Breve relato no fim do mundo: dor, arte e ocupação
Quanta vida cabe numa foto? E naquele pequeno guardanapo branco de crochê feito por sua vó?
Sob a montanha de entulho, pilhas de memórias e afetos, longas jornadas de trabalho para cada tijolo caído e móvel apodrecido, restos do almoço de domingo, roupas cerzidas tarde da noite, enfeites de festa tristes e opacos.
Cinara e sua família fazem parte das centenas de milhares de pessoas que perderam suas casas entre os mais de 2,5 milhões diretamente afetados pelas enchentes de maio que destruíram o Rio Grande do Sul. Em sua maioria continuam sem perspectiva porque os “planos de reconstrução” de todas as esferas de governo – municipais, estadual e federal – priorizam o andar de cima. Enquanto o governo estadual e prefeituras batem cabeça para fazer gambiarras ao estilo campos de refugiados da ONU, as moradias prometidas pelo Governo Federal estão distantes de virar realidade em jogo de empurra empurra. Segundo dados oficiais, até o momento mais de R$ 15 bilhões estão destinados para equipamentos de grandes empresas enquanto as medidas paliativas para pequenos negócios, agricultura familiar e trabalhadores sem teto não ultrapassam 20% desse valor.
Tal morosidade aparece de forma dramática na rua de Cinara. Há quase 60 dias da grande enchente, sua família e vizinhos no Bairro Sarandi em Porto Alegre olham, entre tristes e indignados, para aquelas elevações agora em putrefação, estátuas barrentas do capitalismo de desastre. Do outro lado da cidade – nos bairros altos onde a burguesia provinciana se regozija com a Campanha da filial da Globo “Pra Cima Rio Grande” e estende a bandeira do RS manchada de sangue negro – imperam higiene e limpeza cruelmente calculadas pelos prefeito bolsonarista Melo e o megahiperultra liberal governador Leite.
Na minha mente várias portas/E em cada porta uma comporta/Que se retrai e às vezes desloca
(Casa de Papelão, de Criolo, do álbum Convoque seu Buda, 2014)
Dias desses ela transformou sua dor em arte. A canção de Criolo pareceu feita para ela, para aquele momento. Seus longos e delicados dedos deslizavam pelas fotos borradas. Havia entrado no que sobrou da casa para se encontrar, se salvar, reencontrar seu passado. Seus longos e delicados dedos tocavam cada milímetro de memória congelada, cada granulação, tateando vida na paleta de luz e sombras carregada da mesma poeira uniformemente marrom que tomara o que antes eram as ruas do bairro de sua infância. Em meio à lama infectada procurava pedaços de si e dos seus; corria contra o tempo que parecia tudo corroer…
E quantos segredos não foram guardados nesta maloca? Flutuar no céu poluído da cidade e beber toda sua mentira (…)
(Idem)
Ocupação Arvoredo: reflorestar a cidade com rebeldia
Na outra ponta da cidade, onde outrora os verdadeiros donos desse canto do mundo batizaram o Guaíba (na língua tupi – “ rio que se alarga”), cuidaram de suas margens e se instalaram nas colinas próximas serpenteadas de arvoredos, um grupo de desabrigados iniciou nova dinâmica em meio ao caos.
Na antiga Rua do Arvoredo, o prédio que leva seu nome – repleto de significados na cidade cuja administração municipal especializou-se em promover o contínuo arboricídio – tornou-se símbolo de resistência à barbárie pós-enchente. O imóvel, abandonado há mais de 10 anos está entre os 100 mil desocupados de Porto Alegre e serviu de estopim para outras ocupações em curso.
Estou sem notícias de Cinara. Sei que das famílias que estão no Arvoredo, várias vieram da região onde ela e os seus tinham seu lar. Na visita de ontem a procurei entre os novos moradores. Procurei por seus longos e delicados dedos acariciando as fotos que conseguiu salvar. Espero encontrá-la aqui ou talvez em outro ponto da cidade, construindo novas memórias, novos arvoredos, despoluindo do céu da cidade toda mentira.