Educação

A Conae e as lutas da Educação

O evento aconteceu entre os dias 28 e 30 de janeiro e reuniu cerca de 2.500 participantes na capital federal

Redação

22 de fevereiro de 2024
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A Conae foi convocada para elaborar o Plano Nacional de Educação 2024-2034 | Foto: Foto: José Cruz/Agência Brasil

Paula Falcão, do PSTU-Rio de Janeiro; Vanessa Portugal, PSTU-Belo Horizonte

Entre os dias 28 e 30 de janeiro aconteceu em Brasília a Conferência Nacional de Educação (Conae), que contou com cerca de 2.500 participantes, sendo 1.847 delegados e delegadas. Na Conae se debateu temas como o Novo Ensino Médio (NEM), a situação da modalidade de educação à distância (EaD) e outros temas. O presidente Lula esteve na conferência.

Queremos nesse texto apontar alguns elementos em relação aos debates que ocorreram na Conae e os limites desse espaço.

A Conae 2024

A Conae foi convocada pelo governo federal através do decreto 11.697/23 e desde então foram realizadas etapas municipais, distritais e estaduais. O objetivo da conferência, realizada no fim de janeiro, era aprovar uma proposta de texto para a construção do Plano Nacional de Educação (PNE) para os próximos 10 anos. Esse texto foi aprovado e será utilizado pelo Ministério da Educação (MEC) para redigir a proposta de PNE a ser apresentada ao Congresso Nacional para apreciação e votação dos parlamentares.

A Conae criou expectativa em parcelas importantes da categoria dos trabalhadores em educação, especialmente na vanguarda que constrói os sindicatos da categoria e movimentos de luta pela educação. O Fórum Nacional de Educação (FNE), espaço que organiza a Conae, foi extinto ainda no governo Temer e durante o governo Bolsonaro a educação sofreu com o aprofundamento dos ataques. Achamos normal que a categoria crie expectativa de que através dessa Conferencia possa assistir uma melhora no cenário da educação. E é diante desse sentimento que queremos debater sobre a educação no país e o significado da Conae.

A última Conae foi realizada em 2010 e o objetivo dela também era discutir uma proposta de PNE. O PNE 2014-2024 foi aprovado no governo Dilma e a imensa maioria de suas metas não foram alcançadas. Não é objetivo desse texto fazer o balanço do último PNE, mas queremos tratar o aspecto central, a essência daquele plano, que entendemos ser a mesma essência que norteia a ideia do PNE que o governo Lula quer enviar ao Congresso, que é a privatização da educação, mesmo que isso não fique nítido na aparência.

A maioria das delegadas e dos delegados expressaram posições das quais temos acordo, como a revogação do NEM, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a universalização da pré-escola e investimento de 10% do Prodto Interno Bruto (PIB) para educação pública. Defendemos essas posições e queremos partir desse marco para debater sobre as contradições do projeto de educação do governo Lula e as limitações da Conae.

A privatização da educação e o salto nos governos petistas

A partir das décadas de 1970 e 1980 assistimos uma ofensiva do capitalismo em transformar em mercadorias setores e serviços que até então eram de alguma forma preservados em boa parte dos países, saúde e educação são dois ótimos exemplos desse processo. No Brasil, houve todo uma movimentação desde os governos de plantão de desregulamentação do Estado. Na educação, isso significou legitimar e legalizar o setor privado.

Veja, não é que inexistia o setor privado, mas por uma série de leis era dificultado que esses setores atuassem na educação visando a maximização dos lucros, não à toa grande parte das instituições privadas de ensino de antes da década de 1990 eram filantrópicas. É justamente a desregulamentação do Estado que vai permitir as mudanças jurídico-políticas necessárias para o avanço do setor privado, talvez a mais emblemática seja o reajuste das mensalidades, onde o Estado deixa de intervir e passa ser uma negociação direta entre os estabelecimentos privados de ensino e os “clientes”. Todo esse processo aconteceu sob a orientação de organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI)

Esse processo vai se transformar em salto nos governos petistas. A utilização do orçamento público vai possibilitar o crescimento e a consolidação dos grandes grupos empresariais da educação. O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) remodelado em 2010) e o Programa Universidade para Todos (Prouni) são políticas do governo Lula que permitiram transferir bilhões de reais diretamente para os grupos empresariais da educação a partir da emissão de títulos do tesouro.

