também no aumento da violência, que vem junto com a perseguição aos setores em luta, com o objetivo de frear as possibilidades de manifestações em defesa de direitos básicos que vêm sendo ameaçados e retirados para manter a exploração. Vivemos, inegavelmente, num momento de acirramento dos ataques às liberdades democráticas. Mas, a questão é como responder a isto. O setor liderado pelo Lula, confiando nas instituições burguesas, defende o ‘Estado democrático de direito’, esvaziando, nessa defesa, o caráter do Estado burguês, que serve, com todas as suas instituições, inclusive a justiça, para manter o poder para a burguesia que, como negros e negras sabem muitíssimo bem, nunca nos garantiu liberdade de fato”, nos disse Patrícia.
Lembrando que, desde sempre, este é um Estado que nos oprime e garante a nossa exploração, seja pelas leis, seja pela repressão, Patrícia destacou que nunca podemos esquecer o que foi ensinado por nossos(as) ancestrais: “Lutamos por liberdade desde o primeiro negro foi arrancado da África. E, hoje, essa é uma necessidade para toda a classe trabalhadora, porque nossas lutas não podem ser silenciadas. Por isso, também, precisamos organizar, através dos Conselhos Populares, nossa autodefesa. Isso significa se organizar para se defender, sem precisar confiar na classe que usa a violência para nos oprimir. Como também defendemos que as forças de Segurança sejam eleitas e administradas por estes Conselhos”, concluiu Patrícia.
A conquista da liberdade também foi tema de nossa conversa com Vera Rosane, dirigente de nossa Secretaria de Negros e Negras e candidata à vice-governadora Rio Grande do Sul, que abordou o tema para discutir o quão é ilusório defender que é possível ter liberdade e a igualdade sob o sistema capitalista, algo muito em voga em torno do conceito de “racismo estrutural”.
“Hoje, amplos setores dos movimentos e ativistas negros defendem a perspectiva apontada pelo ‘racismo estrutural’ que, na essência, defende que nossa ‘luta’ deve se restringir à conquista de ‘espaços de poder e prestígio’ nas instituições; não só do Estado, mas também do setor privado. Pra nós, isto é mais que um equívoco. É vender ilusões e desviar o povo negro da luta real pela liberdade”, nos disse Vera Rosane.
“Por que?”, continuou a candidata gaúcha: “É óbvio que queremos eleger nossos candidatos. E, também, achamos justo que a administração das instituições reflita a composição racial do país. Mas, a questão não é esta. Primeiro, não basta simplesmente eleger negros ou ter representações em determinados espaços, porque a questão racial é um problema combinado com a exploração da sociedade capitalista. São duas relações combinadas. Além disso, o problema não são apenas as instituições, como querem os ideólogos do ‘racismo estrutural’. Os maiores obstáculos para termos ‘poder’ e vivamos em liberdade são o próprio caráter do Estado capitalista e o fato dele estar a serviço da classe que o controla. Por isso, só temos uma saída: lutar pela conquista deste poder para nossa classe.”
Não há reforma que possa reparar os crimes contra o povo negro
Hertz Dias, professor, músico e organizador do movimento Hip Hop, e dirigente da Secretaria de Negros e Negras do PSTU, é nosso candidato ao governo do Maranhão, numa chapa composta quase que 90% de negros e negras, refletindo a composição do estado. Na nossa conversa, ele enfatizou por que, para reparar os séculos de opressão racial, é preciso que façamos uma revolução.
Pra começar, Hertz resgatou como os partidos burgueses tradicionais se comportam diante de momentos em que o povo trabalhador pobre, negro e periférico mais necessitam. “Um exemplo: a última greve da minha categoria, aqui em São Luis, foi uma das maiores de nossa história, em função do tremendo arrocho e das péssimas condições em que trabalhamos. Naquele momento, os mesmos partidos que, hoje, prometem resolver todos os nossos problemas, só desferiram ataques, tentando, inclusive, criminalizar o movimento e substituir os grevistas. Em outro momento de extrema crise, durante a pandemia, muitos destes mesmos partidos defenderam a manutenção das escolas abertas, colocando nossas vidas em risco. Deles, a começar pelos representantes do Bolsonarismo, não esperamos nada diferente, pois esta é a postura exemplar de uma burguesia que cresceu na Casa-Grande e acumulou sua riqueza nos tratando como ‘peças’ e sob a chibata”, disse Hertz.
“Contudo, também não temos ilusões naqueles que prometem reformar o capitalismo em aliança com representantes desta mesma burguesia, um projeto sintetizado por Lula-Alckmin, com o apoio entusiasmado de partidos que se dizem ‘comunistas’ ou ‘socialistas’, como o PCdoB e o PSOL. Só pra dar um exemplo, eu vivo num dos estados (ao lado do Piauí, Tocantins e Bahia) que compõem o MATOPIBA, a chamada nova fronteira agrícola do país, que foi impulsionado pelos governos do PT, em aliança com gente do agronegócio, como Kátia Abreu, e não poderia resultar em outra coisa, além de desmatamento, cultivo voltado para a exportação, exploração e criminosa violência contra os povos tradicionais, indígenas e quilombolas”, continuou Hertz.
“É por isso que nosso programa é todo ele voltado pra ruptura radical com este sistema. Nossa primeira tarefa, se eleitos, seria a instalação de Conselhos Populares. É preciso que nos aquilombemos novamente, organizando os trabalhadores e trabalhadoras a partir de seus locais de trabalho, estudo e moradia para discutir e decidir quais são suas necessidades e como geri-las. Algo que só pode ser feito se tirarmos o dinheiro das mãos da classe dominante, expropriando as empresas e acabando com a farra da isenção de impostos das grandes fortunas. Afinal, somos nós, trabalhadores e trabalhadoras, que produzimos tudo neste país e também só nós saberemos como utilizar seus recursos”, concluiu Hertz.
Para concluir, voltemos a Vera, nossa candidata à presidência. “O combate às opressões é um princípio para nós. Eu e Raquel, por sermos negra e indígena, representamos, em grande medida, tudo quanto há de mazelas em uma sociedade marcada por séculos de violência, exploração e negativa de acesso a direitos. Mas, se é verdade que nos orgulhamos muito de nossa etnia e o fato de sermos mulheres, o que nos move, também nas eleições, é sermos socialistas e revolucionárias. Somos porta-vozes de um programa que atende às reais necessidades dos mais explorados e oprimidos e nossa campanha, pra além dos votos, está a serviço da organização da luta frontal contra os interesses e lucros dos capitalistas nacionais e internacionais, que nos impedem de viver dignamente.”, destacou Vera.
“Pra nós, cada voto é importante. Mas, nossa luta na se limita às eleições. Desde as demandas mais históricas de negros e indígenas, como a demarcação e titulação de nossas terras e quilombos, como também emprego, renda e condições dignas de vida, passam por inverter a lógica do mundo em que vivemos. É preciso expropriar a riqueza que está nas mãos de uma minoria absoluta e colocá-la nas mãos da enorme maioria. E isto é apenas fazer justiça, como já disse Marx, pois o capitalismo nada mais é do que um sistema onde poucos usurpam e expropriam a riqueza produzida pela massa e o que queremos é o socialismo, onde a massa trabalhadora, majoritariamente negra em nosso país, exproprie estes poucos e governe de tal forma a satisfazer as necessidades e garantir os direitos de todos e todas. Por isso, dissemos: ‘Aquilombe-se! Vote 16! Façamos Palmares de novo!’”, concluiu Vera.