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No jogo de empurra-empurra, as três esferas de governo têm culpa no apagão 

Redação

20 de outubro de 2024
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Ruas do bairro Bom Retiro com fabricas e lojas sem energia elétrica desde sexta-feira devido as chuvas. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Uma rápida tempestade na cidade de São Paulo foi seguida de um apagão que atingiu de 2,1 a 3,1 milhões de domicílios em vários bairros e áreas da região Metropolitana. Mesmo agora, quando este texto está sendo escrito, milhares de residências ainda não tiveram sua energia restabelecida pela Enel, a empresa italiana responsável pela concessão do setor.

Em plena disputa eleitoral no 2º turno das eleições à prefeitura de São Paulo, o apagão tomou o centro dos debates, num infindável jogo de empurra-empurra. O candidato do PSOL, Guilherme Boulos, denuncia o descaso do atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição ancorado no governador de extrema direita Tarcísio Freitas (Republicanos) e o próprio Bolsonaro. Boulos acusa Nunes de não realizar as podas das árvores, que, numa tempestade, danificam os fios elétricos.

É um fato. Pouco mais da metade dos pedidos de podas realizados à Prefeitura foram efetivadas no último período, 58% mais precisamente, sendo essa uma das maiores reclamações em relação aos serviços de zeladoria da cidade. É um reflexo evidente do completo abandono deixado por Nunes, que reduz sua gestão à simples e pura repressão contra pobres e a população de rua, enquanto a cidade se desmorona.

Por outro lado, Tarcísio, tutor de Nunes, denuncia a Enel, a negligência da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e o Governo Federal, responsáveis pela concessão do serviço público à empresa italiana. Também é um fato, já que os paulistanos vem sofrendo com a deterioração do serviço prestado pela transnacional, enquanto a Aneel não só nada faz, como age, na prática, como agência lobista da empresa, e o Governo Lula tampouco se move para enfrentar a situação.

A verdade é que as três esferas do governo: Federal, Estadual e Municipal, são diretamente responsáveis pelo apagão. Mais do que isso, ao contrário do que possa parecer e do discurso, agem em benefício da Enel, ou de outras empresas do mercado, numa disputa de lobbies em que um serviço essencial é disputado por bilionários capitalistas. Um reflexo do que já vem ocorrendo em outras áreas, com resultados igualmente ou até mais trágicos, como o caso da contaminação por HIV de seis pacientes transplantados por conta da negligência de uma empresa terceirizada do Rio de Janeiro. 

Um histórico da privatização em São Paulo

O drama sofrido por centenas de milhares de paulistanos é produto do desmonte, privatização e desnacionalização do setor elétrico. Um processo iniciado nos anos 1990, e seguido pelos demais governos, incluindo o atual. 

Ainda durante o governo Collor, em 1990, é criado o Programa Nacional de Desestatização (PND), a fim de estabelecer as bases para a venda do patrimônio público ao capital estrangeiro, pagar a dívida pública aos banqueiros, num processo que inclui a abertura comercial e todo o pacote do neoliberalismo e do então chamado “Consenso de Washington”.

O governo FHC seguiu e aprofundou essa política, que ainda colocava o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para financiar a própria desnacionalização de empresas e setores essenciais. Um marco dessa política foi a venda da Light, empresa de energia do Rio, em 1996, para a Electricité de France (EDF). Apesar de o negócio ter sido viabilizado pelo BNDES, que comprou mais de 15% das ações postas à venda, o controle da empresa passou para a EDF.

Mesmo ano, inclusive, em que é instituída a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), uma autarquia para “regular” e “fiscalizar” o setor e que hoje está no centro do imbróglio envolvendo a Enel. No papel, teria a função de garantir o controle do Estado sobre a concessão pública. Na prática, faz justamente o oposto: reduz o papel inclusive do Ministério de Minas e Energia, do qual faz parte, e funciona para garantir os interesses das empresas, transnacionais e oligopólios privados que passaram a controlar o setor.

