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A Hora de Macabéa

Lena Leal

30 de agosto de 2024
star5 (9 avaliações)

Macabéa não pode morrer.
Já morremos muito.
In: Macabéa Flor de Mulungu, Conceição Evaristo

Lançado em 1977, A Hora da Estrela de Clarice Lispector nos leva para a vida e morte de Macabéa, jovem nordestina que migra para o Rio de Janeiro, cujo roteiro trágico é apresentado pelo narrador Rodrigo S.M. Já nas primeiras páginas ele a desenha como uma figura caricatural, oscilando entre o menosprezo e doses de compaixão cínica – a pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Tal desdém se manifesta em toda a narrativa, numa tentativa desesperada de se colocar em patamar superior à jovem anti-heroína. Por outro lado, o narrador deixa escapar traços de pulsação vital e de uma alegria gratuita nas pequenas coisas do cotidiano, semente de floração na jovem Macabéa. A obra de Clarice escancara, e por isso denuncia, o olhar preconceituoso e cruel sobre a personagem cujo brilho só viria com seu fim.

Continuamente estudada não somente na área de literatura, a complexidade de vozes e discursos contidos na obra da visceral Lispector permitiu que a personagem – arquetípica da mulher nordestina oprimida pelo olhar sulista branco e sexista – pudesse ser reinventada em outras linguagens e contextos históricos.

A Macabéa de Suzana Amaral

Lançado em 1985, a livre adaptação do livro para o cinema por Suzana Amaral (1932-2020) rendeu prêmios da crítica e de melhor atriz para Marcélia Cartaxo no Festival de Berlim de 1986.  A releitura de Suzana desvela uma Macabéa em metamorfose num Brasil em mutação pós- ditadura de 64 e, apesar dos limites, marcado também pela onda feminista na virada da década de 70. No livro de Lispector Macabéa denuncia e dá visibilidade para quem a cidade é toda feita contra ela, mas chega até nós pelo olhar do opressor. Já no filme, apesar da jovem imigrante ter o mesmo destino desenhado por Lispector, não é mais narrada pelo outro – a história se conta pela vida e desventuras da personagem.

Guardadas todas as diferenças da linguagem escrita e fílmica, a combinação de contexto histórico de rupturas mais o peso dos talentos da diretora e também da atriz Marcélia dão a essa jovem outsider novas cores à denúncia – latente na obra de Lispector – da opressão das mulheres imigrantes, engolidas pela solidão nas grandes capitais. Essa viagem em que a aparente caricatura transborda em poesia triste só poderia ser mesmo obra de Suzana Amaral, mulher que rompeu o cerco e foi – aos 37 anos e mãe de nove filhos – cursar Cinema na década de 60 e produzir ao longo da vida uma vasta obra.

As Macabéas de Conceição

Macabéa, a Flor de Mulungu, sou eu.
Tal é a minha parecença-mulher com ela.
Repito, sou eu e são todos os meus.

Lançado em 2023 numa linda edição com ilustrações de Luciana Nabuco, o conto de Conceição Evaristo traz em si o germe transformador de Macabéa, criatura que se recria continuamente, presente que é passado ancestral na escrevivência de Evaristo.

O texto, recheado de prosa poética, foi escrito inicialmente como parte de uma coletânea – lançada em 2012 pela Oficina Raquel – em homenagem à Lispector a partir de exercício de recriações de sua obra. Macabéa Flor de Mulungu parte de repensar quem é essa jovem e se concentra nos momentos finais de A Hora da Estrela para então subverter seu desfecho.

Mais que isso, Evaristo foi nas entranhas de Lispector e fez emergir de seus subtextos uma Macabéa cujos silêncios revelam uma imensa sabedoria. Com sua trindade ancestral – indígena, africana e portuguesa – além de cerzideira e datilógrafa, a Macabéa de Conceição é a parideira, a que traz a vida.  E assim era a Béa. Una e múltipla, eu sabia. Sapiência, sabedoria, dom de Macabéa desde o berço.

A Flor de Mulungu

Segundo Conceição Evaristo em entrevista ao portal O Tempo, quando viu pela primeira vez a flor de mulungu numa antiga senzala e soube de seus poderes sedativos – cujas dosagens poderiam levar a um sono eterno – imaginou milhares de histórias que poderiam envolver aquele lugar e aquela árvore, também conhecida como “amansa-senhor”. Assim, a menção à Macabéa como florzinha no texto original se transforma na potente mulungu em floração, silenciada por homens que insistem em vê-la frágil.

Para além da beleza plástica de texto e imagens, a libertação de “destino final” da personagem está intimamente ligada a uma nova perspectiva a partir da valorização do passado e saberes presentes de Macabéa. Traduz, também, a floração de uma literatura negra e feminista que conquista brechas de visibilidade num momento histórico de reorganização de movimentos antiopressão.

Contudo a própria Evaristo tem usado essa brecha para alertar o quanto a valorização individual de pessoas negras pelo status quo – em várias áreas e não somente na arte – mascara e fortalece o racismo ao usar a lógica da meritocracia. Sua trajetória como mulher negra, poeta, ensaísta, criadora do conceito de ‘escrevivência’, sua recente notoriedade após décadas de trabalho artístico e intelectual confirma o que traz em sua obra – Mulheres como Macabéa não morrem. Costumam ser porta-vozes de outras mulheres, iguais a elas.

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