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Amazônia centro do mundo

Lena Leal

2 de outubro de 2024
star5 (7 avaliações)

“O silêncio do Xingu é uma iminência de
algo. Um à beira de. É nesse ponto que
estamos. Na véspera. O Xingu hoje é uma
véspera. Os indígenas sabem. Os beiradeiros
sabem. Os brancos não sabem.”
In: BanzeiroÒkòtó – Uma Viagem à Amazônia centro do mundo.
Eliane Brum, 2021, Cia das Letras

A imagem captada pelo fotógrafo Lilo Clareto (1960-2021)  – a beira do Xingu ardendo em chamas sob o olhar de angústia desmedida do povo que ali vivia tornou-se corriqueira por estes dias tristes. Se não fosse a data, juraria que é de agora; mas não. O fogo criminoso que destruiu parte da vida nas margens do majestoso rio na maior floresta tropical do mundo foi ateado pela concessionária Norte Energia, nos anos 2010 para construir a hidrelétrica de Belo Monte sob os Governos Lula-Dilma.

Belo Monte, renomeada pelo povo do Xingu de Belo Monstro, está muito presente neste livro editado em 2021 em que a autora mescla ensaios, textos jornalísticos e relatos pessoais. Nele se encontra uma escrita que ajuda a entender muito da história recente das lutas dos povos-floresta, nominados assim a partir da concepção de que são a floresta, parte estrutural dela mesma. Particularmente os povos ribeirinhos que Eliane acompanha nas últimas décadas – assim como as relações entre grileiros e agronegócio – estão ali sob olhar atento e militante. Em sua história como mulher, jornalista e ativista, a experiência de acompanhar esta trágica jornada de destruição de parte do rio e de vidas para um projeto megalômano e ecocida se confunde com o que ela chama de seu processo pessoal de amazonização.

A aparente “bagunça” anti-cartesiana da organização dos textos, não-lineares – é parte  do desejo e compromisso de  deixar que a floresta – que grita por socorro – seja carne e rio por suas veias abertas, por seu corpo. Para tanto, aprende com os povos-floresta caminhos possíveis de ruptura do pensamento único eurocêntrico. A luta pela floresta que é a luta pela vida também deve incorporar conceitos e modos de ver o mundo a partir da matrizes filosóficas dos povos originários, rompendo com a alienação presente na dissociação entre  humanes e natureza.

Eliane nos brinda, então, com uma dupla viagem – o livro nos mergulha para dentro do Xingu, – na chamada Terra do Meio – mas também para dentro dela, para seu processo de aproximações sucessivas, e cheias de contradições, até virar um ser xinguano, na cidade-síntese que é Altamira. Do tamanho da Bélgica e Grécia juntas, com território superior a doze Estados brasileiros, Altamira surge como símbolo de destruição e resistência, como o lugar mais real do Brasil, sem disfarces.

Do coração dessa floresta que é a maior reguladora climática do planeta, que sangra, que queima, que é torturada e morta todo dia pelas forças do capital, Eliane nos diz que a Amazônia é o centro do mundo nesta etapa de barbárie que estamos a viver.

Belo Monstro

Em 2010 o Governo Lula fez o leilão da hidrelétrica, que foi originalmente um projeto da ditadura militar impossibilitado de se realizar pela resistência dos indígenas, principalmente os Kaiapó. Pelo menos 03 grandes rios amazônicos foram barrados, segundo a autora, com trágicas consequências: Xingu, Madeira e Teles Pires.

Ao acompanhar por anos  as famílias expulsas – cujas casas e pequenas ilhas foram queimadas para depois serem afogadas pela construção da hidrelétrica – Eliane se deparou com a cadeia de adoecimento desses refugiados de Belo Monte. Entre tantos, Otávio das Chagas, que viu sua família empobrecer – e aqui não há espaço mas a autora problematiza esse conceito, na medida em que não se trata de “poder de compra” mas de perder tudo que a floresta dá, entre outras questões. Na periferia de Altamira ele e sua família foram alojados numa das “casas” construídas pela concessionária – um caixote de material precário onde Otávio só consegue olhar para fora pela única janela do minúsculo imóvel. A Norte Energia chamou de R.U.C. – Reassentamento Urbano Coletivo o que na prática mais se parece com um campo de concentração.

