Juventude

A realidade da violência de gênero na universidade: não temos nenhuma segurança!

Rebeldia - Juventude da Revolução Socialista

6 de setembro de 2024
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Nas últimas semanas, estudantes da Universidade de São Paulo (USP) têm recolhido diversos relatos de violência de gênero no campus Butantã. Essa situação não é nova. As estudantes, que são obrigadas a saírem tarde de suas aulas, caminhar pelos caminhos escuros da universidade e pegar transportes lotados, conhecem bem a realidade: assédios nos circulares, perseguições de conhecidos e desconhecidos, e agressões físicas e sexuais. Um exemplo recente é a tentativa de estupro que ocorreu no dia 22 de agosto na Praça do Relógio.

E é evidente a quem esse descaso mais afeta, as estudantes trabalhadoras, que são obrigadas a estudar e trabalhar ao mesmo tempo, na sua maioria são estudantes do noturno, sendo submetidas às piores condições na universidade. 

A reitoria e a PRIP (Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento) são coniventes com a violência aos setores oprimidos.

Esse cenário se perpetua porque a universidade não só tem poucas políticas de atendimento e segurança para as estudantes, como as que existem são insuficientes ou até mesmo pioram a situação. Dois exemplos claros são: a tentativa de colocar grades no CRUSP (Conjunto Residencial da USP) como justificativa de aumentar a segurança, e a presença da base da Polícia Militar no campus.

Embora a Pró-reitoria de Inclusão e Pertencimento diga que está preocupada com a segurança ao tentar colocar as grades, qualquer mulher no CRUSP sabe que não pode contar com a PRIP para resolver uma situação de violência da qual seja vítima no CRUSP. Secundarizando medidas mais importantes e fundamentais para a segurança, como a iluminação pelo campus, a PRIP e a reitoria ignoraram as demandas de diversas estudantes que sofrem violência dentro da moradia. A falta de políticas reais de combate à violência é evidente. Basta conversar com as estudantes do CRUSP para saber que, se não foi ela que sofreu violência e foi obrigada a mudar de bloco, foi uma amiga sua. A política da PRIP é clara: pouco ou nenhum atendimento à vítima de violência, realocação da vítima e não à expulsão do agressor. Assim, a universidade não precisa se responsabilizar nem assumir que uma violência ocorreu dentro do campus, preservando sua imagem. 

Além disso, a presença da Polícia Militar no campus é outro exemplo de como a universidade reflete a política repressora de segurança aplicada no estado de São Paulo. Dentro e fora da universidade, a Polícia Militar está longe de cumprir um papel de proteção, ao contrário, a cada dia a polícia mata mais; só no primeiro semestre deste ano as mortes pela PM no estado de São Paulo aumentaram em 71%.  O que acontece hoje é que a polícia persegue os estudantes que lutam por seus direitos e não ajuda a resolver os problemas reais como assédios físicos e sexuais dentro e fora do campus. O caso de violência do dia 22 ocorreu ao lado da base da Polícia Militar, e a suposta segurança que a PM no campus poderia ofertar se demonstra como mais uma falácia para mascarar as intenções de repressão estudantil.

Universidade: reflexo da realidade

Esse cenário é um reflexo do aumento crescente da violência, especialmente contra os setores oprimidos. Na capital, só no primeiro trimestre deste ano, houve um aumento de 40% nos casos de feminicídio, e o serviço de aborto legal no Hospital Nova Cachoeirinha, que era o único na cidade a oferecer esse atendimento, foi encerrado. Tudo isso ainda é combinado com uma política opressiva por parte do governo Tarcísio, que, em março deste ano, congelou a verba destinada ao combate à violência contra a mulher e ainda levou adiante o projeto de lei 1904, que visava criminalizar a vítima de estupro por realizar o aborto após a 22° semana de gestação.

