É possível uma oposição de esquerda ao governo? Uma polêmica com Valério Arcary
Artigo recente divulgado por Valério Arcary, da corrente Resistência, que hoje integra a direção majoritária do PSOL, traz uma interessante indagação: o que está em disputa no governo Lula? Resumidamente, Arcary argumenta contra duas posições que, a seu ver, estariam equivocadas: o apoio incondicional ao governo por um lado, e uma oposição “intransigente” pela esquerda por outro.
A base para a posição esgrimida por Valério é a mesma que vem orientando a sua organização no último período: a tarefa fundamental para a esquerda, no momento (e nos últimos seis anos pelo menos diga-se de passagem), seria enfrentar a extrema direita. Tudo o mais estaria a serviço disso, inclusive apoiar um governo “burguês”.
A seguinte síntese talvez ajude a expressar melhor a análise que Arcary projeta sobre o governo e suas contradições:
” A representação burguesa no seu interior (do governo) não é decorativa. A fração que integra o governo é muito representativa e poderosa. Mas a conjuntura é qualitativamente diferente de vinte anos atrás. É muito pior, porque surgiu no mundo e no Brasil um movimento de extrema-direita com neofascista que influencia metade do país e se apoia em uma relação social de forças desfavorável para os trabalhadores. São estes fatores que explicam porque seria errado a esquerda radical integrar o governo Lula. Disciplina de governo exigiria um apoio incondicional, o que seria indefensável. Mas são elas também que explicam porque seria um erro passar para o campo de oposição ao governo. Uma localização na oposição imporia uma crítica intransigente, o que seria imperdoável. Não há qualquer possibilidade de ‘ultrapassagem’ do governo Lula pela esquerda. Na oposição ao governo quem ocupa todo o espaço político é a extrema-direita.”
Seria de se perguntar, então, em qual posição, para Valério Arcary, a esquerda deveria se localizar para enfrentar a extrema direita. Segundo o artigo, ao o governo Lula ter como principal preocupação a “concertação com a fração da classe dominante que garante sua governabilidade no Congresso Nacional”, o que seria “insuficiente” para derrotar o bolsonarismo, o papel da “esquerda combativa é criticar esta impotência“.
Seria, portanto, defender o governo Lula, um “governo burguês” segundo o próprio, mas criticando sua “impotência” em derrotar o bolsonarismo, devido aos acordos e o esforço de compor com setores da direita e do centrão.
Já sobre a esquerda que defende se colocar como oposição de esquerda, o autor lança dois argumentos: “Não é verdade que não há diferença entre o governo Lula 3 e os governos que assumiram o poder depois do golpe institucional (sic) de 2016”. Mais ainda: “Não é justo concluir que não se pode lutar contra Bolsonaro sem lutar contra o governo Lula. Ao contrário, o que a vida ensina é que não será possível vencer na luta contra a extrema direita sem o apoio do governo Lula“.
Diante desses argumentos, seria talvez conveniente tecer comentários sobre alguns pontos: 1º o caráter do governo Lula; 2º as causas do surgimento e da resiliência da extrema direita, e finalmente, qual a melhor forma de combatê-la.
Um governo diferente, que segue gerindo o capitalismo
Vamos começar com um acordo: “não é verdade que não há diferença entre o governo Lula 3″ e os demais governos”. Não tenho conhecimento de algum setor que defenda essa caracterização hoje, mas ela não deixa de estar correta. Lula não é Bolsonaro, assim como Fernando Haddad não é Paulo Guedes. Mas não pelas razões descritas por Valério. Lula e Bolsonaro compartilham de projetos políticos distintos. Um defende uma ditadura aberta, redução ou eliminação das parcas liberdades democráticas. Outro, tem como objetivo gerir o capitalismo por dentro do atual regime democrático-burguês. Ambos, porém, cada um a seu jeito, mantêm uma política neoliberal que beneficia os bilionários, o agronegócio, as multinacionais, e seguem o processo de desnacionalização e entrega do país.