“A Amazônia é mulher”

“Ser mulher é ser Xingu violentado por Belo Monte.
É ser árvore calcinada
quando a fumaça cobre o sol amazônico
para ocultar o horror do crime”

A floresta é mulher tanto no sentido do papel das mesmas no processo milenar de interação entre humanes e não-humanes quanto na construção de um imaginário colonialista que a vê como um corpo a ser violado, violentado, desvirginado.

Assim, toda a referência ao maior projeto de devastação da Amazônia levado a cabo pela ditadura militar de 64 – a Transamazônica – partiu de uma suposta legitimidade intrínseca ao tratar a floresta como um corpo de mulher visto como um corpo sem sujeito, vazio, pronto para ser explorado. A ideia da floresta como uma virgem a espera de ser desbravada tem uma longa história de apagamento dos povos que ali há milhares de anos vem ajudando a construir a morfologia dela. Estudos arqueológicos recentes mostram o quanto a floresta é cultural, fruto da interação entre humanes e outros seres, o que torna mais absurdo ainda o slogan utilizado pela ditadura – “terra sem homens para homens sem terra” – que não por coincidência foi o mesmo utilizado pelo movimento sionista muito antes para massacrar o povo na Palestina.

Já numa versão requentada, infelizmente atual e esdrúxula tivemos a declaração feita em julho de 2019 pelo então presidente Bolsonaro – “O Brasil (referindo-se à Amazônia) é uma virgem que todo tarado de fora quer”.

Os dados alarmantes sobre a violência cometida aos corpos das mulheres amazônicas, vistos como uma extensão da floresta a ser violada, tem seu contraponto na enorme valentia das mesmas, na vanguarda das lutas por toda a região. Entre tantas citadas, as guerreiras Munduruku que em 2014 sob o Governo Dilma fizeram a autodemarcação do território Sawré Muybu na marra, já que as autoridades planejavam e segundo a autora, ainda planejam, construir novas hidrelétricas na região. Além das indígenas, as mulheres quilombolas, suas parceiras na defesa da floresta, também dão o exemplo. Socorro do Burajuba, líder quilombola na região de Barcarena, Pará, é uma delas.

“Você quer beber a minha água ou a sua?”. Assim Socorro se apresentou e intimou em evento ambiental “para inglês ver” um dos diretores da Alunorte. A empresa, que conta com capital norueguês e joga toneladas de metais pesados no rio que banha a região é responsável pelo câncer que acometeu  Socorro e sua gente.

“Não estamos todos no mesmo barco”

“Banzeiro é como o povo do Xingu
chama o território de brabeza do rio.
É um lugar de perigo entre o de onde
se veio e aonde se quer chegar (…) o barco
pode ser virado ou puxado para baixo de repente.”

Eliane frisa o que aparece em todo o livro: despreza a teoria que condena toda a humanidade como responsável pela barbárie ambiental. Por outro lado, ser branca num país extremamente violento e racista, que ela define como um “existir violentamente” exige um mergulho de escuta e aprendizagem de ruptura. O texto abaixo permite uma dimensão do impacto dessa experiência:

“A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que somos. A Amazônia salta para dentro da gente como um bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta.”

Ao escrever sobre seu processo de mutação nos convida a repensar toda as nuances da matriz colonialista vigente, inclusive aquelas que estão entranhadas em nosso inconsciente. A isso se soma a denúncia da farsa do conceito de sustentabilidade, dos compromissos dos Governos do PT com o agronegócio e da impossibilidade de salvar a floresta sem derrubar o capitalismo.
Olho novamente para a foto. Essa é do jornal de ontem. Abro a janela e a fumaça chega até aqui onde estou, no sul do mundo. O Xingu já ultrapassou o “à beira de”. É preciso virar o barco dos poderosos.

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