A escola stalinista de falsificação
Veja como o stalinismo tentou justificar o extermínio de centenas de milhares de prisioneiros comunistas, as torturas e os atentados contra opositores fora da União Soviética.
No artigo anterior nós relatamos os piores crimes de Stálin e o verdadeiro genocídio que ele realizou contra os comunistas opositores, principalmente os trotskistas. Mas, é preciso explicar como o stalinismo tentou justificar o extermínio de centenas de milhares de prisioneiros comunistas, as torturas e os atentados contra opositores fora da União Soviética.
Ou, pior, como ele tentou justificar as acusações absurdas dos Processos de Moscou como a de que a maior parte dos antigos dirigentes da Revolução de Outubro e do Estado Soviético eram agentes de Hitler, do nazismo, do imperador japonês e dos Estados Unidos. Ou, ainda, que teriam planejado atentados terroristas, atos de sabotagem e conspirado para assassinar Stálin e outros dirigentes com o objetivo de restaurar o capitalismo.
Como explicar que dirigentes que tinham enfrentado a guerra civil, os exércitos imperialistas e construído o Estado soviético nos momentos mais difíceis de fome e penúria, teriam resolvido entregar o país para o nazismo justo agora quando a URSS começava a se desenvolver?
Além disso, as acusações eram ainda mais absurdas porque, segundo o promotor dos Processos de Moscou, todos os réus, que eram dirigentes de diferentes alas do partido, teriam obedecido ordens de Trotsky, de quem quase todos eram inimigos e declaravam nos julgamentos que o odiavam. Além disso, Trotsky estava exilado, não tinha recursos e tinha seus movimentos controlados pelas polícias da Turquia, França e Noruega, países onde residiu.
Uma verdadeira escola de falsificações e calúnias
Para garantir essa gigantesca farsa, foi necessário criar uma enorme operação baseada em acusações forjadas pela polícia política, mentiras, falsificações e calúnias da pior espécie, que foi repercutida pela imprensa da União Soviética e de todos os Partidos Comunistas do mundo e apoiada também por organizações de intelectuais, escritores e artistas, todas vinculados ao stalinismo. Foi o que Trotsky chamou da “Escola stalinista de falsificação”.
Toda essa rede de falsificações de fatos da época e também históricos se baseava em verdadeiros amálgamas. A palavra amálgama, na sua origem, nomeava uma liga de metais, mas sua utilização política começou a ser usada durante a Revolução francesa para caracterizar a prática da ala jacobina de Robespierre contra seus adversários.
Essa corrente acusou falsamente a ala conciliadora de Danton e a ala radical de Hébert de aliados da reação monárquica e inimigos da revolução francesa. Essas calúnias morais mescladas com suas posições políticas serviam para justificar a condenação e execução dos revolucionários franceses.
A partir desse exemplo, passou-se a utilizar o termo amálgama para denominar a mescla de falsas acusações de tipo moral (por exemplo, espionagem, sabotagem, agentes do nazismo) com ataques políticos para justificar acusações, punições e inclusive a eliminação de adversários políticos.
O stalinismo utilizou amplamente esse método, tentando implicar revolucionários honestos, que tinham ou tiveram diferenças políticas, com crimes monstruosos para facilitar que o movimento operário internacional e a opinião pública aceitassem as acusações e a execução dos réus.
Mas por que alguns desses dirigentes, como Zinoviev, Kamenev e Bukharin, confessaram esses e outros crimes mais repugnantes nos tribunais? Para encontrar a resposta, é preciso entender os mecanismos de repressão policial sob o regime de Stálin e como se organizava a escola stalinista de falsificações.
Acusações e confissões forjadas pela polícia política de Stálin
A polícia política, a GPU, depois chamada NKVD, colocava agentes infiltrados provocadores não só em grupos de comunistas oposicionistas e inclusive ao lado de funcionários stalinistas em quem Stalin não confiava.
Nos tribunais eram apresentadas testemunhas que, depois, se soube que eram agentes da NKVD. A NKVD construía verdadeiras maquinações policiais que os acusados eram forçados a confirmar. Esse órgão de segurança do Estado inventava “centros antissoviéticos” falsos que eram atribuídos aos acusados. Segundo o roteiro ditado pela polícia política aos acusados, todos esses centros seriam dirigidos por Trotsky a partir do exílio,
As confissões dos acusados também eram escritas e coordenadas pela NKVD. Os acusados eram brutalmente torturados durante dias, semanas e meses. Quando resistiam, a NKVD e o promotor ameaçavam executar seus familiares mais próximos e poupá-los somente se os réus concordassem em assinar as confissões e prestar depoimento no tribunal para confirmar a farsa.
Só compareciam ao tribunal os acusados que aceitavam “confessar”. Todos os que se recusaram, como por exemplo Preobrajensky e Smilga, foram fuzilados sem julgamento. Como disse Bukharin ao tribunal: “A confissão dos acusados é um princípio medieval”, ou seja, baseado na tortura e nas ameaças como operava a Inquisição na Idade Média.
Em 1956, no seu famoso “Discurso secreto” ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e depois no informe ao XXII Congresso, Kruschev confirmou tudo com detalhes: as montagens armadas pela NKVD, a invenção dos supostos “centros políticos”, os julgamentos e acusações forjadas e as torturas para garantir as confissões.
