Afinal, a maconha foi ou não legalizada pelo STF?
Após nove anos de sucessivas interrupções, neste dia 26 de junho, por 6 votos a 3, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou o julgamento que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal e fixou a quantia de 40 gramas para diferenciar usuários de traficantes. Com a decisão, não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40 gramas de maconha para consumo pessoal.
Antes de continuar, acredito ser de suma importância deixar claras quais foram as teses fixadas pelo STF no julgamento realizado no final do mês de junho:
1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, transportar ou trouxer consigo para consumo pessoal a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela – artigo 28, inciso 1 do Código Penal – e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo – artigo 28, inciso 3 do Código Penal.
2. As sanções estabelecidas nos incisos 1 e 3 do artigo 28 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta.
3. Em se tratando de posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, sendo vedada a lavratura de auto de prisão em flagrante ou de termo circunstanciado.
4. Nos termos do parágrafo 2º do artigo 28, será presumido usuário quem, para uso próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito ou trouxer consigo até 40 gramas de cannabis sativa ou 6 plantas fêmeas, até que o Congresso Nacional venha legislar a respeito.
5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial ou seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante de tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos indicativos do intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelhos celulares contendo contatos de usuários ou traficantes.
6. Nesses casos, caberá ao delegado de polícia consignar no auto de prisão em flagrante as justificativas minudentes para afastamento do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos, como tirocínio e experiência dos agentes policiais, a alegação de nervosismo ou atitude suspeita e a invocação de denúncias anônimas ou tentativas de fuga, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal da autoridade e de nulidade da prisão.
7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, no auto de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio.
8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir pela atipicidade da conduta, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.
A decisão do STF portanto, conforme se pretende demonstrar aqui, apesar da grita geral dos setores conservadores e reacionários da sociedade contra ela e sobre a qual vamos tratar neste texto, foi extremamente tímida e, ao contrário do que está sendo alardeado, ela não legaliza o porte de maconha, pois este porte, mesmo para uso pessoal, continua sendo ilegal, permanecendo o uso recreativo ou medicinal da maconha e seus derivados, tanto em local público como privado. Quem for pego fumando um “baseado”, em tese, não poderá mais ser preso. Estará cometendo uma infração administrativa e será intimado a comparecer em juízo, onde será advertido pelo poder judiciário sobre a ilegalidade de seu ato e, ainda, ficará sujeito a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Além disso, a decisão não avança na questão do uso medicinal da cannabis, que é utilizada para diversos tratamentos de saúde, como controle de dores crônicas, náuseas e vômitos causados pela quimioterapia, tratamento de epilepsia, entre outros. Ela também não aborda a questão do cultivo para uso pessoal, mantendo a insegurança jurídica nesse aspecto.
Mas não é só sob estes aspectos que a decisão do STF é tímida e, portanto, limitada. Ela veio de um julgamento que questionava o artigo 28 da Lei 11.343/2006, sancionada por Lula em seu primeiro governo, também conhecida por Lei de Drogas. Esse artigo 28 dava margens para a arbitrariedade policial e judicial na diferenciação entre usuários e traficantes, pois, apesar de não prever punição criminal para o usuário (estabelecia apenas sanções administrativas aqui já mencionadas), não estabelecia critérios claros distinguindo a posse para o uso daquela para o comércio e, na prática, mantinha uma lógica proibicionista, racista e punitiva. Esperava-se, pois, que este julgamento acabasse com essa possibilidade de decisão discricionária, no sentido de subjetiva, por parte da autoridade policial e/ou judiciária (juiz). Mas, como se vê acima, mantêm-se inalterados, apesar de relativamente limitados, tanto o testemunho policial para caracterização do crime de tráfico como a subjetividade do Juiz responsável pelo caso.
Apesar do papel do poder judiciário numa sociedade de classes ser, em última instância, o de garantir a manutenção da ordem capitalista e da propriedade privada, atuando como um instrumento de dominação da classe burguesa sobre todos os que vivem do trabalho, ele também pode, em determinadas circunstâncias, tomar decisões que representem avanços pontuais na garantia de direitos democráticos e liberdades individuais, como nesse caso da descriminalização das drogas, motivo pelo qual as limitações da decisão do STF, além de lamentáveis, devem ser compreendidas dentro do papel deste tribunal.
Ora, dados mostram que a “guerra às drogas” tem sido na prática uma guerra contra a população pobre e negra, que é a mais criminalizada e encarcerada por conta da proibição: em 2016, 75,4% dos presos por tráfico de drogas eram negros, segundo o Infopen. Além disso, a violência policial é direcionada desproporcionalmente a essa população: em 2019, 79,1% das pessoas mortas pela polícia no Brasil eram negras, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Por isso, a descriminalização da maconha é fundamental para todos que lutam contra a opressão e a desigualdade. A “guerra às drogas”, em verdade, é uma política racista e classista, que não resolve o problema do consumo problemático de drogas, mas serve para superlotar prisões e estigmatizar comunidades inteiras.