E onde entra a Enel?

A antiga Eletropaulo, fundada em 1981, em meio ao processo de privatização nos anos 1990, foi desmembrada e colocada à venda. Em 1998, o atual vice-presidente, Geraldo Alckmin, comandou a privatização da empresa quando, além do cargo de vice-governador de Mário Covas (PSDB), comandava o Programa Estadual de Desestatização.

Alckmin, então vice-governador de SP, comandou venda da Eletropaulo Foto Divulgação

A Eletropaulo foi então vendida a um consórcio formado por empresas como AES Corporation, Houston Industries Energy, EDF e a CSN. A AES acabou comprando a maior parte da empresa, que passou a se chamar AES Eletropaulo.

E a Enel? Ela entrou em 2018 quando comprou a Eletropaulo da AES por R$ 5,5 bilhões, sendo que só a receita da antiga estatal totalizava R$13 bilhões. Um verdadeiro presente de pai para filho.

Com a incorporação da AES Eletropaulo, e seus mais de 7 milhões de “clientes”, a agora Enel São Paulo se tornou  líder do mercado de energia no país, atendendo um público de mais de 17 milhões de pessoas em 500 cidades país afora, e uma receita de nada menos que R$ 30 bilhões.

Mas quem é a Enel? Fundada como uma estatal, a empresa abriu seu capital em 1999, ficando o governo italiano com 23% de suas ações. Mas a grande maioria dos investidores, quase 60%, são grandes investidores internacionais. Passou a atuar em diversos países como Chile, Espanha, EUA, e, claro, Brasil, praticando, na América Latina em especial, uma política de rapinagem explícita para maximizar seus lucros. 

 

No controle da distribuição da energia na capital e região metropolitana, a Enel mandou embora 4 mil funcionários, ou mais de 50% de seu quadro, o mesmo que reduziu em “custos operacionais”. Isso enquanto a demanda pelo serviço aumentou 20% no mesmo período.

A Enel também não fez os investimentos que se comprometeu quando assumiu a distribuição de energia em São Paulo. Conta com desempenho abaixo da média das outras empresas, e está entre as 10 piores concessionárias de energia do país. Na medida em que os serviços pioravam por conta do corte de funcionários, redução de investimentos e deterioração da estrutura, sua receita foi turbinada em 131% nos últimos cinco anos, e seus lucros subiram 37%, acumulando R$ 2,6 bilhões.

Esses lucros ajudam a tapar o buraco da companhia na Itália, onde acumula uma dívida equivalente a R$300 bilhões. A tarifa paga pelos paulistanos, e a população que está sob o controle da empresa, e todo o sofrimento provocado pela destruição do serviço, assim, garantem os dividendos de meia dúzia de bilionários, enquanto, no resto do mundo, suas filiais acumulam prejuízos.

O papel da Aneel e do MME

A atual diretoria da Aneel, empossada pelo governo Bolsonaro, não só não enfrenta a Enel, como garante que ela continue atuando. Resume-se a impor multas ridículas que, perto dos lucros que a empresa aufere, não fazem cócegas. E mesmo a maior parte delas a Enel simplesmente não paga, como os R$165 milhões de multas referentes ao apagão de novembro passado, suspensas pela Justiça através de liminar. Na prática, atua como mantenedora do contrato e da exploração da empresa.

Ministro do PSD de Kassab, presidente Lula e o CEO global da Enel, em junho passado

Já o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, do PSD de Kassab, atuou como lobista da empresa italiana. No mesmo dia em que ocorria a tempestade em São Paulo, Silveira estava com diretores da companhia em Roma. Em junho passado, o ministro e Lula se reuniram com o CEO da Enel, Flávio Cattaneo, momento no qual Lula afirmou que estaria disposto a renovar a concessão da Enel se a empresa ampliasse os investimentos no país para R$20 bilhões. Um delírio quando, o que a Enel fez esses anos todos, foi justamente o contrário.

