Bases para o lançamento de uma tese ao CONUNE
Texto 1: Um resgate da história da UNE e da importância da disputa do movimento estudantil
A UNE (União Nacional dos Estudantes) é a entidade oficial dos estudantes universitários do Brasil. Em teoria, ela representa todos os estudantes das universidades públicas e privadas do país. Assim, ela é a principal entidade estudantil do Brasil e uma das maiores do mundo. Ela é como se fosse um grande grêmio, ou centro acadêmico, que abarcasse cada faculdade, pública ou privada, de todos os cantos do país.
Em julho deste ano, ocorrerá o 59º Congresso da UNE (CONUNE). E o Rebeldia participará dele, para disputar nosso programa e nossas ideias. O intuito deste texto é abrir uma série de textos que explicam o que pensamos sobre os diversos temas em debate, e que darão base para o lançamento da tese que apresentaremos ao CONUNE: Sejamos realistas, façamos a revolução do nosso tempo!
Quando falamos da UNE, podemos dizer que há duas UNEs: a primeira, ligada historicamente ao conjunto das lutas dos estudantes e do povo brasileiro, que existiu desde a fundação da entidade, passando pelas lutas contra o Vargas, a ditadura militar, o governo Collor e assim por diante. E a segunda, é a UNE que temos hoje, que mudou em definitivo com a subida do PT ao governo federal em 2002.
Nosso objetivo nesse texto é retomar um pouco dessa história recente da UNE. E fazemos isso não apenas para retomar um debate historiográfico. Mas para explicar o significado de nossa ida ao CONUNE, que, para nós, está ligada à necessidade imperativa da disputa do movimento estudantil, no marco da luta pelos rumos do país e de nossas vidas.
A UNE ligada às lutas dos estudantes e do povo brasileiro
A UNE foi fundada em meados de 1938. Porém, sua história é marcada por uma descontinuidade. Após o golpe de 1964, que deu início ao regime militar, ela foi colocada na ilegalidade. Abriu-se um período de exceção no país, que passou a ser governado por uma ditadura militar, que massacrou os movimentos sociais e dos trabalhadores, prendendo, torturando e assassinando ativistas, grevistas e políticos.
Na década de 80, o movimento estudantil foi um dos protagonistas na luta contra a ditadura. As manifestações organizadas por ele eram de massas, reuniam milhares de estudantes e trabalhadores. Serviram em grande medida para ajudar no despertar do conjunto da sociedade brasileira para a necessidade da luta contra a ditadura.
Um exemplo disso foi a luta pela liberdade dos presos políticos. Temos o caso de ativistas operários, que hoje estão no PSTU, e que na época foram presos pela ditadura por organizar a luta dos trabalhadores, como o Mancha e o Zé Maria. Na época, o movimento estudantil organizou manifestações de massas, que polarizaram o conjunto da sociedade, exigindo a liberdades desses militantes e ativistas. E essas manifestações foram decisivas, acabaram repercutindo por todos os setores da sociedade, e ao fim ajudaram na conquista da liberdade desses presos políticos.
No marco desse grande ascenso de luta dos estudantes, a UNE foi reconstruída, como a direção do movimento estudantil que estava se rebelando contra o regime militar. De fato, o papel histórico da UNE nesse período, como expressão fundamental das lutas dos estudantes e do conjunto da sociedade brasileira contra a ditadura, não pode ser apagado. Por isso dizemos que a história da UNE está muito entrelaçada com a história da própria luta de classes no Brasil. Pois o ressurgimento e reconstrução da UNE foi parte de todo um processo histórico, de levante dos trabalhadores contra o sangrento regime militar.
A história da reconstrução da UNE e das lutas contra a ditadura são apenas uma demonstração de como a UNE, nesse período, esteve intimamente vinculada aos rumos e a história da própria luta dos estudantes e do povo brasileiro. E esse vínculo se mantém, mesmo após a queda da ditadura e a abertura política. É assim que também nas lutas contra o governo Collor, por exemplo, o movimento estudantil, tendo como a UNE uma de suas principais referências de direção, seguiu cumprindo um papel destacado.
É importante retomarmos toda essa história da UNE, que aqui citamos superficialmente, pois ela contrasta de forma nítida com o papel que a UNE passa a cumprir, anos depois, após o ascenso do PT ao governo federal.
