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Vitor Ramil celebra em disco os 80 anos do poeta trotskista Paulo Leminski

O projeto teve inicio em 2021, ainda em meio a pandemia da Covid-19

Roberto Aguiar, jornalista cultural

14 de outubro de 2024
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Cantor, compositor e instrumentista gaúcho Vitor Ramil | Foto: Marcelo Soares/Divulgação

No dia 24 de agosto deste ano, marcou-se os 80 anos de nascimento do poeta curitibano Paulo Leminski. Sua obra, inquieta como sua própria personalidade, é vasta e multifacetada. Além de poeta, ele foi tradutor, romancista, colaborador de vários suplementos literários, letrista de músicas e autor de vários ensaios e biografias. Além disso, atuou como professor de História, jornalista e publicitário.

Leminski foi ícone da chamada contracultura no Brasil. Foi um cultuador e renovador da palavra e de suas possibilidades poéticas. Seja como escritor, ensaísta, crítico tradutor ou poeta, ele sempre se manteve próximo dos princípios da estética “concretista”, que tem na sua base o vínculo inseparável e dialético entre a forma e o conteúdo dos textos.

Leminski reivindicava León Trotsky, o dirigente da Revolução Russa de 1917 ao lado de Lênin, e resgatou o pensamento trotskista sobre as relações entre arte e revolução, que defende “toda licença na arte”, que deve “abrir por si mesma o seu próprio caminho”.

Para celebrar os 80 anos desse poeta-concretista-trotskista, o cantor e compositor gaúcho Vitor Ramil lançou na última quinta-feira, dia 10, em todas as plataformas digitais o álbum “Mantra concreto”. Vitor musicou poemas de Leminski, em um processo que começou ainda no período da pandemia, em 2021.

Vitor Ramil conversou com a nossa coluna.

Como teve início a criação do álbum ‘Mantra concreto’?
Em 2021, durante a pandemia, justamente por estar isolado em casa, fui contaminado pela poesia de Paulo Leminski. Certo dia, enquanto lia o poema ‘Sujeito indireto’, passei a mão no violão e minha imunidade baixou. ‘Quem dera eu achasse um jeito, de fazer tudo perfeito’ logo virou canção. Nos dias subsequentes a cena se repetiu com outros poemas. Em três semanas, treze poemas, treze canções: ‘De repente’, ‘Teu vulto’, ‘Administério’, ‘Amar você’, ‘Profissão de febre’, ‘Palavra minha’, ‘Um bom poema’, ‘Anfíbios’, ‘Será quase’, ‘Sujeito indireto’, ‘Minifesto’, ‘Caricatura’ e ‘Mantra Concreto’.

Você já tinha musicado poemas de Leminski?
Sim. Há alguns anos musiquei ‘O velho León e Natália em Coyoacán’ e ‘Uma carta uma brasa através’, mas dessa vez o processo foi diferente. A contaminação fora brutal. Não demorou para que o contagiante repertório tomasse meus pensamentos. Eu nunca criara um grupo de canções tão coeso em tão pouco tempo. Agora contava então com quinze canções em parceria com Paulo Leminski. Como não pensar em um álbum?

Como se deu a escolha do título do álbum?
O nome vem de um poema cujo título foi dado por mim. Muitos poemas de Leminski não possuem título. Os versos de ‘Mantra concreto’ remetiam à poesia concreta, que influenciou o poeta. Seu tema, de prece e pressa, com pinceladas entre o mítico e o espiritual, me fez pensar em mantras e no caráter mântrico de muitas das minhas composições, que ganhavam concretude com aquela poesia clara e rigorosa. A expressão “mantra concreto” passou então a representar o conjunto das canções e a sugerir os caminhos para a concepção do álbum como um todo: arranjos, gravações, mixagem, masterização e capa.

O álbum já foi pensado para ser uma homenagem aos 80 anos de Leminski?
O disco seria inevitavelmente uma homenagem a Paulo Leminski, até porque seria gravado e lançado em 2024, ano em que ele completaria 80 anos. Eu não sabia dessa efeméride, que me pareceu meio mágica, feito o meu surto criativo. O que, sim, sabia, era que cada aspecto do trabalho deveria estar contaminado pelo autor e sua poesia.

Como você ver a personalidade de Leminski?
Paulo Leminski, o lírico que associa o esquecimento e a chuva no telhado à felicidade, é também o cachorro louco que faz chover no nosso piquenique. O álbum precisava expressar sua personalidade e sua obra feitas de contrastes.

