Cultura

A controvérsia do novo comercial do tablet da Apple

Marcel Wando, de São Paulo

21 de maio de 2024
star5 (7 avaliações)

A Apple recentemente enfrentou críticas por causa do polêmico comercial de lançamento do seu novo iPad Pro 2024. A propaganda mostrava objetos enormes sendo esmagados por uma prensa gigante, até que, ao final, resta somente o celular.


Tweet de Tim Cook, presidente da Apple, com o comercial do novo iPad Pro 2024

Essa peça de publicidade é muito semelhante à outra feita pela LG, em 2008, quando lançou seu celular KC910. Apesar de ser a mesma mensagem, em 2008 essa propaganda não teve o mesmo impacto negativo. Por isso, precisamos discutir essa mudança de conjuntura que altera o significado das mensagens.

Propaganda da LG, de 2008, de lançamento de seu celular KC910.

Além disso, é importante mencionar que não é novidade para a Apple tentar dialogar com os medos de um futuro distópico. Basta lembrar de uma publicidade de lançamento do Apple Macintosh, em 1984, que remetia ao livro 1984, de Geroge Orwell. Mas a mensagem final é de que a Apple tinha um compromisso de que o ano não seria igual ao livro.


Arquivo de propagandas antigas mostra anúncio no intervalo do Superbowl, em 1984.

O que mudou nos últimos tempos? Como uma mesma mensagem, escrita em tempos diferentes, tem significados tão diversos? O que mudou nas empresas para que abordassem de uma forma tão diferente o mesmo tema? É o que vamos discutir nesse texto.

Oposto do comercial padrão

Isso é bem diferente de outros comerciais mais “arroz com feijão”. Em geral, as propagandas mostram pessoas distantes se conectando, seja familiares e amigos, seja parceiros comerciais fechando negócios. Ou então, o celular sendo usado para registrar eventos presenciais, como esportes, danças, casamentos, formaturas, etc.

O objetivo é distanciar a imagem do celular sendo utilizado para coisas negativas. Como as seitas de extrema direita que aliciam a juventude nos jogos online, ou na organização de atentados em escolas nos Chans (fóruns online); seja numa juventude cada vez mais sedentária, enclausurada em seus quartos e distante das pessoas próximas do seu entorno. É a receita básica do marketing: mostrar o valor de uso positivo e omitir o negativo.

Dessa vez, como em 1984, mostraram o valor de uso ruim da tecnologia. Mostraram o abuso que pode ser feito por pessoas mal intencionadas. O valor de uso negativo dessa tecnologia. Mas, diferente do passado, parecem estar se colocando como parte do problema, não da solução. Com orgulho da tragédia humana que está sendo promovida.

A repercussão negativa

Um dos comentários críticos exemplares foi de Hugh Grant, que afirmou que o vídeo reflete “a destruição da experiência humana”. Não está totalmente errado. A mensagem da publicidade pretendia a “compactação” das funcionalidades, mas acaba com a destruição de todas aquelas coisas. No vídeo de 2024, o celular não veio para se somar aos objetos antigos, mas para substituí-los, para destruí-los.

Não são só os objetos são destruídos, mas a experiência humana que envolve esses objetos também. Instrumentos musicais destruídos significam o fim das festas com música ao vivo. O fliperama destruído significa que os jogos eletrônicos serão jogados cada um em sua casa, sem promover encontros de jovens. As tintas, apesar de talvez só possuírem um papel dramático (e talvez de dizer que o celular tem muitas cores), ao serem destruídas estão anunciando uma vida sem cores, igual o cinza que nos cerca nos centros urbanos.

Poderia continuar na análise simbólica de tudo o que está sendo destruído. Mas o signo geral é de que “a vida como conhecemos” está evaporando e sendo esmagada diante de nossos olhos. Tudo o que é sólido, se desmancha no ar, e se estiver algo demorando para se desmanchar, uma prensa hidráulica pode acelerar o processo. Uma máquina gigante, que representa a tecnologia humana, servindo para a destruição dos objetos familiares, que representam nosso modo de vida. Impetuosa como um desastre natural, a tecnologia vem, e a nós, seres insignificantes, resta observar resignados. As coisas, as máquinas, com vida própria, agindo contra a humanidade que, apesar de produzir as coisas, não possui qualquer controle sobre elas.

Tecnofobia: o luddismo da era contemporânea

É muito comum ouvir da esquerda frases como “as tecnologias estão destruindo os empregos” e da direita “rejeite a modernidade, abrace a tradição”. Ambas frases buscam responder aos problemas que, aparentemente, foram causados pela tecnologia. O conservadorismo tecnológico é uma solução simples e errada para um problema complexo. Assim como faziam os seguidores de Ludd, no início do século XIX, na Inglaterra, que destruía as máquinas de tecelagem do início da revolução industrial para proteger o emprego dos tecelões.

É verdadeira a crítica à forma com que a tecnologia está sendo utilizada pela humanidade. Mas é falso que o problema esteja na tecnologia, o problema está na humanidade. Não na sua parte moral ou biológica, mas na forma de organização do trabalho e da distribuição da riqueza produzida mundialmente. Sem compreender a causa do problema, jamais seremos capazes de resolvê-lo.

No capitalismo, o avanço tecnológico tem um objetivo o aumento da produtividade, ainda que ao custo do achatamento das experiências humanas. Tecnologias em alimentação, por exemplo, servem para reduzir o tempo de preparo e o custo de produção, não para incrementar a experiência gastronômica ou a capacidade nutritiva. O objetivo é maximizar os lucros. Para isso, aumenta a pressão para que tenha mais tempo produtivo e uma produção mais acelerada, no prejuízo do ócio, do descanso e da fruição.

