A classe média vai ao paraíso
Fernanda Torres brilha em um filme sem grandes novidades
Ainda estou aqui (2024), último filme de Walter Salles, parece estar caminhando para um sucesso de crítica. Em suas primeiras semanas o longa bateu recordes de bilheteria após uma boa recepção no circuito dos festivais, o que lhe rendeu a indicação nacional ao Oscar de 2025. O longa é baseado no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva em que conta a história de sua mãe, Eunice Paiva, durante a ditadura militar e o “desaparecimento” de seu marido, Rubens Paiva – ex-parlamentar assassinado pelos militares.
Uma história em si comovente e que, de quebra, traz Fernanda Torres no papel de Eunice, personagem central do filme. Sua possível indicação ao prêmio de Melhor Atriz da Academia já foi suficiente para reacender na alma do cinéfilo brasileiro uma fagulha de esperança e, por que não, de revanche. Há exatos 25 anos sua mãe, Fernanda Montenegro, concorreu ao Oscar de Melhor Atriz pela atuação em Central do Brasil, também de Walter Salles. Mas acabou perdendo para Gwyneth Paltrow (Shakespeare Apaixonado, 1998) e a estatueta de melhor filme internacional foi para o italiano A vida é bela (1999).
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Afinal de contas, o pobre é burro?
Confesso que, embora pouco provável, sou desses que já imaginaram lavar a alma com uma estatueta para a brasileira. Realmente, a interpretação de Fernanda Torres está fantástica. Então porque não?
Mas dito o necessário para não dizerem que não falei das flores, é importante localizar a obra em um exercício crítico. A começar pelo fato de que quando falamos de “público do cinema no Brasil” estamos falando de uma parcela bem específica. As últimas pesquisas pré-pandemia apontavam no país um público frequentador de salas de cinema de cerca de 20 milhões de pessoas, mais da metade entre as faixas de consumo A e B, concentradas no sudeste. Homens consumindo filmes de ação e policial, mulheres consumindo comédias e romances. Em ambos os casos, de maioria internacional. Tudo isso mudou muito com a pandemia e o boom dos serviços de streaming. Mas não há razões para achar que se trata de uma mudança radical.
Então, quando falamos de um público consumidor de filmes dramáticos, histórico-nacionais (“mais um filme da ditadura”, dizem alguns torcendo o nariz), falamos da parcela da parcela. Isso explica o descompasso entre sucesso de público e sucesso de crítica. São universos não raramente distintos.
Um romance burguês
Alguns, cientes desse recorte, olham com certo receio todo o “hype” (o entusiasmo) em torno do filme. Nas redes sociais, Ainda estou aqui é um estrondo. Mas a vida não são as redes sociais. Uma amiga me revelou em privado: “um comercial de margarina interrompido pela ditadura”, criticou.
E em algum lugar ela tem razão.
Toda a primeira metade do filme se dedica a construir essa relação idealizada que tem nas cenas gravadas em Super 8 o melhor do estilo “anos dourados” com a família visitando o terreno onde seria construída a futura casa.
Nesse sentido a obra tem um explícito e típico caráter de um romance burguês (mesmo não sendo exatamente um romance). No centro um indivíduo com seus dilemas, e uma trama que se desenvolve sob sua vida privada apartada do mundo lá fora. Ou seja, objetos e realidade histórica aparecem autonomamente e não em sua relação com os homens atuando no mundo.
Não por acaso a sala da casa é um cenário central do filme e que a própria casa tem status de personagem, como se o interior da propriedade privada fosse a alegoria do interior psíquico e emocional dos personagens: a casa é vigiada, a casa se entristece, se fecha, perde brilho e, finalmente, se esvazia e é deixada para trás em uma tentativa de esquecimento e superação. As imagens nos créditos finais expõem isso diretamente.
Nesse aspecto, a trama não é diferente conceitualmente de uma novela da Globo em que toda a trama se passa nas salas das casas, ricas ou pobres. A sala de estar é o palco privilegiado do romance burguês porque é ali que se desenvolve a vida privada dos personagens em sua perspectiva individualista e psicologista. Nesse relato descritivo, a práxis, a atuação do sujeito no mundo, desaparece. Não por acaso pouco se mostra sobre o que de fato Eunice fez na luta pela memória de seu marido. A história simplesmente salta para sua conclusão. Para quem não conhece, a teoria do romance tem ampla discussão entre marxistas e simpatizantes como Lukács, Bakhtin e Benjamin.
Essa supervalorização do drama individual leva necessariamente a uma ofuscação da dimensão social do problema. Lógico que as cenas da ditadura estão lá, as prisões, arbitrariedades e violência ou mesmo a luta armada e a resistência são fatos incontornáveis. Mas sempre em segundo plano, como detalhes contextuais. Os próprios filhos da família Paiva não tem seus medos e conflitos explorados. Parecem todos extensões da Sra. Paiva. Coisas passam batidas como o fato de Zezé, única personagem negra e doméstica da casa, simplesmente não ter história e sumariamente ser cortada da trama, simples como uma demissão. Mesmo a praia, espaço inegavelmente coletivo, parece mera extensão da casa.