Com se deu a produção do álbum?
Com a colaboração de meus co-produtores e músicos de base Alexandre Fonseca e Edu Martins, encarei o desafio trabalhando de modo minucioso e com calma. Eu estava em Pelotas, Alexandre no Rio, Edu em Porto Alegre. Os músicos convidados, André Gomes (sitar, guitarra), Carlos Moscardini (violão), Santiago Vazquez (kalimba) e Toninho Horta (guitarra) estavam, respectivamente, em São Paulo, Argentina, Uruguai e Belo Horizonte. Vagner Cunha (violino), José Milton Vieira (trombone) e Pablo Schinke (violoncelo) estavam em Porto Alegre. Nunca tocamos juntos, mas o resultado foi como se tivéssemos nos reunido na casa de Leminski no Pilarzinho, em Curitiba, onde ‘qualquer som, qualquer um’, pudesse ser a voz do poeta; onde ‘todo susto sob a forma de um súbito arbusto’, cada ‘seixo solto, céu revolto’, pudesse ser seu vulto ou sua volta.

Como é a responsabilidade de musicar palavras de um dos mais importantes poetas do Brasil?
Que responsabilidade traduzir Paulo Leminski em música, ele que, como está em sua fala na canção de abertura, ‘De repente’, dizia que “a música é o destino natural do ser humano”. Buscamos que essa tradução fosse completa e percebida logo de cara na sonoridade dos instrumentos. Há muito tempo eu queria experimentar o baixo sintetizador por intuir que sua combinação com meus violões de aço, que gravo dobrados e tocados simetricamente, seria o ideal para termos graves pesados sem interferir na integridade dos violões. A hora era aquela. Era preciso que o synth fosse tocado principalmente com notas breves, de modo a não tomar conta do espectro sonoro. Para completar a sonoridade básica que perpassaria todo o disco, bateria, tablas, demais percussões e programações cuidariam não só da rítmica, mas também do colorido nas regiões médias e agudas. Edu Martins, músico de exceção, é também um mago que fez chover com o synth bass; Alexandre Fonseca, tablas e bateria, é conhecido do meu público pelo trabalho marcante em Ramilonga — A estética do frio. Premiado num concurso do Nine Inch Nails, ganhou direito a acessar o banco de sons da banda. Com isso cravou alguns pregos de nove polegadas e foi fundo em suas próprias invenções, como tocar em esculturas de ferro. Assim chegamos ao que nos pareceu uma atmosfera leminskiana para todas as músicas.

E a concepção…
A concepção se mostrou coesa como o repertório. Do som agudo mais sideral e cristalino descemos aos tremores de terra mais cavernosos, capazes de modular a voz e tudo mais que estivesse em volta; da regularidade horizontal e geométrica dos violões, volta e meia descambamos para acentos verticais em tempos aleatórios; a limpeza mais limpa e a podreira mais podre trocaram figurinhas; música das galáxias, gotas de absinto, uma viola caipira lisérgica, uma máquina de escrever que substitui uma bateria, o ataque de um besouro-sintetizador gigante, o voo de famintos violinos-mosquitos, um violão de nylon fantasma. No meio de tudo, a voz flutuando como um holograma. Acho que levamos Paulo Leminski a seu destino.

… a capa do álbum integra esse processo?
Para a capa, desde o começo desejei algo que remetesse ao construtivismo e ao cubo futurismo russos e também à cultura pop. O designer Felipe Taborda apareceu com uma paródia do clássico cartaz de Rodchenko e Maiakóvski. Nada mais alta cultura e pop ao mesmo tempo, exatamente como a poesia de Paulo Leminski, em que a voz das ruas conversa com a voz interior mais elevada, em que um grafite casual ombreia com versos da maior sofisticação. O cartaz original, conforme apresentado no encarte, oferece livros de ‘todos os campos do conhecimento’ à classe trabalhadora. Leminski e o velho León certamente iam gostar. Como ícone pop, a peça de Rodchenko e Maiakóvski já foi usada mil vezes como propaganda de festas estudantis e, entre outras aparições, inspirou a capa de um disco da banda de rock Franz Ferdinand. Agora, com todo o ímpeto, retomo o gesto de Lília Brick e grito: MANTRA CONCRETO!

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