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Até quando vamos nos acostumar à barbárie?

Diego Cruz

2 de setembro de 2024
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Diz uma parábola popular que, se você colocar um sapo numa panela com água, e fervê-lo lentamente, o anfíbio vai se deixar cozinhar passivamente e virar sopa sem ao menos perceber.

Ao que parece, essa história não é bem assim. Mas não deixa de ser uma boa analogia para mostrar nossa capacidade de resignação diante de uma sucessão de barbáries diárias. Barbárie é um termo muito popular na bolha da esquerda, que pode significar, de forma coloquial, algo como uma violência extrema, num sentido mais amplo e sob vários aspectos.

No Brasil, a população ferve num caldeirão que esquenta de forma cada vez mais acelerada. As borbulhas que despontam na superfície da água, porém, não causam desespero, pelo contrário, são normalizadas. 

No início do ano, o Rio Grande do Sul ficou debaixo d’água no evento climático extremo mais catastrófico do país. Dezenas de milhares de pessoas ficaram absolutamente desassistidas pelos governos e, até hoje, sofrem as consequências desse descalabro. Uma tragédia causada pelas empresas que poluem, e agravadas pelo poder público.

Nas últimas semanas, o Brasil ficou debaixo de fumaça por conta das queimadas criminosas na Amazônia e no Pantanal, e o fogo tocado pelo agro em vários estados. Em ambos os casos, as coberturas jornalísticas duram alguns dias, e depois são esquecidas na velocidade típica das redes sociais, para dar lugar a algum outro tema.

Você pode pensar que esses casos não geram tanta indignação por serem atos esparsos, sem um agente muito bem definido. Mas em fevereiro último, um jovem foi assassinado por um policial militar enquanto andava de moto pelas ruas da Brasilândia, periferia de São Paulo. O PM simplesmente furou o pescoço do garoto com um fuzil, sem qualquer motivo. Ou melhor, havia um motivo, era um menino que teve o azar de ser pobre e morar na periferia. Seu nome era Matheus de Menezes Simões.

Outra expressão desse tempo em que vivemos são os atropelamentos causados por ricos, a bordo de seus Porsches, matando pobre na rua e ficando tudo por isso mesmo.

(Tomo a liberdade para abrir um breve parênteses aqui. Quando leio essas notícias me vem na lembrança um professor que lecionava Legislação na faculdade. Promotor, ele anotava seu telefone na lousa e dizia que, caso houvesse algum problema com a polícia, era só ligar para ele. E contava a história de um ex-aluno que, voltando de uma festa, atropelou e matou uma pessoa em situação de rua. Contatado, esse professor foi ao local, conversou com os policiais e liberou o criminoso. “Imagine um menino, de família, estragar a vida por conta de um andrajo, não pode”.)

Bem, fato é que normalizamos o absurdo. Resignamo-nos à tragédia. E aqui me refiro ao extremo da violência mesmo num sistema de exploração e opressão capitalista que é, por si só, o cúmulo da injustiça.

Posso estar errado, mas para mim um ponto de inflexão nessa percepção, ou dessensibilização, ocorreu no massacre do Carandiru, quando, em 1992, a polícia trucidou 111 detentos, quase todos sem nem condenação. O comandante da chacina, Coronel Ubiratan, não só ficou impune como se candidatou com o número 111, num ato de puro deboche. A justiça formal que não conheceu veio finalmente pelas mãos da própria namorada, que o matou a tiros em 2006. E hoje, esse verme é ainda louvado por cadetes em exercícios militares quartéis afora.

Outro ponto de inflexão foi, evidentemente, os mais de 700 mil mortos durante a pandemia. Você, com absoluta certeza, conhece alguém que morreu por responsabilidade direta desse assassino que vestia a faixa presidencial. E, hoje, o assunto morreu. Bolsonaro não só está livre, leve e solto como, embora inelegível, influencia diretamente os rumos da política nacional. O roubo de joias lhe dá mais dor de cabeça na Justiça que o assassinato de centenas de milhares de pessoas.

Como chegamos a esse ponto?

