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Afinal de contas, o pobre é burro?

Parte da esquerda da ordem prefere xingar a classe trabalhadora mais pobre e precarizado, a realmente disputar um projeto diferente da ultradireita ou da aliança de classe

Diego Cruz

6 de novembro de 2024
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Ricardo Nunes, Tarcísio Freitas, Bolsonaro, entre outros, no lançamento da campanha à prefeitura de SP Foto Luiz Blanco Redes

Começo de tarde de um domingo chuvoso, voltando da votação do 2º turno das eleições, passo num mercado para comprar café, ovos e banana, minha alimentação básica diária. Enquanto passa as compras, a caixa, uma jovem mulher negra, é questionada por outro caixa, também jovem, se já havia votado. À sua resposta afirmativa, o colega já interpela: “Foi de 50, né?”, ao que a moça, constrangida, balança a cabeça de forma negativa.

Não votei no Boulos porque estou muito brava com o Lula, ele taxou a Shein, disse que ia dar para comprar picanha, olha lá o preço da picanha“, explicou. Sinceramente, eu não sabia o preço da picanha, mas creio que ela possuía autoridade suficiente para reclamar. “Votei no Marçal, foi um tiro no escuro, mas o outro eu já sei quem é“, justificou-se.

Chego em casa e me deparo com inúmeras mensagens nas redes sociais atribuindo a derrota do candidato do PSOL à uma suposta alienação do “povo”, alguns literalmente chamando esse “povo” de burro. Os argumentos variam da recorrente “falta de trabalho de base”, seja lá o que isso signifique, a uma questão financeira, seja o orçamento milionário da candidatura de Ricardo Nunes, sejam as emendas parlamentares. E aqui um parênteses: a campanha de Boulos foi a mais cara no país, e o PT, o partido que mais recebeu emendas parlamentares na Câmara. Fecha parênteses.

Um voto contra seus próprios interesses?

Dentre os idealizadores da ideia de um “povo” submetido à absoluta alienação emerge a figura quase onipresente do sociólogo Jessé de Souza, que chegou a pintar o quadro eleitoral como o pobre que “crava em seu próprio peito uma adaga envenenada”. Jessé explica o que enxerga como a direitização dos pobres, mais especificamente o pobre branco da faixa de 2 a 5 salários mínimos do Sul e do Sudeste e o eleitorado negro evangélico em todo o país, como uma manipulação da extrema direita (a partir das pautas morais), da “humilhação” a que esses setores são submetidos diariamente e que não têm vazão em outras formas, como a indignação.

E aqui talvez seja necessário fazer uma certa defesa de Jessé. Ao contrário do senso comum refletido em amplas camadas da esquerda da ordem, ele não chama o tal “povo” de burro. Afirma ser manipulável, recorrer a uma dimensão moral diante de uma humilhação que não se transforma em indignação e finalmente se autoflagelar. Mas de burro não chama…

O cartunista Latuff, expressão do que estamos falando aqui, desenhou uma charge na qual um homem se afoga na enchente e grita “pelo menos não votei no PT”. Na capital gaúcha, o atual prefeito Sebastião Melo se reelegeu por larga vantagem.

Em entrevista recente à jornalista Mônica Bergamo, Guilherme Boulos coloca a questão da seguinte forma: “O conjunto da esquerda entendeu que governar e oferecer resultados de melhoria de vida, o que particularmente os governos do PT inquestionavelmente fizeram, era suficiente para manter essa base social coesa em torno desse projeto“. Para ele, isso foi suficiente até o surgimento da extrema direita, que ganhou ideologicamente os mais pobres. “Quando ela passa a disputar visões de mundo, ideologia, e a esquerda não faz o mesmo, o resultado é as pessoas votarem no adversário com medo do comunismo“, argumenta. 

O que fazer, então? “É necessário mudar a estratégia e o método. É ir olho no olho, com coragem, em praça pública, fazer o diálogo com as pessoas“, responde o ex-candidato. Ou seja, por essa lógica, os “governos de esquerda”, em particular o PT, melhoraram a vida do povo, mas infelizmente veio a extrema direita, do nada, ganhou a população para a sua visão de mundo e para o medo do comunismo. Então, vejamos, teríamos que ir às periferias, dialogar com a população e, nessa “batalha ideológica”, convencê-la de que a vida melhorou (apesar do preço do gás de cozinha, da energia elétrica, do próprio frango no supermercado) e que a saída é continuar votando nos “governos de esquerda”. Seria isso o tal “trabalho de base”?

