Antonio Cícero: Guardemos o poeta!
Alerta: O artigo toca em tema sensível, particularmente para quem enfrenta sofrimentos e transtornos psíquicos. Se você está passando por problemas, procure ajuda.
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No dia 23 de outubro, até mesmo as pessoas mais próximas do filósofo, escritor, crítico literário e poeta Antonio Cícero foram surpreendidas pela publicação de uma breve e comovente carta de despedida, postada por seu companheiro, Marcelo Pires, com quem vivia desde 1984, anunciando sua decisão em recorrer à “morte assistida”, procedimento legal na Suíça, onde eles estavam.
“Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”, escreveu Cícero, que recém havia completado 79 anos, afirmando que, apesar de ainda lúcido, o avanço do Alzheimer já o impedia de fazer as coisas que mais gostava na vida: ler, escrever e conviver com as pessoas que amava.
“Entendo meu irmão. Cícero foi coerente com tudo que pensava. Desde o fim [numa referência ao ensaio filosófico ‘Desde o fim’, publicado em 1995]”, escreveu Marina Lima, cujas parcerias com o irmão resultaram em músicas de enorme sucesso, como “Fullgás”, “Pra começar”, “Virgem”, “Acontecimentos” e “À francesa” (em parceria com Carlos Zoli), contribuindo para popularizar a obra de um autor que, de fato, foi marcado pela coerência, tanto em sua vida quanto em seus escritos filosóficos, teóricos e poéticos.
Um escritor sem fronteiras
Nascido no Rio de Janeiro, em 1945, Cícero viveu parte de sua juventude no exterior. Primeiro, em função do trabalho de seu pai; mas, entre 1969 e meados dos anos 1970, forçado pela ditadura militar, que ele combateu quando estudava no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Suas andanças pelo mundo e sua voracidade pela leitura fizeram de Cícero um autor extremamente plural e sintonizado com as coisas do mundo, particularmente no que se refere aos debates sobre a “modernidade”, que ele chamava de “tempo de eterno agora”, ou “agoridade”, e como isto se manifesta tanto em termos filosóficos quanto na produção artística e cultural.
Com este objetivo, revisitou obras de filósofos clássicos, dos gregos antigos a Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831), Nietzsche (1844-1900) e Habermas (1929), e também se debruçou sobre os trabalhos de gente como Waly Salomão, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade ou movimentos culturais, como o Tropicalismo.
Com o mesmo ímpeto, em 2002, abraçou projetos como uma coletânea de CDs em homenagem a Drummond, intitulada “A cidade e os livros”, gravada com Chico Buarque, Ronaldo Bastos e Fernando Brant, dentre outros. Mesmo ano em que se juntou a Hermeto Pascoal, José Saramago, Wim Wenders, Marieta Severo, dentre outros, no fabuloso documentário “Janela da alma”, para o qual João Jardim e Walter Carvalho colheram depoimentos de 19 pessoas que, tendo algum grau de deficiência visual (da miopia à cegueira), falam sobre como se veem, como veem os outros e como percebem o mundo.
E o poeta se fez música…
A primeira poesia de Cícero musicada por Marina Lima foi “Alma Caiada”, em 1975. Gravada por Maria Bethânia, foi censurada pela ditadura, só vindo a público na voz de Zizi Possi, em 1979. No mesmo ano, Marina lançou seu primeiro álbum, “Simples como fogo”, com cinco letras de seu irmão, consolidando uma parceira que se intensificou e se popularizou no mesmo ritmo da luta pela redemocratização do país.
Em 1980, Bethânia gravou “O lado quente de ser”. No ano seguinte, “Certos acordes”, de Marina, trazia “Maresia” (“Ah! se eu fosse marinheiro / Eu é que tinha partido…”), musicada por Paulo Machado, e o sucesso popular chegou definitivamente em 1984, com “Fullgás”, cujos versos finais (“Você me abre seus braços / E a gente faz um país”), de certa forma, “rimavam” com o desejo de reconstrução de um país dilacerado pela repressão e a censura.
Algo também presente em “Pra começar” (“Quem vai colar / Os tais caquinhos / Do velho mundo…), lançada em 1986, ou na ironia de “Eu vi o rei”, de 1993: “Um rei assim / Que não escuta bem / Que adora luz / Mas não vê ninguém”.
Nas décadas seguintes, a poesia de Cícero também se fez música em parcerias iluminadas com artistas como João Bosco, que, em 1991, gravou um disco inteiro, “Zona de fronteira”, com parcerias entre Cícero e Waly; Adriana Calcanhoto (em “Inverno”, “Asas”, “Bagatelas” e “Três”, dentre várias); e, evidentemente, “O Último Romântico”, que marcou a carreira de Lulu Santos e até hoje embala gente que ousa perder a razão e se aventurar por amor.
“Guardar uma coisa…é iluminá-la ou ser por ela iluminado”
A lista de parcerias ou de gente que gravou suas composições inclui Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Barão Vermelho e Maria Bethânia, dentre vários outros. Mas, se é verdade que foi isto que o tornou “popular”, é importante lembrar que ele nunca se afastou da produção teórica e literária, como atestam livros como “Finalidades sem fim (2005) e “Forma e sentido contemporâneo: poesia” (2012).
Além disso, sua poesia tornou-se mundialmente reconhecida para além da música, desde a publicação do livro “Guardar”, cujo poema-título, que traz o lindo verso citado acima, foi incluído, em 2001, na antologia “Os cem melhores poemas brasileiros do século”.
Sua genialidade e enorme contribuição para nossa cultura foram reconhecidas em 2017, quando foi eleito para Academia Brasileira de Letras. Contudo, sua imortalidade há muito está assegurada por seus versos e livros, que merecem, de fato, serem “guardados”, para nos iluminar e para iluminarmos um mundo que Cícero viveu intensamente e decidiu deixar com a liberdade e dignidade com que viveu.