Como disse Cyro Garcia (PSTU/RJ), em uma de suas entrevistas sobre o tema, publicada no Opinião Socialista, “a criminalização serve como uma forma de controle social, para impedir que a população pobre do nosso país se rebele contra as péssimas condições de vida às quais é submetida pelos governantes, através de moradias insalubres, desemprego, ausência de Saúde e Educação públicas de qualidade. As drogas são um caso de Saúde Pública e não de Segurança Pública. Somente com a sua descriminalização nós poderemos avançar, de fato, em políticas que realmente promovam a segurança da população, além de desferir um golpe tanto no tráfico de drogas quanto no tráfico de armas, uma vez que eles se retroalimentam. Quando falamos em descriminalização, não estamos querendo inventar a roda. Aqui do lado, no Uruguai, a maconha é legalizada; bem como em Portugal, país com o qual temos laços estreitos. A descriminalização não é um incentivo ao consumo, ao contrário, ela tem de vir acompanhada de uma ampla campanha que mostre os eventuais malefícios do uso de drogas. Para nós, todas as questões referentes às drogas, inclusive as lícitas e legalizadas, como o álcool, devem ser tratadas como problemas da Saúde Pública.”
No entanto, mesmo diante da timidez da decisão do STF, e sob a benção de Lula – que, em entrevista ao portal UOL, disse que o Supremo não deveria “se meter em tudo” e que o Congresso deveria discutir o assunto – Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, vociferou contra a decisão do tribunal. Pacheco defendeu a manutenção da criminalização dos usuários, o que se daria com a aprovação de um Projeto de Emenda à Constituição (PEC 45/2023) de sua autoria. A PEC torna crime, previsto na Constituição Federal, a posse e o porte de qualquer droga, retirando a possibilidade de abordagens alternativas e reforçando a política proibicionista e de “guerra às drogas”. Por sua vez, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), oficializou a designação de uma comissão especial para analisar a PEC, demonstrando a postura ainda mais conservadora e reacionária do poder legislativo em relação ao tema, quando comparada à do Judiciário. Essa posição, ao ser endossada pelo governo Lula, evidencia seu alinhamento com a visão proibicionista e mostra o quão limitados são os poderes legislativo e executivo brasileiros na questão das liberdades individuais.
É sintomático que Lula tenha recuado de posições mais progressistas que já defendeu no passado e esteja cedendo ao conservadorismo nessa questão e em tantas outras. Demonstra de qual lado verdadeiramente está seu governo, e não é da maioria trabalhadora, que é pobre, preta, explorada e oprimida.
Além disso, os que defendem a criminalização minimizam a importância econômica e social da questão da maconha. A legalização e regulação desse mercado têm um enorme potencial de geração de empregos, arrecadação de impostos e desenvolvimento de toda uma cadeia produtiva, desde o cultivo até a industrialização de derivados medicinais e recreativos. Estudos estimam que a legalização da maconha no Brasil poderia gerar até 1 milhão de empregos diretos e indiretos e uma arrecadação de R$ 5,7 bilhões por ano em impostos.
Ao mesmo tempo, não podemos ter ilusões de que a descriminalização ou mesmo a legalização da maconha resolverão todos os problemas sociais relacionados às drogas. Enquanto vivermos em uma sociedade capitalista, que gera desigualdade, alienação e sofrimento psíquico, o consumo problemático de substâncias psicoativas continuará existindo. Por isso, a luta pela legalização das drogas deve estar inserida em uma luta mais ampla pela transformação social, pela construção do socialismo e pela emancipação humana. Só em uma sociedade sem exploração e opressão, onde a realização das potencialidades de cada indivíduo seja respeitada e incentivada, poderemos superar de fato os problemas relacionados ao uso de drogas. Mas a descriminalização e a legalização são passos importantes nessa direção, e precisamos defendê-las com firmeza contra o conservadorismo e a hipocrisia das classes dominantes.
Em suma, a decisão do STF, apesar de tímida e limitada, representa um avanço na luta contra a política de “guerra às drogas” e seus efeitos nefastos sobre a população pobre e negra. No entanto, ela está longe de resolver a questão e enfrenta forte resistência dos setores mais reacionários da sociedade, incluindo o Congresso Nacional e o próprio governo Lula. Cabe a nós, socialistas e defensores das liberdades democráticas, seguir lutando pela descriminalização e legalização da maconha e de outras drogas, como parte de uma batalha mais ampla contra a opressão, a desigualdade e a exploração capitalista. Somente a construção de uma sociedade socialista, baseada na justiça social, na democracia e na emancipação humana, poderá superar definitivamente os problemas relacionados ao uso de drogas e garantir uma vida digna e plena para todos e todas.