Entendemos que muitos jovens tiveram acesso a um curso de ensino superior através desses programas, não somos de forma alguma contra esses jovens, defendemos que toda e qualquer pessoa que queira cursar o ensino superior deva ter direito, por isso criticamos o processo em questão, pois a expansão alardeada escondia uma transferência de recursos públicos e uma lógica de organização da educação que prejudicou o conjunto da classe trabalhadora como veremos a seguir.

Nesse processo de transferência de verba pública para as empresas privadas, os grupos empresariais da educação vão abrir capital na bolsa de valores e vai acontecer uma série de fusões e aquisições entre esses grupos. Nesse período, pós-crise econômica mundial de 2008, os fundos de investimentos é que operam as ações dos grupos educacionais na bolsa de valores. Esses grupos educacionais vão dominar o ensino superior no país, uma monopolização do setor. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), em 2002, os 20 maiores grupos educacionais possuíam 14% do mercado, já em 2015, os 12 maiores grupos possuíam 44% do mercado. A realidade hoje é ainda pior.

O PNE 2014-2024 aprovado no governo petista de Dilma Roussef tinha como base legitimar esse processo que estava em andamento e aprofundá-lo, legitimando a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada. Por trás de algumas metas bonitas se escondia a verdadeira política negociada com os grupos empresariais da educação e seus representantes políticos, como é o caso do movimento Todos Pela Educação (TPE).

Temer aprofunda o processo privatista

Após uma expansão desenfreada, o Fies entra em crise em 2016. O financiamento do programa sofreu cortes e o número de vagas foi reduzido drasticamente. Os grupos empresariais da educação se relocalizaram e começou um movimento de diversificar os nichos de mercado. Esses grupos avançaram na modalidade Ead, nos materiais didáticos e na educação básica.

Aqui também teve grande ajuda estatal. O governo Temer, mesmo com sua política de teto de gastos com a emenda constitucional 95 (EC 95), aprovou diversas políticas construídas junto com os grupos empresariais da educação. As mais emblemáticas são a BNCC e o NEM.

A BNCC enxugou os currículos retirando conteúdo e os adequou a trabalhar com as competências. O resultado é que a maioria dos filhos da classe trabalhadora terá o acesso negado a grande parte do conhecimento produzido pela humanidade e com um conteúdo de defesa de uma sociedade que explora e oprime a maior parte dos seres humanos.

Outro aspecto é que terão uma formação para um mercado de trabalho com subempregos e empregos informais, não por acaso que uma das competências centrais da BNCC é a competência socioemocional, pois já que as crianças e jovens serão submetidos a situações de maior exploração e humilhação, se faz necessário formar um indivíduo obediente e conformado, ou como eles dizem, indivíduos “resilientes”.

O NEM é a expressão mais acabada da BNCC e o resultado estamos acompanhando com a diferença brutal das disciplinas oferecidas nas escolas estaduais e nas escolas particulares.

O que é importante reparar aqui, as políticas educacionais no governo Temer não significaram uma mudança de qualidade em relação as políticas educacionais nos governos petistas, o que assistimos foi um aprofundamento do processo de privatização que deu um salto nos governos de lula e Dilma e um maior protagonismo dos representantes políticos dos grupos empresariais da educação. O MEC era praticamente uma extensão do TPE.

Mudança de qualidade: Bolsonaro tenta impor seu projeto autoritário para educação

O governo Bolsonaro sim expressou uma mudança de qualidade no que diz respeito às políticas educacionais. Como seu projeto era impor uma ditadura no país, usou o MEC para agitar suas pautas antidemocráticas e também soube usar as pautas dos costumes no terreno da educação. Essa mudança foi sentida até na perda de protagonismo do TPE dentro do MEC.

O Projeto Escola sem Partido, apesar de derrotado na sociedade, era a concretização do projeto de educação de um governo que pretendia impor uma ditadura. E mesmo sem aprovação no Congresso, o governo atuava na educação sob a égide desse projeto. Os inúmeros ministros da Educação atuavam contra a militância e o ativismo social em geral. Lembremos dos ataques às universidades públicas.