A despeito das diferenças, essas várias explicações confluem em algumas concepções comuns: primeiro, que considera, cada um a seu modo, o “povo” uma massa amorfa, manipulável, irracional, sem qualquer senso crítico, que age contra seus próprios interesses, e cabe à esta esquerda, a cada dois anos, sair de seus gabinetes para tentar convencer a população de que, se existe algum tipo de inconformismo com os governos ditos de esquerda, é produto da manipulação da extrema direita e da imprensa. E o pior, que a saída é votar no 13 ou no 50 para eleger, ou reeleger, algum governo de conciliação de classes como gestor de um capitalismo em crise, sem qualquer perspectiva de mudança significativa.

O caráter das eleições burguesas

As eleições nessa democracia burguesa conferem uma falsa legitimidade ao sistema de exploração e opressão capitalista. Muito antes da “manipulação” da extrema direita na campanha eleitoral, o próprio capitalismo esconde o processo pelo qual o mecanismo de exploração ocorre. O operário não enxerga que o produto de seu trabalho se transforma na riqueza do dono da fábrica. O motoboy do Ifood, ou o uber, não se veem nem mesmo como trabalhadores superexplorados por bigtechs, mas como empreendedores.

Pois bem, difundir a ilusão de que, por meio das eleições ou do parlamento, a classe trabalhadora e os “pobres” vão melhorar de vida já é uma forma de manipulação. Difundir a ilusão de que, uma vez eleito, se governar por meio de uma frente ampla com a burguesia, a direita e o centrão, será possível ter avanços ou ao menos conter o crescimento da extrema direita, não é menos enganoso. É de se perguntar: se os “pobres” tivessem votado em massa em Boulos, daí não seriam mais “manipulados”, mas, ao contrário, seria a prova de um avanço na consciência de classe rumo ao socialismo?

Vamos voltar um pouco no tempo. Quem elegeu Lula lá em 2002 não foram as camadas mais pauperizadas da classe trabalhadora; ao contrário, foram os setores médios e as categorias mais organizadas. Um governo neoliberal que incluiu uma reforma da Previdência no setor público já em 2003, entre outros fatores, provocou a ruptura destes setores, mas, a base social, e eleitoral, do governo Lula 2 se deslocou para os setores mais pobres e desorganizados via programas de transferência de renda e outras concessões, o que o sociólogo André Singer chamou de “lulismo” (leia mais aqui).

Os mesmos setores mais pobres que garantiram a reeleição de Lula em 2006 haviam votado de forma majoritária no tucano José Serra em 2002. E elegeram e reelegeram FHC, assim como deram a vitória a Collor em 1989. Ou seja, as camadas mais pobres votarem em partidos da direita tradicional sempre foi o normal. Teriam, no governo Lula, de uma hora para outra, aderido à “esquerda”? E agora, repentinamente, foram sequestrados pela ultradireita?

O papel do PT

Lula e o produtor de soja e ex-ministro de Temer, Blairo Maggi

Grande parte dos setores da esquerda da ordem que falam sobre o crescimento da ideologia do empreendedorismo nas periferias, a influência nefasta das igrejas neopentecostais entre a classe trabalhadora, em especial mais pauperizada e precarizada, processos esses que dariam sustentação à extrema direita, em geral se “esquecem” do que aconteceu nas duas últimas décadas. É como se um trabalhador com consciência de classe tivesse dormido e, no dia seguinte, acordado como um empreendedor capitalista defensor da meritocracia.

A realidade é que, junto ao processo de regressão pelo qual o país passou nas últimas décadas, com desindustrialização e desagregação do mercado de trabalho, o PT cumpriu um papel importante para o retrocesso na consciência de classe. Se a fundação do PT em 1980 cumpriu um papel progressivo no sentido de delimitar os diferentes interesses de classe, marcando a oposição entre a classe trabalhadora e a burguesia e impulsionando a organização e as lutas independentes da classe ao longo da década, uma vez institucionalizado, adaptado à ordem, e finalmente no governo, fez o exato oposto.

Se no plano da política econômica os governos petistas impuseram um social-liberalismo ancorado numa conjuntura internacional favorável naquele momento, com o boom das commodities, no sentido ideológico, esfumaçam-se as diferenças entre as classes por meio da conciliação, inclusive, e principalmente, com o agro, mas não só. A cooptação e institucionalização das lideranças sindicais e dos movimentos populares e a aproximação com as lideranças neopentecostais à custa de pautas como o direito ao aborto ou direitos das LGBTI+ tiveram papel determinante para o que vivemos hoje. 

O governo Lula faz um compromisso com o capital, envolveu a classe trabalhadora e suas instituições nesse compromisso e anulou a potência do conflito“, sentenciou o saudoso Chico de Oliveira, nos idos de 2010 (filiado ao PSOL, diga-se de passagem).

A luta de classes deu lugar à aspiração pela ascensão social, ou ao menos a ideia dessa ascensão, via consumo. Terminado os governos petistas, metade do país nem ao menos contava com saneamento básico, mas o “pobre” passava a ter acesso a um celular ou bens de consumo parcelados em inúmeras vezes, através do crédito. Pelo menos até a maior recessão da história do país, entre 2014 e 2016, marcada pelo maior ajuste fiscal já realizado até então, sob o governo Dilma.