Guedes fazia o papel de cachorro louco da Faria Lima, com um projeto ultraliberal que englobava, entre outras medidas, privatizar todas as estatais, impor um brutal arrocho no funcionalismo público (“botar uma granada no bolso do servidor”), e desvincular todos os benefícios sociais do salário mínimo, acabando até mesmo com a sua recomposição inflacionária. Impôs ainda uma reforma da Previdência que configurou o maior ataque às aposentadorias desde a reforma de Lula no setor público em 2003.
Já a política econômica de Fernando Haddad tenta retomar parte do pseudo desenvolvimentismo da era Dilma, leia-se, beneficiar determinados setores da burguesia, mas mantendo a responsabilidade fiscal como prioridade. Um neoliberalismo ancorado na ampliação seletiva de gastos públicos destinando toda sorte de benefícios para os bilionários capitalistas. Uma política econômica, porém, do próprio governo, e não produto de uma luta política num contexto de correlação de forças desfavorável.
Vejamos, o arcabouço fiscal foi elaborado, proposto e entregue pelo governo Lula ao Congresso Nacional. Ao contrário do que tenta fazer parecer parte da esquerda, ele não é uma medida progressiva em relação ao teto de gastos de Temer, mas uma atualização desse regime. Substituiu um teto que, na prática, já não existia, e impôs um regime de austeridade fiscal que engessa os investimentos públicos a uma taxa inferior à dos anos FHC. Mais do que isso, pressupõe ainda a desvinculação do piso constitucional da Saúde e da Educação, medidas já estudadas e planejadas nos corredores da Fazenda e do Congresso Nacional.
O arcabouço não foi uma política imposta pela direita no Congresso Nacional. Ao contrário, foi uma medida elaborada no gabinete do Ministério da Fazenda de Haddad, assinada na mesa do Palácio do Planalto e, uma vez tramitando no Congresso Nacional, aprovada com a providencial ajuda de Arthur Lira, com a liberação de bilhões de emendas parlamentares.
Da mesma forma que o governo Lula não concedeu R$ 400 bilhões ao agronegócio, no maior Plano Safra da história, com a faca no pescoço. Foi uma decisão política do governo. O mesmo agronegócio que incendeia o país, extermina indígenas e pressiona para a aprovação do Marco Temporal. E falando sobre os povos originários, cada vez mais representantes indígenas rompem com um governo que se recusa a qualquer diálogo, enquanto mantém as portas abertas aos latifundiários e grandes empresários.
Situação semelhante pode ser dita sobre os servidores públicos federais, que sofreram com a dura intransigência do governo, uma forte truculência contra a heroica greve que protagonizaram no primeiro semestre, e por fim, amargaram o reajuste zero em nome da meta de superávit primário.
Sobre política ambiental, Lula, enquanto discursa contra a degradação do meio ambiente na ONU, aqui pressiona pela liberação da exploração do petróleo na Margem Equatorial, e se reúne a portas fechadas com ninguém menos que o presidente da Shell.
Poderíamos nos estender indefinidamente aqui listando os ataques protagonizados pelo governo Lula. Mas, o que já deveria ter ficado bastante evidente, principalmente à “esquerda radical”, é que o governo Lula governa com, e para os bilionários. Mesmo a política de juros do Banco Central, como o próprio Valério Arcary cita, que seria talvez o único cavalo de batalha que o governo esboçava contra a Faria Lima, já jogou a toalha e votou pelo aumento da Selic seguindo os ditames do mercado.
Sobre a extrema direita
Um outro acordo que se poderia ter com o artigo de Valério Arcary é que o governo Lula se mostra incapaz de enfrentar o bolsonarismo. Nessas eleições, por exemplo, nas 103 maiores cidades do país, candidatos bolsonaristas superam os apoiados por Lula. Mesmo em São Paulo, Guilherme Boulos (SP), com o próprio Lula em sua campanha, não consegue avançar nas periferias. Quase 20% do eleitorado que votou em Lula nas últimas eleições afirmam ter preferência no candidato de Bolsonaro, Ricardo Nunes. Isso sem contar que, em 85 cidades, o PT está coligado com o PL de Bolsonaro.