Ascenso do PT e adaptação ao regime
As lutas do movimento estudantil contra a ditadura na década de 80 não foram um fato isolado na conjuntura brasileira. Elas foram parte de todo um despertar político que sacudiu o Brasil. Liderado pelos operários grevistas dos grandes centros industriais, como os metalúrgicos do ABC, estouravam lutas pelo país todo, com greves, piquetes e ocupações. Esse foi o contexto político da década de 80, que serviu de base para as lutas do movimento estudantil e consequentemente à reconstrução da UNE, mas também serviu de base à construção de organizações como o PT (Partido dos Trabalhadores) e a CUT (Central Única dos Trabalhadores).
O crescimento do PT no período foi vertiginoso. Em 1989, Lula já ia para o segundo turno da eleição presidencial, ficando em segundo lugar com uma diferença de apenas 7% de votos. Desde então, Lula vira uma das principais figuras políticas do Brasil, e o PT segue crescendo, conquistando prefeituras, governos, aumentando bancadas parlamentares. E quanto mais prefeituras, governos e parlamentares o PT elegia, mais ele se adaptava ao regime da democracia dos ricos, e mais ele abandonava a perspectiva de independência da classe trabalhadora. Essa é a mudança qualitativa para o PT. Se até então ele tinha como projeto organizar a classe trabalhadora para lutar contra o governo, agora seu projeto era de se tornar ele próprio o governo. De um partido que era contrário à ordem social vigente, o PT se transforma ele próprio em um partido da ordem. Todo esse processo vai culminar, em 2002, com a eleição de Lula à presidente, o que se torna um divisor de águas na história do país.
As organizações que dirigem a UNE, como a UJS (União das Juventudes Socialistas), Levante Popular da Juventude, JPT (Juventude do PT), entre outras, assumem a postura de apoio ao governo do PT. Elas historicamente foram aliadas e mesmo ligadas ao PT, e têm acordo com o programa do PT, que é conhecido como um programa neodesenvolvimentista, e que será discutido por nós com maior profundidade na parte 3 desta série de textos.
O fato de essas organizações apoiarem o PT gera um problema muito concreto, pois como agora o PT governava o país, elas se veem na direção de uma entidade estudantil, que em tese tem como objetivo organizar a luta dos estudantes para enfrentar as reitorias e governos, porém ao mesmo tempo em que elas apoiam e são aliadas desse mesmo governo.
Assim, se opera uma mudança na orientação da UNE, e no papel que ela cumpre no movimento. Ela abandona o papel do período anterior, de ajudar a organizar os estudantes a lutarem contra os governos, e assume o papel de apoiar o governo. Mesmo que isso significasse impedir e desmobilizar a luta do movimento estudantil contra o governo. É por isso que dizemos que nesse período a UNE se transformou num “ministério do movimento estudantil” do governo. Pois ao invés de se pautar pela luta dos estudantes, ela começa a ser orientada pelas políticas do governo e da defesa dele. Ela vira um agente do governo dentro do movimento estudantil.
O problema é que o PT, ao governar o capitalismo, se vê obrigado a seguir desferindo uma série de ataques aos trabalhadores e a juventude. É o caso da primeira Reforma da Previdência, da lei antidrogas, da lei de segurança nacional, do ajuste fiscal, e uma série de outros ataques, que de conjunto levaram a um enriquecimento cada vez maior dos bilionários do país e do mundo, em detrimento do rebaixamento da condição de vida dos trabalhadores, jovens e pobres. Para os estudantes, por outro lado, veio ataques como o REUNI, que significou uma expansão totalmente sem planejamento e sem verbas das universidades públicas, e o PROUNI, que significou a transferência de dinheiro que deveria ser investido na educação pública para o setor privado. Essas medidas foram grandes ataques, que em parte explicam o fato de hoje a educação superior no Brasil ser quase toda privatizada, para a alegria dos grandes tubarões da educação, enormes conglomerados de empresas, como a Kroton, UNIP, entre outras, que hoje dominam a educação superior do país.
Os estudantes não aceitaram esses ataques calados. Nas universidades e escolas de todo o país, organizaram suas lutas contra esses os demais ataques, inclusive os levados adiantes pelos governos do PT. Foram anos de muitas greves, movimentos nacionais de ocupação de reitorias, e assim por diante. Mas apesar disso, a linha da UNE seguia sendo de apoio ao governo. Isso levava a um enfrentamento da UNE com os estudantes em lula. Muitas vezes, esse enfrentamento não era apenas político, a UNE ia nas lutas e batia fisicamente nos estudantes, tentava desmontar assembleias, impedir a organização de greves, de paralisações, etc.
