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Até onde chegou Patrícia G

Lena Leal

30 de julho de 2024
star4.9 (29 avaliações)

Eu sou uma pedra arrancando outras
pedras que rolam sobre mim (…) Sou
um urro sem ponto de apoio.
(Patrícia Galvão – Até onde chega a sonda/1939)

Poeta, escritora, jornalista, cronista, tradutora, ilustradora, crítica, dramaturga e militante socialista, Patrícia Rehder Galvão nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 1910. Apesar da produção intelectual impressionante, muitos de seus escritos continuam inéditos em livro. Paira ainda sobre sua história a mítica pobre e desqualificadora de “musa do modernismo”, cuja irreverência e beleza estonteantes despertaram paixões no meio intelectual paulista pós-Semana de Arte Moderna de 22. Vítima do machismo e misoginia, seu feminismo como modo de vida lhe rendeu caracterizações absurdas, constantes em vários relatórios policiais e também em resoluções do PCB (sic), em que é coincidentemente acusada de “seduzível, descontrolada, degenerada sexual”.

Segundo seu filho Geraldo Galvão Ferraz, ela detestava que a chamassem de Pagu (apelido fruto de um erro de Raul Bopp mas que acabou por perseguí-la a vida toda), considerada por Patrícia um ser que não mais existia, cuja vitalidade juvenil fora há muito tempo “esmagada por engrenagens implacáveis”. Parte destas engrenagens estão expostas – como feridas abertas – em seus escritos prisionais. Neles há a dor, mas também pulsa sua capacidade criativa e aguda sensibilidade de jovem crescida no bairro operário do Brás. Fermentos que fizeram crescer em si um entusiasmo pela vida que a levou para o mundo da arte, da ruptura feminista e da militância revolucionária.

Assim, depois de convencer Oswald a seguí-la na militância (muitos biógrafos de Oswald de Andrade reduzem ou invisibilizam a influência intelectual de Patricia na produção dele), ingressa no Partido Comunista em 1931 e, em 1933, parte para uma volta ao mundo como correspondente de jornais brasileiros, ainda sob orientação do PCB. Quando retorna ao Brasil em outubro de 1935 já elaborava críticas à burocratização soviética e havia feito contato com a Oposição de Esquerda da III Internacional.

Até onde chega a sonda

Não aceito o esmagamento. Não entregarei
os pontos à impotência. Prefiro continuar
arquejando(…) Não sei aonde irei. Mas irei.
(p. 97-98)

Mal retorna e já é presa, abrindo um período de sucessivos e longos encarceramentos, entre 1935 e 40, em que sofreu torturas físicas e psicológicas tanto por parte da ditadura varguista quanto dos ex-companheiros de partido.

Neste mesmo período, entre 1937 e 39, o PCB seguia o processo de expurgo internacional e expulsava vários militantes que resistiam à burocratização anti-marxista e se vinculavam às ideias da Oposição de Esquerda dirigida por Leon Trotsky. Patrícia mesmo presa é nomeada presidenta de honra do recém-fundado Partido Socialista Revolucionário, formado por diversos coletivos marxistas. Não à toa, seu texto “Carta de uma militante” é um vigoroso manifesto que mostra sua solidez teórica.

Foi nesse contexto de múltiplos ataques que Patrícia escreveu “Até onde chega a sonda”. Segundo o prefácio de Silvana Jeah e Eloah Pina, “o texto deixa entrever a situação-limite em que a autora se encontrava. Trata-se de uma escrita de fluxo, sem começo, meio e fim, alimentada pelo desespero de anos extenuantes de prisão“. Aliás, o prefácio se constitui um livro à parte, com inúmeras referências ao universo complexo e requintado de Patrícia contido nos escritos prisionais. Aponta, com maestria, as pistas de diversas influências no fluxo de textos – sejam do filósofo existencialista ucraniamo Lev Chestov, quanto de Dostoievsky, Freud e Kierkeegard, entre outras.

Não aceitando a derrota, como previu em seus escritos prisionais, Patrícia se manteve na vanguarda até o fim da vida, em 1962. Escreveu contos, poesias, continuou inventando pseudônimos para as várias que sempre teve dentro de si como Solange Sohl e King Shelter. Vinculou-se ao Teatro Experimental do Negro de São Paulo, acompanhando produções e escrevendo críticas. Traduziu e dirigiu peças como “A cantora careca”, de Eugene Ionesco, “A filha de Rappaccini”, de Octavio Paz e textos da surrealista Leonora Carrington.

Como indagou em seus escritos – “Porque fincar barreiras quando eu tenho toda a extensão para voar?”

Patrícia voou. Foi até o abismo e criou asas.

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