Vivemos num processo acelerado de decadência e degradação econômica, política e social. O Brasil caminha a passos largos para ocupar um lugar ainda mais subordinado ao imperialismo e aos monopólios internacionais. Logo, mais superexploração, retrocesso nas condições de vida e tudo o mais. Então, é natural que tentem normalizar a barbárie. Que te digam que o mundo é assim mesmo e que, se você é pobre, é porque não se esforçou o suficiente. Que trabalhar em cima de uma moto, 15 horas por dia, correndo risco de vida para não ter o mínimo de direito, é uma oportunidade de sobrevivência e que você deveria agradecer por isso.

Estão aumentando o fogo da fervura cada vez mais.

Agora, quem deveria expressar essa indignação? Estava assistindo a um debate na TV com os candidatos à Prefeitura de São Paulo. Não todos, claro, porque candidatos como Altino do PSTU foram vetados. Mas estava lá Guilherme Boulos, do PSOL. Perguntado sobre suas propostas para saúde, defendeu um tal de “Poupa Tempo da Saúde”. Pelo que entendi, seria uma medida para agilizar o tempo de espera nas filas do SUS. 

Legal, né? Se as UPAs e UBS’s não estivessem em completo estado de abandono e precariedade. Se a população mais pobre não tivesse que acampar de madrugada em frente ao posto, muitas vezes desistindo de ter um atendimento. Enquanto que o setor da saúde privada é o quarto em número de bilionários brasileiros, concentrando uma fortuna de R$ 797 bilhões num grupo de 18 superricos que nadam em dinheiro explorando a saúde das pessoas e lucrando justamente por conta desse descalabro da saúde pública.

Mas a proposta do candidato de esquerda é reduzir um pouco as filas. Ou baixar um pouquinho a temperatura do caldeirão que nos cozinha. Proposta que, aliás, todos os candidatos da direita também fazem.

E depois ainda se assustam com o aparecimento de canalhas como esse bandido do Pablo Marçal. Se o jovem pobre da periferia está convencido de que o mundo é assim mesmo, a única saída é individual. Vou garantir o meu e o da minha família, e esse cara que se diz contra todos vai me ensinar a ganhar dinheiro, e não deixar o Estado me atrapalhar. Ao contrário do que pensa grande parte dessa esquerda, o povo não é burro ou alienado. Pensa, sim, de forma racional e, diga-se de passagem, mais sofisticada que muitos deles.

O Brasil foi construído com base na escravidão, na violência mais brutal e sob muito, muito sangue. Mas a passividade nunca foi nossa marca. Dos quilombos, às greves operárias do início do século, às mobilizações que derrubaram a ditadura, nosso povo lutou e nunca se resignou à barbárie.

Mas há uma batalha, até ideológica, para escamotear esse passado de violência e esse presente de injustiça e degradação.

O óbvio precisa ser dito: não é normal que o Brasil pague mais de R$ 700 bilhões só de juros a banqueiros, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido do governo, suspenda decisões judiciais que obrigavam a compra de medicamentos para crianças com uma forma rara de distrofia muscular (ao custo de R$ 15 milhões). Aliás, você provavelmente nem deve ter visto isso no jornal, não é? Claro, é normal…

É preciso ser dito que não é normal que um PM enfie a ponta do fuzil no pescoço de um garoto da periferia. Não é normal que Tarcísio venda a água de São Paulo a conglomerados financeiros estrangeiros. Não é normal que o agronegócio bote fogo e nos sufoque com fumaça. Não é razoável que os indígenas continuem sendo massacrados e ameaçados com o famigerado Marco Temporal.  

Quando me dizem que o PSTU é “extremista”, eu respondo que não.Deixar 700 mil pessoas morrerem, quando isso poderia ser evitado, é extremista. A política neoliberal do governo Lula que acabou de anunciar um corte de R$ 16 bilhões do BPC, um benefício pago a idosos carentes e pessoas com deficiência, é extremista. O arcabouço fiscal, que tira recursos da saúde, educação e demais serviços públicos, é extremista. 

O capitalismo é radical em garantir as fortunas dos bilionários. Os governos capitalistas são extremistas. A imprensa é extremista. Não admitem a mínima contestação. Não admitem que, por exemplo, candidatos do PSTU debatam na TV contra os seus candidatos do sistema.

Já nos tiraram muitos direitos. Direitos trabalhistas, de nos aposentarmos, ou até mesmo de ter uma casa e morar com dignidade. Mas não vão nos tirar o direito de nos indignar. Não somos sapos e não vamos nos deixar cozinhar até a morte.

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