A epidemia de violência do governo Bolsonaro e o projeto de extermínio e embranquecimento do Brasil
Em poucas semanas assistimos cenas de barbárie cometidas por agentes que deveriam ser de segurança pública, e custamos a acreditar. No entanto, são cenas reais e que se repetem ao longo de nossa história, hoje muito mais filmadas e divulgadas do que em outros períodos da história.
O caso mais recente foi o assassinato brutal, numa câmara de gás improvisada – ao estilo nazista – de Genivaldo de Jesus Santos, pela Polícia Rodoviária Federal, no estado de Sergipe. Esse ato bárbaro, mas corriqueiro, ocorreu depois de uma das maiores chacinas praticadas, também pela Polícia Rodoviária Federal, em parceria com a Polícia Militar do Rio de Janeiro, na Vila Cruzeiro, onde pelo menos 26 pessoas foram assassinadas, muitas com indícios de execução. No complexo do Jacarezinho, essa mesma polícia já havia cometido a maior chacina da história do Rio de Janeiro. Nessas duas operações de execução de pobres e negros, acharam-se pouco menos de 50 fuzis. No condomínio burguês Vivendas da Barra, não coincidentemente onde mora o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, a polícia pediu licença para entrar e apreender mais de 117 fuzis, isso sem dar um tiro e sem ter uma vítima, todos brancos e burgueses, diga-se de passagem.
Em outro caso de violência endêmica, Mateus Domingues Carvalho, atendente do McDonalds, foi baleado pelo sargento do Corpo de Bombeiros Militar do Rio de Janeiro, Paulo César de Souza, por causa de um cupom de desconto de 4 reais. Em outra situação, o policial federal Ronaldo Massuia Silva atirou em série numa lanchonete, depois de uma discussão com outros clientes. Ele matou uma pessoa e feriu outras três, todas sem possibilidade de defesa. Em São Luís do Maranhão, um vigilante, que seria um agente penitenciário e trabalhava em petshop, matou um professor porque este foi reclamar no estabelecimento.
Poderia ficar citando mil exemplos de agentes de “segurança pública”, que com armas na mão, e o discurso histérico de violência do governo Bolsonaro, tem se sentido protegidos para fazer “justiça” com as próprias mãos: eles julgam e executam!
Mas essa violência acontece em muitas dimensões. No estado do Maranhão, supostamente governado pela esquerda, a violência contra indígenas, quilombolas e trabalhadores do campo tem atingido níveis alarmantes. Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra, o Maranhão foi o estado com mais assassinatos no campo em 2021. No ano de 2022 já foram dezenas de assassinatos, muitos cometidos por policiais transformados em jagunços dos latifundiários e do agronegócio. Isso sem contar – para gente nunca esquecer – a cena de violência explícita, sob o mando e olhar prazeroso do ex-secretário de Segurança Pública e do comandante da Polícia Militar de Flávio Dino, quando o Batalhão de Choque jogou bombas sobre pessoas que estavam dormindo num acampamento para garantir o direito à moradia e meio ambiente da comunidade Cajueiro, zonal rural de São Luís. Como se vê, estamos sendo alvos de todos os lados e governos, no qual a burguesia e o agronegócio mandam e desmandam. É o estado atual de nossa epidemia de violência.
O histórico de violência da polícia e seu papel institucional
Evidentemente isso não é novo. A corporação militar, historicamente, foi criada para combater os movimentos e as revoltas sociais, desde a famigerada Guarda Nacional do Império brasileiro. A partir de então, as forças policiais têm servido de braço armado dos governos para impedir mudanças sociais e, ao mesmo tempo, realizar o projeto de embranquecimento e poder da burguesia brasileira.
Para empreender tal projeto, o método do confronto, da ideologia do terror e do extermínio tem sido utilizado com muita frequência durante séculos no Brasil. Isso é demonstrado nas estatísticas. Pelos dados do Atlas da Violência, lançado em 2019, a juventude brasileira foi vítima de uma completa política genocida. “Entre 2016 e 2017, o Brasil experimentou aumento de 6,7% na taxa de homicídios de jovens. Na última década, essa taxa passou de 50,8 por grupo de 100 mil jovens em 2007, para 69,9 por 100 mil em 2017, aumento de 37,5%”. (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019, p. 26).