Ainda, ao se distanciar do problema em seus aspectos sociais e de classe, em algum lugar coloca a trama numa espécie de terceira via estética. “Não sou reaça, mas também não sou os terroristas vermelhos. Veja bem, sou uma pessoa esclarecida e um democrata moderado, bacana, e com bom senso”. Entende? É a idealização da classe média progressista que quer fazer parte da revolução mas não quer sujar as mãos.
A classe média no divã
Mas não se enganem, Ainda estou aqui não pretendia outra coisa senão isso. E talvez aí esteja a chave de seu sucesso até então. Ainda estou aqui parece se incluir na linhagem de filmes aberta com Democracia em vertigem, de Petra Costa em 2019. Para quem não se lembra, o filme apresenta o ponto de vista da família do cineasta e sua relação com a redemocratização do país e foi o maior frisson entre o público intelectual e progressista. Mais uma vez aqui a perspectiva é a de um indivíduo, sua família e o mundo visto desde aí, mesmo para um assunto eminentemente político, coletivo e social, como foi o impeachment.
Em 2019, nessa mesma linhagem, tivemos Bacurau, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles. Um pouco diferente dos outros dois, não se caracteriza pelos seus aspectos romanescos burgueses mas igualmente atende aos anseios do mesmo público, uma classe média intelectual e progressista que se deprimia frente à ascensão e primeiro ano de governo bolsonarista. O filme, uma espécie de Mad Max sertanejo, foi catártico em todos os sentidos. Repleto de simplismos, idealizações e romantizações (e tudo bem, pois a proposta era essa), o filme lavou a alma da classe média em crise.
No divã de Bacurau a classe média progressista pode idealizar um povo sem contradições: trabalhadores honestos, quase folclóricos, simples em sua pobreza, sem evangélicos, nem preconceitos ou outras coisas que exigiriam explicações, unidos em harmonia com marginalizados e intelectuais. Quase bons selvagens, que não são bons pois estão ali para realizar uma predestinada e justa violência contra o opressor. Assim, cada espectador democrata honesto projetou ali seu familiar reaça e projetou sobre ele toda a violência simbólica e catártica de Bacurau, como nunca sessão de terapia. Com as vantagens de não ter que lidar com as consequências nem com a culpa ao acender das luzes. O sucesso de Bacurau foi ter dado vazão a esse desejo latente e reprimido de violência que não pode ou não deve ser realizado na prática.
“O cinema é o divã do pobre“, disse Félix Guattari ao se referir à sétima arte como uma máquina de sonhos e desejos. “O cinema transformou-se numa gigantesca máquina de controlar a libido social”. E filmes assim atendem aos desejos honestos de uma classe média e pequena burguesia intelectualizada e progressista – justamente a parcela de público que consome esses filmes. Daí a ampla aceitação. Dão a ela um lugar ao sol na revolução (idealizada) sem sujar suas camisas de linho. Esse três filmes, aliás, atendem a angústia de um setor que assiste preocupado a deterioração da democracia burguesa nos últimos anos.
Um filme bonito e que vale a pena
É irônico que tenha sido dirigido por Walter Salles – vale dizer -, que é de uma família de banqueiros, setor cúmplice da ditadura cívico-militar no nosso país. Irônico também que a mesma crítica que aplaude em pé o filme apoiem, sem críticas, governos que engavetaram ou não levaram a cabo a punição dos responsáveis – fato denunciado pelo próprio filme. Mas essas não são contradições propriamente da obra e, particularmente, sou daqueles que acham que nenhuma obra é obrigada a nada.
Mas se você chegou até aqui e está esperando eu falar mal do filme, sinto lhe informar, pois é agora que discordo de minha interlocutora. As linhas críticas acima são apenas uma tentativa de adicionar camadas à obra. Ainda estou aqui é um filme que vale a pena ser assistido. Sim, mais um filme nacional sobre ditadura (ninguém fala mal de Hollywood fazer centenas filmes sobre a Segunda Guerra, porque não podemos falar de ditadura?). É verdade, não apresenta nada de muito novo, mas é um filme tecnicamente bem realizado. É cinema de qualidade, conseguindo conciliar coisas opostas como sensibilidade e brutalidade, como na cena em que os irmãos se perguntam “quando você enterrou o pai?” – simbolicamente, pois esse nunca aconteceu.
As atuações também merecem destaque. Selton Mello, consegue muito bem construir a figura desse pai amável (tem como não simpatizar com Selton Mello?) preparando muito bem o mal estar de sua falta. A rápida participação de Fernanda Montenegro é também impactante. Sem uma palavra, apenas com olhares e minúsculas expressões, consegue transmitir a profundidade desse trauma. E, claro, a atuação de Fernanda Torres que vale por si só – estarei torcendo por ela no Oscar.
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