Stálin orienta o uso oficial de torturas
Kruschev também revelou que o método sistemático das piores torturas era uma prática oficial aprovada por Stálin e pelo Comitê Central do partido. Ele revelou um telegrama de Stálin em código, datado de 20 de janeiro de 1939, aos Secretários de Regiões e Territórios, aos Comitês Centrais dos Partidos Comunistas das Repúblicas Populares, aos Comissários de Assuntos Interiores e aos chefes da NKVD.
Era uma resposta aos líderes territoriais das organizações do partido que reclamavam que os membros da NKVD usavam métodos de pressão física (ou seja, um eufemismo para tortura) contra vários dos membros da própria burocracia. O telegrama de Stálin dizia:
“O Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética precisa que a aplicação de métodos de pressão física pela NKVD é aceita desde 1937 de acordo com a permissão dada pelo CC do Partido Comunista Bolchevique nessa data…”
E Stálin ainda justificava o uso da tortura com o seguinte argumento: “É coisa sabida que todos os serviços policiais dos burgueses utilizam meios físicos para influir sobre os representantes do proletariado socialista e que os usam em suas formas mais escandalosas. Cabe se perguntar: por que o Serviço de Inteligência Socialista há de ser mais humanitário com os mortais inimigos da classe trabalhadora? ”. No caso, evidentemente, os “mortais inimigos” do proletariado eram os comunistas que divergiam.
Falsificação da história e até das fotos
Essa campanha se transformou em uma falsificação da história da Revolução Russa e do partido comunista, que distorcia, falsificava e tentava apagar o papel de Trotsky, como líder da Revolução e chefe do Exército Vermelho, e de outros líderes da revolução. Até stalinistas caídos em desgraça foram apagados da história oficial em artigos da imprensa stalinista, livros oficiais de história e até de fotografias.
O fotógrafo David King publicou um livro impressionante intitulado “O Comissário desaparece”, onde o autor compara as fotografias originais e aquelas falsificadas pelo stalinismo e publicadas na imprensa e em livros soviéticos de história com o objetivo de apagar a imagem de dezenas de dirigentes e funcionários soviéticos caídos em desgraça.
Trotsky denunciou ao mundo inteiro a farsa dos Processos de Moscou e as acusações contra ele. E ao mesmo tempo denunciou os crimes de Stálin e sua escola de falsificações.
A primeira resposta às mentiras, calúnias e amálgamas dos processos de Moscou foi dada por Leon Sedov, dirigente do secretariado da IV Internacional e filho de Trotsky, em “O livro vermelho dos processos de Moscou” cujo link colocamos aqui.
A Comissão Dewey declara: Trotsky inocente!
Trotsky reivindicou apresentar sua defesa em um contra-julgamento, já que os tribunais stalinistas não permitiam que ele se defendesse. Foi formada uma Comissão de Inquérito, composta por intelectuais e dirigentes do movimento operário sem ligação política com Trotsky, encabeçadas pelo filósofo e educador estadunidense John Dewey.
Trotsky fez sua defesa e apresentou inúmeras provas a esta Comissão que desmentiam categoricamente todas as calúnias do stalinismo. Demonstrou também que eram falsos todos os depoimentos de acusados, como Piatakov, que afirmavam que haviam tido contato com ele para receber instruções. O depoimento de Trotsky à Comissão Dewey foi depois transcrito no livro intitulado “O Caso Leon Trotsky”.
A Comissão Dewey, depois de avaliar todas as provas, considerou Trotsky inocente de todas as acusações feitas contra ele nos Processos de Moscou.
A farsa dos processos de Moscou, as contradições dos depoimentos dos acusados e das testemunhas e o desmentido dos fatos pelos próprios dirigentes soviéticos posteriores a Stálin, são contados com detalhes no livro do historiador Pierre Broué, “Os Processos de Moscou”.
Boa parte dos acusados nos processos de Moscou, assim como outros quadros do Partido Comunista também executados, foram reabilitados e sua inocência reconhecida por sucessivos governos soviéticos, de Kruschev a Gorbachev, que não tiveram como negá-lo. No entanto, Trotsky nunca foi reabilitado.
O stalinismo destrói a moral operária e revolucionária
O stalinismo foi responsável não só pelo extermínio de centenas de milhares de militantes revolucionários. Cometeu um crime mais duradouro, que subsiste até hoje. Introduziu no movimento operário os métodos mais desprezíveis: as falsificações, as mentiras, as calúnias, fraudes, violência, as torturas e o assassinato de militantes revolucionários e honestos lutadores.
Pior, tentou justificar esses crimes cobrindo-os e arrastando na lama as bandeiras do comunismo, do leninismo e do marxismo quando o seu único objetivo era preservar os benefícios de uma casta de funcionários privilegiados.
Métodos desse tipo são uma violação da moral revolucionária e da moral operária porque dividem, difamam e enfraquecem a confiança das massas em sua luta pela revolução e pelo socialismo. Hoje, os que tentam reviver o stalinismo serão os que no dia de amanhã tentarão aplicar e justificar ações desse tipo.
Trotsky dizia que “a luta contra a feroz repressão sobre a oposição marxista na URSS é inseparável da luta para a libertação da vanguarda proletária mundial da influência exercida pelos agentes stalinistas e os métodos stalinistas”.
Aos que diziam que a denúncia dos crimes do stalinismo poderia prejudicar a URSS em um momento que era preciso enfrentar o nazismo e o fascismo, Trotsky respondia que a classe operária mundial necessitava saber a VERDADE. A mentira é um instrumento das classes possuidoras. A necessidade que a classe operária tem de conhecer essa verdade sobre o stalinismo é mais atual do que nunca.