Em se tratando da questão racial, esse Atlas comprova a continuidade da desigualdade racial nos números referentes à violência sobre a juventude negra. Para se ter ideia, em 2018, a população negra representava 75,7% das vítimas de homicídios. Isso significava que, para cada pessoa não negra morta em 2018, 2,7 negros foram mortos. Para 100 mil habitantes, a taxa de homicídios da população negra foi de 34 para 37,8 entre 2008 e 2018, o que, segundo o Atlas da violência 2020, significa aumento de 11, 5% em 10 anos. Para comparar, os não negros tiveram uma redução nas mortes de 15,9 para 13,9, ou seja, 12,9%. Isso quer dizer que essa diferença atesta que, para cada pessoa não negra morta, 2,7 pessoas negras são assassinadas. Em relação às mulheres negras, especificamente, houve um aumento de 12,4% no feminicídio, enquanto aconteceu uma redução de 11,7% para as mulheres não negras.
A lógica do racismo leva ao método do confronto. Se são pessoas com periculosidade potencial, é evidente que a abordagem será com extrema intensidade, pois se espera do “criminoso” que ele reaja sempre de maneira violenta. Essa lógica do confronto faz parte da própria estrutura e educação da Polícia Militar, pois foi uma instituição criada desde o período monárquico e depois reestruturada na Ditadura, para enfrentar e conter o perigo da insurreição, manter a ordem e garantir a tranquilidade de quem domina. Portanto, os policiais são treinados com “defensores da ordem”, muito mais do que executores da segurança pública. Como defensora da ordem, a polícia militarizada foi posta em atividade – em essência – não para viabilizar segurança coletiva, mas para servir de entidade privada dos interesses da classe dominante.
O projeto de embranquecimento a ferro, fogo e fumaça
Toda essa violência a ferro, fogo e fumaça – como vimos – é ancorada em um projeto que tem história. O projeto foi e continua sendo embranquecer este país desenvolvendo uma guerra total contra a população negra, ao mesmo tempo que busca consolidar a exploração capitalista a índices elevadíssimos, e isso deve ser realizado com qualquer arma que estiver à mão.
Em 1911, por exemplo, no Congresso Internacional das Raças, o representante brasileiro – João Batista de Lacerda – declarava que “o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução”. A solução para o nosso tempo é clara: exterminar no corpo e na cultura a população negra. Esse projeto tem história e tem leis. A lei de imigração que visava trazer imigrantes europeus para substituir os trabalhadores negros; a lei de Terras, que impedia o acesso a terra de trabalhadores negros; a lei da vadiagem que encarcerava indiscriminadamente homens e mulheres negros desempregados; leis que proibiam os negros de estudarem; leis que proibiam o samba, o carnaval, a capoeira, as religiões de matriz africana com pena de prisão. Ou seja, todo um projeto de encarceramento e extermínio empreendido pela burguesia brasileira.
Desde o período colonial e imperial que a imagem da população negra é associada ao crime, à violência e à barbárie para justificar os atos de terror e violência contra ela. Dessa forma, a marginalização e violência contra negros e negras aos poucos foi sendo naturalizada, como algo normal para punir os desviados da passividade nacional ou como consequência de pessoas que não tiveram mérito para “subir na vida”, “conseguir ser alguém”. Viver em violência passou a ser culpa da vítima e não de quem agride, como bem atesta a nota da PRF de Sergipe ou a entrevista do secretário de comunicação da PM do Rio de Janeiro. A culpa é sempre das vítimas. O Estado, seus governantes e instituições, como a polícia, passaram a exercer violência, ao mesmo tempo em que tal violência era justificada e vista como normal. No (des)governo genocida da Bolsonaro e outros governadores, com seu discurso de ódio e violência, isso tem atingido proporções e justificativas cada vez mais profundas e legitimadoras dos atos de barbárie.