A ligação de Silveira com a Enel é tamanha que a empresa contratou um empresário próximo do ministro para presidir seu conselho de administração.

A hipocrisia da extrema direita

Nunes e Tarcísio exigem a ruptura do contrato de concessão com a Enel, e o prefeito chegou a chamar o ministro de “vagabundo”. Seria de se perguntar se Kassab, dono do PSD do qual o ministro faz parte, e que apoia a reeleição de Nunes, pensa o mesmo. 

O discurso da extrema direita é tão cínico quanto hipócrita. Tarcísio acabou de privatizar, sob porrete, a Sabesp, num processo ainda mais escandaloso do que foi a privatização da Eletropaulo. E o que querem é simplesmente transferir o contrato bilionário de concessão a outro grande monopólio do setor.

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Basta ver que, enquanto denuncia a Enel, Tarcísio nada fala sobre a ViaMobilidade, concessionária privada de trem e metrô que teve dois vagões incendiados em menos de uma semana, no que poderia muito bem ter sido mais uma tragédia causada pela privatização.

Os limites de Boulos

Guilherme Boulos se limita a atacar a Enel, Nunes, Tarcísio e o Governo Bolsonaro, mas se recusa a tocar na ferida da privatização. Se por um lado é verdade que a falta de podas de árvores pela prefeitura é um dos fatores para o apagão, se poderia simplesmente arrancar todas as árvores de São Paulo que os serviços continuariam piorando. 

Boulos deveria atacar a extrema direita, mas perde a oportunidade de colocar em pauta o tema da privatização e, mais ainda, exigir a reestatização imediata do setor de energia.

Os três governos são culpados

Em resumo, as três esferas de governo são culpados pelo apagão em São Paulo. O Governo Federal que, além de não mover uma palha contra a Enel, tem um lobista da empresa como ministro, do mesmo partido de Kassab que apoia Tarcísio e Nunes. Além disso, o Governo Federal avança nas privatizações, através de PPP’s (Parcerias Público-Privadas), e do atual Programa de Parcerias para Investimentos (PPI).

Isso é reflexo da política de conciliação de classes e de um projeto imposto com e para a burguesia. Um programa que se reflete, inclusive, na aliança com Kassab, que vem impulsionando candidaturas de extrema direita, e que mantém um pé no bolsonarismo. 

Tem culpa o governo Tarcísio, que mantém e aprofunda a política de privatizações, além de, assim como a Aneel, ser conivente com as atrocidades da Enel via Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), uma agência estadual com as mesmas atribuições de sua congênere federal.

Tem culpa o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que transformou a capital num canteiro de obras para se reeleger, mas que não foi capaz de fazer as podas das árvores. Mais do que isso, assim como Tarcísio, é comprometido com as grandes empresas, avança nas terceirizações e privatização, tendo sido crucial, inclusive, para a venda da Sabesp. E que, agora, nas eleições, se compromete ainda mais com um programa de extrema direita e o bolsonarismo.

Reestatizar já, sob o controle dos trabalhadores

O apagão em São Paulo é mais um exemplo de como o sistema capitalista e este regime dos ricos funciona para o lucro dos bilionários, e como isso se expressa nas cidades. Também é um exemplo de que não há uma dicotomia entre Estado e mercado, já que, no capitalismo, o Estado atua como balcão de negócios da burguesia.

É preciso exigir de Lula a reestatização imediata da Enel, da Eletrobras e todo o setor elétrico entregue ao capital privado e estrangeiro. Não é suficiente romper o contrato com a empresa italiana e transferir a concessão para outro grande oligopólio privado, como defendem Tarcísio e Nunes. É preciso lutar pela expropriação da empresa, sem qualquer indenização, pelo contrário, fazendo-a pagar indenizações pelos prejuízos sofridos pelo povo paulistano, e colocá-la sob controle dos trabalhadores.