Porém, ao observar a nível federal a coisa se perpetua, quando Lula rifa os direitos das mulheres por acordos com o centrão e diz ser contra a legalização do aborto. Embora fale que é contra o PL, o presidente não faz nada em relação a descriminalização e muito menos a legalização do aborto irrestrito e gratuito, ainda liberando a sua base para votar como bem entendesse. Ele vende os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e condena meninas, mulheres e pessoas que gestam, que são duplamente vitimizadas pelo crime que sofreram e por terem seu direito ao aborto negado. Quando Lula coloca em prática o arcabouço fiscal, tirando dinheiro de áreas essenciais para o pagamento da dívida pública ou para pagar os rentistas (gente que vive de renda e aplicações no mercado financeiro), mostra a quem esse governo realmente governa, e que a nossa segurança, como mulheres, LGBTQIAP+, trabalhadores, é relegada por lucros e alianças. 

Por mais iluminação, redes de acolhimento e frota de circulares!

É fundamental que o conjunto do movimento feminista na USP se enfrente e exija da universidade e da prefeitura do campus medidas de segurança que não passem por colocar a Polícia Militar para rodar a universidade. Uma das demandas mínimas e essenciais é o problema da iluminação do campus, que não foi pensado para abarcar estudantes trabalhadores que saem quase às 23h das aulas. Outro problema é a baixa frota de circulares, que passam de 30min em 30min, deixando muitas vezes as estudantes sozinhas em pontos escuros ou mesmo tendo que pegar um circular lotado, o que aumenta as oportunidades para casos de violência dentro do transporte. 

Além disso, as redes de atendimento para casos de assédio e violência ofertadas pela universidade são totalmente insuficientes. Existem algumas estruturas que poderiam ser ferramentas de auxílio. A Comissão de Inclusão e Pertencimento (CIP), presente em todos os institutos e vinculada à Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), foi criada para desenvolver diretrizes de inclusão e pertencimento. Outro exemplo é a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH – FFLCH), estabelecida em 2016 para acolher e encaminhar questões relativas a violações dos Direitos Humanos. Essas instâncias da universidade, porém, estão longe de ser o suficiente e são limitadas por diversos fatores. Primeiro que as estudantes sequer têm acesso adequado às informações sobre esses órgãos de denúncia, são entidades distantes da realidade estudantil. E quando denunciam algo, os casos ficam parados nessas e demoram anos para terem alguma resolução, isso se dá por diversos problemas, sendo um deles a falta de contratação de funcionários, sobrecarregando os poucos que tem, e o principal, a burocracia universitária, que tá aí para dificultar ainda mais a vida do estudante trabalhador. Além disso, a falta de campanhas constantes contra a violência de gênero revela uma omissão institucional, sequer se propõem a ter um espaço real de escuta com as estudantes.

Uma das medidas da Prefeitura do Campus e da Superintendência da Prevenção e Proteção Universitária, é o aplicativo Campus. Nesse aplicativo é possível acionar a guarda universitária em situações de perigo. Mas, novamente, isso pouco chega ao corpo discente e, ainda, não pode ser a única alternativa dada pela prefeitura para zelar pela segurança. E a própria configuração da cidade universitária revela seu caráter elitista, já que é projetada para carros; hoje em dia, o perfil de alunes tem mudado e a USP, como berço da elite paulistana, expulsa essas pessoas quando são elas os maiores alvos de violência ao precisarem usar os ônibus ou andar a pé em uma cidade universitária escura e insegura. 

Existe também, uma iniciativa auto-organizada por professoras e pesquisadoras da USP, a “Rede Não Cala”,  que se mobliza pelo Fim da Violência Sexual e de Gênero na USP, tem como objetivo reagir às denúncias de violência sexual e de gênero sofridas por membros da comunidade. Atua em apoio a denúncias, ações institucionais de defesa de direitos e acolhimento, punição e proteção às vítimas com o apoio do IPUSP (Instituto de Psicologia da USP). O grupo existe de forma permanente e mobiliza ações pontuais, com base no momento que é acionado. É um exemplo importante da auto organização de professoras que se compromete com os seguintes eixos: debater a ideia de criação de um centro de referência com profissionais capacitados para atender, de forma integral, pessoas que se sentiram agredidas; criar ideias para a reformulação das sindicâncias e processos administrativos da instituição; e desenvolver ações educativas de conscientização para a comunidade USP. A Rede surge em um sentido de combater a negligência com o tema, tanto que se dispõe a dialogar com o corpo discente, como é o caso de atividades unificadas, assim como pela exigência de ações efetivas dos meios institucionais. O grupo, portanto, demonstra, em sua gênese, que existe uma dificuldade em dar resposta a violência na universidade e, para isso, é preciso não só divulgar as iniciativas, mas acolher de maneira adequada e questionar o regimento da USP.  