A política educacional que virou carro chefe no governo Bolsonaro foi o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM), instituído por decreto. O objetivo era colocar militares da reserva na gestão das escolas. Sendo a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 desmascarada cada vez mais, podemos ter ideia do impacto que esse projeto poderia ter trazido caso fosse melhor executado. O objetivo de Bolsonaro aqui se complementava, perseguir os profissionais da educação e a juventude, empregando parte de sua base política.

A localização do governo Lula no terreno da educação

Lula assume após 4 anos de um governo de ultradireita, e se apoia em todas as atrocidades cometidas por Bolsonaro. No terreno da educação, acabou com o PECIM, no entanto assistiu passivamente alguns governadores e prefeitos afirmarem que iriam manter as escolas cívico-militares. Lula se apropria do sentimento de enfrentamento ao Bolsonarismo, mas não enfrenta os problemas que levaram Bolsonaro ao poder.

O governo Lula retomou as negociações com os grupos empresariais da educação, dando-lhes espaço no MEC e em outros ministérios, como é o caso do empresário Jorge Paulo Lemann que tem atuação no MEC e no Ministério das Comunicações, através da ONG MegaEdu, podendo influenciar cifras bilionárias do orçamento público. Antes mesmo da posse já estava explicito uma composição de conciliação de classes no MEC, o grupo de transição da educação foi composto por dirigentes sindicais e conhecidos ativistas da educação junto a representantes dos grupos empresariais da educação, como foi o caso de Priscila Cruz, presidente do TPE.

O enfrentamento ao bolsonarismo e a ultradireita é fundamental, mas o que faz o governo Lula é se basear na aparência de enfrentamento a esses setores para facilitar a cooptação dos movimentos sociais. Ter o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, coordenando o FNE não é qualquer coisa, dá a sensação de que os trabalhadores terão voz na política, mas isso é um erro. Esse governo de conciliação de classes se organiza dessa forma para negociar em melhores condições com os setores empresariais e tentar apassivar a nossa classe.

 Por duas vezes, o plenário da Conae entoou a palavra de ordem “Fora Lemann!” | Foto: Angelo Miguel/MEC

“Fora Lemann!”: As contradições da Conae e o papel de Lula

Os/as participantes da Conae em sua maioria expressaram um descontentamento com as políticas educacionais e com a presença dos grupos empresariais da educação na formulação destas políticas. Por duas vezes, o plenário entoou a palavra de ordem “Fora Lemann!”. A defesa da ampla maioria dos participantes foi pela revogação do NEM e da BNCC. O sentimento que ficou do plenário da Conae é de enfrentamento ao processo de privatização da educação.

O texto final aprovado por emendas guarda um pouco deste sentimento, é verdade. No entanto, nos parece que aprovação por emendas e a direção da Conferência não permitiu um debate mais profundo sobre um projeto de educação que atenda os interesses da classe trabalhadora. Vejamos o exemplo do NEM. Foi aprovado a sua revogação, as/os participantes saem com o sentimento de vitória, mas o que o governo Lula defenderá no Congresso quando o tema voltar à pauta? O PL 5230/23 do governo ainda que proponha algumas alterações não significa a revogação do NEM, tanto é assim que quando do seu envio ao Congresso a própria presidente do TPE declarou que era um avanço e não mudava a essência do NEM. Nos parece que o movimento que o governo Lula está realizando é de se apropriar das pautas do movimento para negociar com os grupos empresariais da educação e com o Congresso.

Outro aspecto é que mesmo o documento aprovado na Conae não é ele ainda o texto do PNE, ainda vai passar pelo Congresso. Ou seja, será o Congresso, com aqueles deputados e senadores que vão deliberar sobre o PNE. Fica a pergunta, alguém tem alguma esperança no que será aprovado no Congresso? Imaginamos que não! Lá não é o espaço dos trabalhadores, mas dos grandes empresários que negociam as políticas nos ministérios e secretarias, às portas fechadas. Não podemos ter nenhuma confiança no congresso. Quem deve construir as políticas de educação do país são os trabalhadores da educação, estudantes e a comunidade escolar.

Em seu discurso na Conae, Lula se dedicou a falar sobre a disputa no Congresso. Reforçou a ilusão nesse espaço. Em nossa opinião fez isso com dois objetivos: o primeiro, de envolver o ativismo na defesa do governo; o segundo, já preparando a narrativa de que não havia correlação de forças no Congresso caso pautas defendidas na Conae sejam derrotadas. O que é provável que aconteça.