É por isso que nesse período a UNE ganha a fama de “pelega”. Chamamos alguém de pelego quando ela é “puxa-saco” dos patrões e governos, quando ela é capacho deles. E, de fato, a UNE era o capacho do governo federal no movimento estudantil. A vanguarda de conjunto das lutas estudantis odiava a UNE, porque ela aparecia no movimento apenas para desmontar as lutas.
Tamanha era a péssima imagem que a UNE possuía, que as organizações da oposição de esquerda que permaneceram na UNE durante esse período eram obrigadas a se diferenciar ao máximo das direções majoritárias e governistas da entidade. Foi nessa época que surgiu a Oposição de Esquerda. Que era uma forma de diferenciar ao máximo aqueles que eram do campo da direção da UNE e aqueles que eram oposição, que estavam na UNE mas não concordavam com a política de sua direção.
Inclusive, a Oposição de Esquerda tentava se diferenciar até na estética. Era nesse sentido que se utilizavam as camisetas e bandeiras vermelhas da UNE. Que os militantes da Oposição usavam nos movimentos, para poderem dizer que eram da UNE mas para que as pessoas entendessem que isso não significa que eles concordavam com as coisas que a UNE fazia. A Oposição de Esquerda já usou a camiseta vermelha, e fazia porque era obrigada, para se afirmar diferente das direções majoritárias da UNE. Para não ser expulsa dos espaços do movimento estudantil e rechaçada pelos ativistas, que nutriam um ódio profundo à UNE que era capacho do governo federal.
Todo esse enfrentamento entre os estudantes em luta e a UNE produziu também um fenômeno de reorganização no movimento estudantil. Foi a partir disso que surgem as Executivas Nacionais de curso, os comandos nacionais de luta e de greve, e também a ANEL (Assembleia Nacional de Estudantes – Livre). Foram tentativas de se produzir entidades que organizassem a luta dos estudantes por fora da UNE, uma vez que essas lutas de fato aconteciam por fora e mesmo contra a UNE.
Para manter o controle da UNE, se aprofundam os métodos burocráticos
Agora, como que as direções da UNE podiam fazer para manter o controle de uma entidade que deveria servir para representar os estudantes do país inteiro, e que estão enfrentando o governo e fazendo lutas apesar e mesmo contra essa mesma entidade?
É nesse momento, portanto, que se aprofundam os métodos burocráticos na entidade. Para manter o controle de sua direção, o campo Majoritário (formado pelas principais correntes que dirigem a UNE, tendo a UJS como sua principal corrente) retira os estudantes dos processos decisórios da entidade. Para manter a direção de uma entidade representativa que não mais representa os estudantes, a UJS retirou a voz desses estudantes da entidade.
Esses métodos burocráticos se mantêm, inclusive, até hoje. É o que vemos pelo país, com a imposição de conduções extremamente anti-democráticas das eleições dos delegados da CONUNE, incluindo prazos e critérios absurdos para a conformação das chapas, de forma a impedir que correntes de oposição possam participar do processo. E é por isso que vemos hoje o show de impugnação de chapas da Oposição de Esquerda pelo país inteiro, enquanto que as chapas da UJS e demais organizações da direção da UNE são homologadas mesmo quando não cumprem os critérios que essas próprias organizações definiram. É o vale tudo para manter a direção da entidade, mesmo que para isso se utilizem de mentiras, de trapaça e de manobras burocráticas.
Governo Temer, Bolsonaro, e volta de PT ao poder
Até o final do governo Dilma, a UNE se consolidou, portanto, como um grande aparato burocrático, sem democracia interna, e dirigida por um projeto político de apoio ao governo federal e de enfrentamento aos estudantes em luta.
Com a saída do PT do governo, a UNE se relocaliza no movimento, pois volta a ser oposição aos governos, primeiro de Temer, e depois de Bolsonaro. Isso não quer dizer que os problemas de UNE se resolvem. Isso por dois motivos: Primeiro, porque os métodos burocráticos já estão totalmente consolidados na entidade. Mas segundo, porque o projeto político da direção da UNE, que é composto por organizações como a UJS, Levante Popular, e as juventudes do PT, segue sendo um projeto capitalista. É o chamado projeto desenvolvimentista, que abordaremos com maior profundidade na parte 3 dos artigos dessa série.