Não é, portanto, estranho ou irracional que a caixa do supermercado tenha ficado brava quando o governo Lula 3, o atual, restringiu seu acesso a bens de consumo como as blusinhas da Shein. Aliás, esse episódio da taxação das compras internacionais tem um quê de perversidade quando lembramos que o ministro Fernando Haddad, além de dizer que pobre não compra nesses sites, declarou que ele só conhecia a Amazon, na qual comprava livros “todo o dia”.

A realidade é que os resultados alardeados pelo governo, como o crescimento do PIB ou a suposta redução do desemprego, não são sentidos pelos setores mais precarizados. O crescimento relativo é apropriado por uma fatia ínfima da sociedade, os índices de desemprego são maquiados pelo subemprego e a informalidade, e o que a população sente na pele é um país indo ladeira abaixo. Não há “trabalho de base” que convença esse “pobre” idealizado do contrário.

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Disputar ao invés de xingar

Os revolucionários participam das eleições burguesas para denunciar a farsa das próprias eleições, o sistema capitalista, e defender um programa socialista e revolucionário. É um momento, uma brecha, para fazer avançar a consciência da classe rumo a uma alternativa socialista. Dentro dessa perspectiva, várias táticas eleitorais podem ser utilizadas. Mas rebaixar o programa, a ponto de ficar indistinguível da extrema direita em algumas medidas, é o oposto disso. É reforçar a ilusão numa saída eleitoral, com um programa de conciliação e de direita.

E não muito inteligente, diga-se de passagem, visto o resultado eleitoral da esquerda institucional.

Isso não significa que a esquerda teria uma avalanche de votos se apresentasse uma campanha que ao menos enfrentasse as privatizações, como a da Enel (num momento em que a cidade passava por um apagão) ou das escolas públicas realizadas agora mesmo pelo governo Tarcísio com o financiamento do BNDES. Mas ao menos demarcaria uma diferença com a direita e a extrema direita em torno a esses temas. Mais que demarcar, poderia ajudar a preparar uma vitória no futuro, além de dar força para os trabalhadores lutarem contra os ataques da ultradireita, ou do próprio governo Lula. Ao contrário disso, Boulos, no 2º turno, incorporou propostas de Pablo Marçal e Tábata Amaral, como um programa de empreendedorismo nas periferias.

Perdeu as eleições propagandeando um programa da direita liberal e da extrema direita. Mesmo se ganhasse, teria sido ajudando a disseminar a ideologia e o programa da própria extrema direita. 

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Vamos aos finalmentes

A extrema direita vem avançando sobre os setores mais pauperizados, isso é um fato. Após o governo Bolsonaro, aliás, consolidou-se como uma força política que pode prescindir do próprio Bolsonaro. Mas, ao contrário do que fazem parecer, isso não se dá por meio de um convencimento no plano das ideias ou da manipulação de um pobre idealizado, ingênuo e despolitizado. Ao contrário, dá-se sob uma realidade bastante dura. A vida vem piorando. O Brasil desce ladeira abaixo e, enquanto escrevo estas mal-traçadas linhas, o governo prepara um pacote para atacar direitos básicos como o SUS e a Educação, após ter cortado R$ 6 bilhões do Benefício de Prestação Continuada (BPC), voltado a idosos carentes e pessoas com deficiência.

A extrema direita ganha a consciência da classe e da população com um discurso que parte da realidade e um programa que aparece como disruptivo mas que, sabemos, é o aprofundamento da barbárie capitalista. Diante de um governo e alternativas de frentes amplas, as quais não mudam a vida do povo, ao contrário, a ultradireita ocupa o espaço de oposição e, portanto, de uma perspectiva de mudança. A esquerda da ordem, identificada agora como o “establishment”, responde a isso aprofundando ainda mais um programa neoliberal, ou seja, pisa no acelerador rumo ao abismo.

As eleições nos EUA são um prenúncio de onde isso nos levará.

A única forma de enfrentar essa situação é fortalecendo, organizando e mobilizando a classe trabalhadora contra os atuais ataques, das três esferas do governo, inclusive contra o arcabouço fiscal e os cortes do governo Lula, construindo, nesse processo, uma oposição de esquerda, revolucionária e socialista.

O problema não é o “pobre de direita”, ou o “pobre” idealizado, mas uma esquerda que insiste num projeto de gerenciar um capitalismo em crise, em apoiar um governo que ataca a classe trabalhadora e se recusa a enfrentá-lo, muito menos fazer oposição a ele. E que prefere xingar o povo ao invés de ouvi-lo e chamá-lo à luta.

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