Com isso, o governo Lula ganha espaço para seguir suas negociações com os grupos empresariais da educação sobre as políticas a serem aprovadas. Aqueles e aquelas que participaram da Conae e expressaram sua indignação com o processo de privatização da educação precisam se questionar: quem colocou Lemann e o TPE no MEC? Eles não entraram lá à força, foi a convite do próprio governo Lula. A consequência desta política de conciliação de classes é a desmoralização dos trabalhadores e o fortalecimento da ultradireita.

É necessário construir uma alternativa de independência de classe em relação ao governo

As principais entidades que deveriam representar os trabalhadores em educação e a juventude do país infelizmente fizeram a opção em defender o governo e mais uma vez atuam como braços governamentais nos movimentos sociais. Já dissemos aqui que o presidente da CNTE é o coordenador do FNE. A cooptação dos movimentos e entidades dos trabalhadores é uma característica dos governos de conciliação de classes.

Nos primeiros governos petistas isso também ocorreu. A União Nacional dos Estudantes (UNE) não só defendeu as políticas dos governos do PT, mas foi proponente e coautora de diversas políticas educacionais, politicas estas, que como dissemos anteriormente, serviram para transferir verba pública para os grupos empresariais de educação. Essas entidades, como CNTE e UNE, deveriam organizar a lutas dos trabalhadores e da juventude para a defesa de uma educação pública, gratuita, de qualidade e a serviço da classe trabalhadora. Por isso, devemos exigir que essas entidades rompam com o governo Lula.

Para defender o governo petista eles argumentam que é preciso lutar contra a ultradireita. Concordamos que a luta contra a ultradireita é uma necessidade, mas achamos que só conseguiremos fazer isso desde o fortalecimento das organizações dos trabalhadores de forma independente dos governos. Um dos elementos que fortaleceram a ultradireita no país foi justamente a política de conciliação de classes, não podemos seguir repetindo essa formula.

Da nossa parte estamos conversando e organizando os/as trabalhadores/as nos locais de trabalho e atuando nas entidades de base tendo como premissa essa independência e autonomia em relação aos governos. Nesse sentido, um instrumento fundamental para construirmos é a CSP-Conlutas. Na educação, a construção dos setoriais de educação da CSP-Conlutas em níveis nacional, estaduais e municipais é uma tarefa importante no fortalecimento de uma alternativa de organização e de luta dos trabalhadores em educação.

Por um projeto de educação a serviço da classe trabalhadora!

Uma parcela considerável dos mais destacados ativistas da educação esteve na Conae. Queremos dizer a estes companheiros e companheiras que estamos juntos nas lutas em defesa da educação e da nossa classe de Norte a Sul do país. Também estivemos na Conae. Nossos/as camaradas que estiveram lá discutiram com os ativistas que tiveram contato sobre a necessidade do que apontamos nesse texto, em discutir um projeto de educação a serviço da classe trabalhadora e que se enfrente com o sistema capitalista.

Entendemos perfeitamente as expectativas que a Conae semeou. No entanto, afirmamos categoricamente, o governo Lula não pode cumprir as reivindicações dos trabalhadores em educação e governar para os grupos empresariais da educação ao mesmo tempo. E não achamos que exista essa disputa no governo, a escolha por governar com os empresários já está feita, não achamos que há um governo em disputa, tese defendida por inúmeras organizações que serve para defender aberta ou veladamente o governo Lula.

Para o governo, espaços como a Conae servem para cooptar os movimentos sociais, legitimar sua política e ganhar peso nas negociações com os diversos grupos empresariais e também no congresso. Não podemos ter esperança que as mudanças que necessitamos na educação virá dos grupos empresariais e do congresso.

Um projeto de educação a serviço da nossa classe, que defenda que o investimento público seja exclusivamente na educação pública. Uma educação que esteja a serviço da construção da organização de uma sociedade livre de exploração e opressão, com especial atenção ao cuidado com meio ambiente. Um projeto de educação baseado numa democracia de verdade, a democracia operária. Esse projeto não pode ser construído em conjunto com empresários e os governos que os representam. Esse projeto de educação só pode ser obra dos próprios trabalhadores, construído em suas organizações de forma independente e autônoma. A essa tarefa, que não é fácil, chamamos os ativistas da educação de todo país a construirmos juntos.