Desmilitarização da polícia e autodefesa da classe trabalhadora
Muitos acreditam – se auto enganam e enganam outras pessoas – que essa violência pode ser estancada apenas mudando o governo. Isso é uma farsa e um mito. É evidente que Lula, por exemplo, é muito diferente de Bolsonaro. Lula não tem o discurso da violência e nem tampouco pretende dar um golpe militar no Brasil. Ele é um republicano, de um partido democrático burguês e evidentemente difere do sadismo bolsonarista. Mas não é verdade que com o seu governo essa prática será estancada. E isso é provado na prática da própria década em que o PT esteve no poder. Como demonstram os números acima, foram anos de extrema violência e extermínio contra a juventude e a mulheres negras. Foi o período da invasão do Haiti com máxima violência contra aquele povo, ao mesmo tempo que politizava generais das Forças Armadas que hoje servem a Bolsonaro, como é o General Heleno.
Essa politização e violência das Forças Armadas também é emblematizada pelas inúmeras ocupações militares do Rio de Janeiro e pelo projeto de eugenização e ocupação militar das Olimpíadas e da Copa do Mundo. Tudo na era petista. Isso aliado, ao extremo encarceramento advindo, inclusive, da Lei Antidrogas sancionada por Lula, sem contar a lei antiterrorismo assinada por Dilma e que hoje paira assustadoramente contra a cabeça dos movimentos sociais. O que foi a Força Nacional, mais uma instituição de repressão, criada nos governos petistas.
Mudar governo não resolve, principalmente quando esse governo está aliado com a mais brutal burguesia e o agronegócio, ao mesmo tempo que empreende economicamente projetos neoliberais de ataque aos serviços públicos e favorecimento do capital financeiro. Se não for um governo que busque se aliar com a classe trabalhadora e mudar radicalmente a estrutura do capitalismo, a essência do capital continuará a mesma e como disse Marx: “Se o dinheiro, […], vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces, o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”.
O que é Geraldo Alckmin se não um dos governadores mais violentos da história do estado de São Paulo, que mandou agredir professores em greve dezenas de vezes e foi responsável por uma das desocupações mais violentas do Brasil, em Pinheirinho? É evidente que temos que colocar Bolsonaro imediatamente na cadeia e tirá-lo do poder, juntamente com Mourão. Mas a violência não será estancada apenas com a mudança de governo como muitos discursam enganosamente. Se a estrutura do capital e das forças de violência continuarem intactas e até serem reforçadas com leis, continuaremos sendo alvos de extermínio como demonstram muitas análises históricas e estatísticas.
Qual seria a solução? Entre as muitas saídas, é ter um governo que se proponha a não ter aliança com os nossos exterminadores, ao mesmo tempo que busque solidificar a aliança com os oprimidos e explorados. A candidatura do PSTU, do Polo Socialista, de Vera, tem proposto esse objetivo.
Além disso, é necessário a desmilitarização da Polícia Militar, pois os policiais devem ter condições de se organizarem sindicalmente, de quebrarem a hierarquia, o mando e a opressão que sofrem de oficiais conservadores, autoritários e com uma formação anti-humana. Esses policiais precisam ter a oportunidade de lutarem por melhores condições de existência, de estrutura de suas carreiras, ao mesmo tempo que é fundamental que passem por uma formação intelectual para entenderem as razões da desigualdade sociorracial no Brasil e as reais causas da violência. Isso será feito quebrando a militarização e hierarquização das corporações militares.
Evidentemente, isso deve ser feito com amplo controle social das comunidades e instituições sociais e populares. Na outra ponta, é preciso discutir e organizar nossa autodefesa contra a burguesia, o agronegócio e a direita. Não adianta ficarmos só com notas de denúncia e repúdio. É passada a hora dos movimentos negros, sindicais e populares organizarem comitês de autodefesa para impedirem e pararem esse projeto genocida de embranquecimento. Por fim, precisamos destruir o capitalismo e construir a revolução socialista como a única possibilidade duradoura e eficaz de vivermos humanamente em condições de equilíbrio com a natureza e entre nós. A emancipação humana é mais do que necessária para evitar a barbárie capitalista da humanidade.