Internacional

As Olímpiadas de Paris em cena

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

9 de agosto de 2024
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2024.08.05 – Jogos Olímpicos Paris 2024 – Ginastica artistica – A ginasta brasileira Rebeca Andrade compete na final do solo. Foto: Alexandre Loureiro/COB.

Acompanhar as Olimpíadas é literalmente inevitável. E não só pelo bombardeio midiático. Afinal, não é preciso sequer ser amante dos esportes para reconhecer que os Jogos concentram quem e o que há de melhor no universo esportivo e para vibrar e se emocionar com desempenhos que são demonstrações, muitas vezes espetaculares, da capacidade humana em superar seus limites e atingir objetivos em base à atuação coletiva ou à dedicação e ao treino.

Já escrever sobre o tema, contudo, são “outros 500”. Primeiro, porque as Olimpíadas, diferentemente de seu suposto significado na Grécia Antiga, pra nada significam um intervalo nos conflitos e contradições que varrem o “mundo real”. Pelo contrário. Os Jogos também são contaminados pelas mazelas do capitalismo e pela profunda polarização que tem caracterizado a atual crise do sistema.

Na largada, não faltaram protestos

Assim como todas edições anteriores, a preparação de Paris para as Olimpíadas foi marcada por protestos e greves, que denunciaram falcatruas financeiras, desvio de verbas e, principalmente, superexploração da mão de obra. E, em função disso, às vésperas da abertura dos Jogos, por exemplo, houve movimentos grevistas nos aeroportos e serviços públicos.

Contudo, a situação mais grave se deu entre os milhares e milhares de “imigrantes sem documentos” que trabalharam nas obras submetidos a jornadas extenuantes, expostos a enormes riscos, sem pagamento de horas extras, sem vale-refeição ou quaisquer outros direitos trabalhistas.

Hipocrisia à toda prova

Por isso mesmo, as contradições em Paris vieram à tona já na cerimônia de abertura, quando, tentando vender o país como berço e guardião eterno dos desde sempre falsos ideais burgueses de “igualdade, liberdade e fraternidade”, as autoridades francesas “permitiram” a encenação de um espetáculo que acabou escancarando a enorme polarização alimentada pela crise do sistema, cada vez mais evidente na própria França e no resto da Europa.

De cara, tiveram que engolir uma inesperada homenagem da delegação da Argélia, que jogou rosas no Rio Sena, lembrando as centenas de argelinos que, em 1961, foram “desaparecidos” nas águas que cortam a cidade por estarem lutando contra o imperialismo francês.

Na sequência, ainda tiveram que lidar com protestos mundo afora por parte da ultradireita que se escandalizou com a celebração de diversidade e liberdade que saltou das entrelinhas de apresentações repletas de negros e negras, imigrantes, mulheres e LGBTI+.

Nada muito “revolucionário”. Apenas demonstrações de como a Arte, com o mínimo de independência e criatividade, pode questionar a ordem das coisas. Exemplo disto foi a apresentação, ao lado da oficialíssima Guarda Republicana, de Aya Nakamura, nascida no Mali e que acumula o título de voz francesa mais conhecida fora do país e da mulher que mais sofre ataques racistas e machistas nas redes sociais. Ou, ainda, a ousadia de colocar uma negra como porta-voz do Hino Nacional francês.

Dessacralizando a História

Contudo, na abertura, a cena que acabou despertando mais ódio dentre os reacionários, fundamentalistas e conservadores foi uma sacudida mescla de desfile e baile protagonizada por homens e mulheres de várias etnias, a maioria transexuais e “drag queens”, que, de forma nada sutil, assumiram as posições dos personagens de “A última ceia” (Leonardo da Vinci, 1495), encenando um “banquete dionisíaco”, ou seja, em homenagem ao deus grego da festa e do prazer.

Diante da polêmica, até o criador do espetáculo tentou sair pela tangente, afirmando que se inspirou no quadro “Festa dos Deuses” (1635), de Jan Harmensz van Bijlert, quando se sabe que, na verdade, o pintor holandês já havia se remetido à obra de Leonardo, a qual, por sua vez, já na sua época, era um questionamento aberto dos dogmas cristãos, pura e simplesmente por apresentar os personagens da Ceia de forma naturalista, cheios de sentimentos e emoções humanos, e pintados em base ao conhecimento científico e não como pura e simples demonstração da fé.

As denúncias de que a performance foi um ataque inaceitável ao cristianismo é revelador da hipocrisia que brota das ideologias opressivas e como elas se entrelaçam com o discurso imperialista: tratar as manifestações (“mundanas” ou “sagradas”) das culturas “dominantes” como intocáveis e dignas de respeito cego, enquanto as dos povos originários e não-brancos podem ser destruídas, invisibilizadas e, de fato, atacadas, sem dó nem piedade.

Mulheres negras fazendo História

Mas, no que se refere ao questionamento da ordem, não há como não se mencionar as cenas protagonizadas particularmente pelas mulheres negras. Exemplo disto, mais do que a “reverência” das norte-americanas Simone Biles e Jordan Chiles a Rebeca Andrade, foi vê-las de mãos dadas, no pódio, numa cena inédita e comovente exatamente pelo reconhecimento mútuo do significado desta conquista, que teve gostinho de tapa na cara dos racistas.

E o que dizer, então, da judoca Bia Souza detonando uma sionista, membro das famigeradas Forças de Defesa Israelense, que sequer deveria estar nas Olimpíadas, em função de representar um Estado racista e genocida, assim como aconteceu com a África do Sul, por 28 anos?

Ou, ainda, como não saudar a boxeadora argelina Imane Khelif, considerada intersexo (ou seja, com características biológicas de ambos os gêneros), que atacada como transgênero, derrubou uma adversária após a outra, desafiando o discurso de ódio, inclusive de Giorgia Meloni, Primeira-Ministra italiana, e do asqueroso Donald Trump?

Muitos outros exemplos poderiam ser dados e merecem ser celebrados. Mas, também, sem ilusões. Sabemos que a trajetória destas mulheres, como de tantos outros desportistas que saíram das periferias do mundo, são exceções à regra, já que, para a maioria da humanidade, ser “vitorioso”, hoje em dia, principalmente sendo não-branco e periférico, é ter um prato de comida na mesa, um emprego, moradia, acesso à Educação e à Saúde ou não ser discriminado ou assassinado ao pôr os pés na rua.

Contradições à parte, as Olimpíadas são exemplares, sim, do gigantesco potencial dos seres humanos. Um potencial que, contudo, só poderá ser plenamente desenvolvido num mundo onde diferenças e desigualdades também não afetem o direito à prática esportiva.

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