A força implacável do Capital

Por isso, ainda que o prejuízo à humanidade pareça vir da tecnologia, na verdade ele vem do capitalismo, que organiza a tecnologia para esmagar a humanidade. Melhor dizendo, organiza a humanidade para que uns esmaguem os outros, utilizando novas ou antigas tecnologias como armas de destruição. Brigar com a tecnologia é brigar com as coisas. Nós precisamos lutar contra o sistema.

Por um lado, para os grandes capitalistas, essas novas tecnologias (não só o celular, mas as IAs, baterias, carros elétricos, etc) são uma possibilidade de sair da recessão mundial que se iniciou em 2008 e se arrasta até hoje. Por isso parecem ser uma força inexorável, porque estão representando a metamorfose do próprio Capital, esse sim, uma força social implacável na sociedade capitalista.

Essa aparência do Capital na forma de “novas tecnologias” desperta ansiedade e pavor nas massas de pessoas ao redor do mundo. Talvez, no futuro, façamos uma análise mais aprofundada sobre essas relações da humanidade com o Capital e a tecnologia. Contudo, para os fins desse texto, basta entender que esses são os sentimentos que separam o comercial da LG de 2008 do comercial da Apple de 2024. Esse medo e essa ansiedade é a novidade da atual conjuntura.

Marketing apocalíptico

O roteiro de marketing tradicional consiste de três partes: primeiro cria a consciência do problema, depois vende a solução e, por último, vende o produto. É o texto clássico da Polishop: “Cansado de lavar a louça? Não seria ótimo só jogar tudo em uma máquina que lava pra você? Seus problemas acabaram! Chegou a lava-louças XPTO”.

Existem outros tipos de roteiro, mas nessa nova conjuntura está surgindo um mais… Apocalíptico! Sim, as empresas estão usando narrativas distópicas para vender seus produtos e suas marcas, apelando para o medo e a ansiedade das pessoas.

Se você tem medo de que uma inteligência artificial possa dominar o mundo, o Elon Musk convence 1000 personalidades globais para assinar um documento pedindo uma pausa de 6 meses no desenvolvimento delas. Para uma discussão de ética global? Não. Para ele desenvolver a sua própria empresa, e não ficar para trás.

Está com medo da inteligência artificial conversacional cometer abusos contra seus usuários? Sem problemas! A Open AI tem um corpo técnico com senso de ética e um sistema treinado para barrar qualquer linguagem ofensiva. Ainda que tenha roubado propriedade intelectual e pago somente 2 dólares por hora para trabalhadores no Quênia serem expostos aos piores horrores que essa máquina pode produzir.

Podemos sistematizar o roteiro de marketing apocalíptico na seguinte estrutura: primeiro identificar um um assunto exaustivamente debatido na imprensa e nas redes (um hype) relacionado ao seu ramo, depois apresentar cenários distópicos relacionados a ele, e por último mostrar que você é a única empresa realmente preocupada com impedir que isso aconteça.

No primeiro tipo de roteiro, você corre o risco de seus concorrentes se beneficiarem com seu trabalho de criação de consciência do problema e venda de solução. Eles podem finalizar a venda do produto no seu lugar. No segundo tipo de roteiro, no afã de tentar destruir o produto dos concorrentes, você corre o risco de destruir a solução toda, inclusive o seu produto. Cada empresa calcula o risco que corre.

Apple cometeu um risco calculado?

O vídeo do novo produto da Apple surfou nesse tipo de marketing apocalíptico. Para além dos elementos simbólicos já comentados anteriormente, podemos acrescentar a ambientação como um todo. Cores em tom sombrio num ambiente de arquitetura brutalista e o som de plástico vidro e madeira de quebrando reforçam essa ideia a todo momento.

Tudo isso ao som de Sonny e Cher cantando “all i ever need is you”, em gravação de 1990 que desperta a nostalgia de quem já era jovem naquela época e hoje sente que o mundo lhe escapa por entre os dedos. A mensagem de que o mundo que você conhece está acabando e que não há nada que se possa fazer é estarrecedora. Uma perda de esperança no futuro, que não se sabe como será ou se será melhor ou pior.

A peça de publicidade apresenta uma distopia tecnológica dos Tablets. Com isso, se esperava que a Apple trouxesse alguma solução, certo? Assim como em 1984 eles prometeram que não seria distópico. Poderiam apresentar o navegador sem cookies de terceiros, dispositivo anti-furto, atualização do sistema operacional, sistema de privacidade, enfim, qualquer coisa que mostre que eles são capazes de impedir a catástrofe iminente.

Mas não, nada assim foi entregue. Apenas a empresa dizendo que é isso mesmo, o fim dos tempos, e que ela tem ciência e orgulho disso. Novamente, que ela é parte do problema e não da solução. Ou foi uma péssima tentativa de implementar o roteiro de marketing apocalíptico, ou eles já sabiam dos riscos da má repercussão, e já estavam com a nota de desculpas preparada. Afinal, se tem uma regra de ouro do marketing é que não existe publicidade ruim. E deu certo, porque a maioria de nós não teria ouvido falar desse produto, não fosse esse burburinho todo.

O que nos resta talvez seja discutir até onde as empresas podem ir em sua comunicação para aumentar as suas vendas. Afinal, se já era controverso um refrigerante vender saúde sendo que pode causar diabetes, ou uma cerveja vender felicidade sendo que pode causar dependência química, o que dizer das empresas que usam do terror que elas mesmas praticam e do medo que nos causam?