Porém, fato é que uma vez na oposição ao governo, a UNE deixa de se enfrentar com as mobilizações estudantis para defender o governo. Não é que ela seja a maior impulsionadora das lutas, mas ela para de tentar evitá-las, e inclusive participa delas. É nesse marco que a UNE participa e mesmo protagoniza grandes mobilizações, como o Tsunami da Educação e as lutas contra o Bolsonaro. É nesse momento que o Rebeldia retorna à entidade, para disputar o movimento estudantil que os estudantes que vêm na entidade alguma referência para a sua luta.
Ao fim de 2022, os trabalhadores e a juventude brasileira conquistam uma importante vitória, que foi a derrota eleitoral de Bolsonaro. Isso reconduz Lula ao governo federal. E a UNE deixa o campo de oposição ao governo e volta a um projeto de defesa do governo. Aí se retoma a luta para que a UNE rompa com o governo e organize a luta dos estudantes, o que discutiremos com maior profundidade nos próximos artigos dessa série.
A importância imprescindível de disputar o movimento estudantil
Discutiremos o problema do projeto político atual da UNE e de suas principais correntes na segunda e terceira parte da série de artigos que publicaremos. O importante aqui, ao retomar toda a história da UNE, é discutir um aspecto que para nós é fundamental, que tem a ver com o motivo pelo qual o Rebeldia vai ao CONUNE e compõem os fóruns desta entidade, apesar dos problemas de método e políticos que ela possui.
O centro da questão é que o movimento estudantil é, no Brasil, um movimento de massas. São milhares de estudantes e jovens, espalhados pelo país inteiro, que se organizam em CAs, DAs, DCEs, grêmios, uniões estaduais e municipais, enfim. O grande problema é: esses milhares de ativistas, nos momentos dos grandes enfrentamentos da classe trabalhadora e de sua juventude contra os governos e contra o capitalismo, estarão de que lado da barricada?
A própria história da UNE, por exemplo na luta contra a ditadura militar, demonstra a importância que pode ter o movimento estudantil quando ele se alia ao movimento dos trabalhadores nas suas lutas decisivas. O que está em jogo é muito profundo. No momento em que o país atravessar suas lutas mais importantes, os jovens e estudantes estarão ao lado da classe trabalhadora ou contra ela? Hoje por hoje, a posição política da UNE já faz com que fiquemos reféns dos bilionários, ricos e burgueses. E quando vierem batalhas mais decisivas? E se milhões voltarem a tomar as ruas do país, como fizeram há menos de 10 anos atrás, em Junho de 2013?
Qual será o caminho que a atual direção do movimento estudantil irá leva-lo nesses momentos? Uma direção que, mesmo nos momentos em que o país não atravessa grandes conflitos, senta com o inimigo, como tem feito a UNE ao ocupar o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – ao lado de presidentes de federações de indústrias do país, de presidentes das maiores empresas do agronegócio no país, de CEOs de grandes empresas e bancos, como Nubank, Itaú, Huawei, Facebook, JBS, só pra citar algumas – o que fará essa direção quando explodir a revolta do povo e dos trabalhadores, contra todos esses que estão no mesmo Conselho que a UNE, debatendo os “rumos do país” em conjunto?
É por isso que vamos ao Congresso da UNE. Porque lá estarão reunidos de 10 a 15 mil estudantes. E nós temos a obrigação de ir lá, e disputar a consciência desses jovens. Não apenas para convencer uma ou outra pessoa sobre nossas ideias, mas para disputar o conjunto do movimento estudantil. Para que nos momentos das maiores lutas, nas batalhas mais importantes, o movimento estudantil seja um aliado decisivo dos trabalhadores e do povo brasileiro. Portanto, para nós, isso não é mera “briga de torcida” entre as correntes, não é apenas uma simples “disputa de opiniões”. Tem a ver com brigarmos pelo destino da juventude trabalhadora brasileira, e, portanto, brigarmos pelo destino do próprio país e de nossas vidas.
Retomemos, portanto, a história da UNE. Mas não para simplesmente reivindicar essa entidade. Façamos isso para reivindicar o potencial que pode ter o movimento estudantil. E para usarmos isso de inspiração, hoje, pois vamos ao Congresso da UNE para reivindicar essa história, e para lutar para que essa história não fique apenas no passado, mas seja parte do presente da entidade.