As medidas institucionais são evidentemente insuficientes, seja pelo relapso em tratar do tema, seja porque a melhora da vida dos setores oprimidos é barrada pelos trâmites da burocracia universitária.  Acabam atuando apenas quando o pior está acontecendo ou já aconteceu, deixando de lado medidas básicas de prevenção, como a melhoria da iluminação, uma reivindicação do movimento que é travada por orçamento, licitações e um monte de outras coisas que nos fazem questionar por que há dinheiro para construir prédio de iniciativa privada na USP, mas é difícil mais investimento para a proteção de mulheres e pessoas LGBTQIAP+.

 Pelo fortalecimento dos coletivos feministas e autodefesa coletiva dos oprimidos!

Sabemos que não podemos ficar esperando a reitoria e a prefeitura do campus fazerem algo para nossa proteção! Precisamos nos organizar para criar e fortalecer espaços de resistência e permanência na universidade controlados pelas estudantes, através dos coletivos feministas, que cumprem um papel fundamental de acolhimento, troca e fortalecimento individual e coletivo.

As mulheres e pessoas LGBTIAP+ tem todo direito de se defender contra a violência que sofrem e isso perpassa ter coletivos na universidade que possibilitem um ambiente de compartilhamento e aprendizado, promovendo a auto defesa de mulheres e pessoas trans. Porque se as instâncias da universidade não funcionam, se a PM não está no campus para nos proteger e vivemos com medo constante, nos resta, além de nos revoltar com as respostas insuficientes da universidade, nos organizamos para nos auto defender e proteger. 

É imprescindível o fortalecimento dos setores oprimidos, até porque a universidade não é um espaço de acolhimento por si só, e os coletivos são ferramentas fundamentais para isso. Com todos os últimos ocorridos na universidade, de violência e pavor intermitente da vida no campus para mulheres e pessoas trans, evidenciou-se ainda mais a importância da luta pela articulação pela nossa segurança, desde a criação de grupos para não andarmos sozinhas, como foi a iniciativa das militantes do Rebeldia com o grupo “Volte Segura”,  até oficinas de auto defesa para mulheres e pessoas trans impulsionada pelo coletivo feminista Macabéas e CAELL. Apesar das dificuldades do tema na universidade, as alternativas de auto organização são respostas para combater a negligência institucional e nos fortalecer diante de todos os ataques que sofremos dentro e fora da universidade.    

Construir uma alternativa revolucionária para as mulheres e os setores oprimidos!

É indiscutível que a nossa luta diária por direitos e contra todo ataque é fundamental, para pressionarmos e mantermos o mínimo de segurança que temos no interior dessa sociedade capitalista e da luta de classes, porém, se não tivermos no nosso horizonte um projeto de uma sociedade que irá superar definitivamente esse sistema, não é possível imaginarmos uma vitória permanente.

O sistema capitalista, com suas desigualdades e exploração, gera uma realidade onde os direitos conquistados são constantemente ameaçados e revertidos. Um exemplo disso é o PL do estupro, que tenta retirar uma das lutas mais antigas do movimento que é o aborto legal, sendo que mesmo o que se tem antes da PL é insuficiente, por não ser amplo e irrestrito. Mesmo as reivindicações mínimas são negadas e os direitos democráticos são retirados no capitalismo. Por isso, os avanços que conseguimos ao longo dos anos são conquistados com nossa árdua luta e estão sempre sujeitos a retrocessos. A conquista de direitos é um processo contínuo de pressão, e sem uma visão mais ampla e um projeto revolucionário que vá muito além das medidas paliativas, a nossa liberdade e segurança estão constantemente ameaçadas. 

Por isso a importância da auto organização dos setores oprimidos, comprometidos com a luta da classe trabalhadora, para que continuemos lutando por direitos, mas ao mesmo tempo construirmos uma alternativa revolucionária sem nenhuma confiança em governos e nas reitorias, para que não vejamos nas medidas institucionais e de concessão mínima, que só mitigam o nosso sofrimento por tempo indeterminado, uma saída para nossa libertação.