A resiliência do bolsonarismo, e o surgimento de novos fenômenos, como Pablo Marçal em São Paulo, mostram que a derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022 foi necessária naquele momento, mas insuficiente para se enterrar de vez a ultradireita. E isso por uma razão bem simples: a extrema direita não é um fenômeno meramente eleitoral, mas tem suas raízes fincadas no processo de degradação, crise social e retrocesso na consciência de classe. Não é, como faz parecer o artigo de Valério Arcary, um fenômeno de geração espontânea cavalgada por aventureiros.
Movimentos de ultradireita não brotam da terra. Analisando o surgimento do ascenso do nazismo na Alemanha nos 1930, Trotsky afirma:
“O fascismo provém de duas condições: de um lado, de uma grave crise social; de outro lado, da fraqueza revolucionária do proletariado (…) que, por sua vez, tem duas causas: primeiro, o papel histórico particular da social-democracia que ainda é uma agência poderosa do capitalismo nas fileiras do proletariado; em seguida, a incapacidade da direção centrista do KPD (O partido comunista) de unir os operários sob a bandeira da revolução” (Alemanha: A Chave da situação internacional)
Trotsky identifica um processo combinado entre crise social e o papel da direção do proletariado. O que vivemos no Brasil, embora não possa ser classificado como fascismo (ao contrário do que defende a corrente de Arcary), é um movimento de extrema direita com peso de massas, e uma ameaça às liberdades democráticas que deve ser enfrentado e derrotado sem qualquer hesitação. Movimento que emerge e toma força a partir da crise aprofundada sob os governos do PT, principalmente entre o final do governo Lula e os governos Dilma.
Vivendo a ressaca provocada pela falência do ciclo de crescimento econômico possibilitado pelo boom das commodities dos anos 2000, reflexo da crise capitalista mundial, e sob uma grave crise fiscal, a então presidente Dilma respondeu chamando para gerir a economia o representante do mercado financeiro, Joaquim Levy, que impôs o maior ajuste fiscal da história. Ao mesmo tempo, atacava direitos trabalhistas como PIS-PASEP e o seguro-desemprego. O resultado não poderia ter sido outro: entre 2014 e 2016, o país passou pela maior recessão de sua história, com o disparo do desemprego e uma profunda queda da renda.
E qual era a situação da classe trabalhadora nesse contexto? Após uma década e meia de governos do PT, sem que os problemas estruturais mais básicos fossem resolvidos, houve ainda um profundo retrocesso na consciência de classe do proletariado e da população pobre. Produto de um discurso que negava sistematicamente qualquer antagonismo entre as classes, pelo contrário, promovia a ideia de que os interesses dos trabalhadores, dos patrões, do agro, das grandes empresas, eram os mesmos, e apostando em concessões e benefícios de caráter focado e individual. Sem falar na aproximação, com incentivos e benefícios, a setores evangélicos e fundamentalistas.
Crise econômica, política e social que desataram num processo brutal de desmoralização e desgaste do governo e do PT. Junto a isso, a ausência de uma alternativa à esquerda, e o retrocesso na consciência de classe, que dava cada vez mais lugar a uma visão meritocrática e individualista de mundo, converteram-se em terreno fértil para que a extrema direita pudesse brotar e crescer livremente.
Tudo isso desaparece na análise de Arcary. Ao contrário do que faz parecer parte da esquerda, o mundo não começou em 2016…
Qual a política em relação ao governo Lula?
Valério Arcary argumenta que “não é possível vencer na luta contra a extrema direita sem o apoio do governo Lula”. E decreta que não há espaço para uma oposição de esquerda, pois ela já está ocupada pela extrema direita.
A alternativa seria então, um apoio “crítico” para pressioná-lo ao enfrentamento à ultradireita. Isso por si só já não faz sentido, pois os sucessivos governos do PT pavimentaram o caminho para a extrema direita, e agora, o governo Lula 3, recrudesce ainda mais sua política de ataques para gerir um capitalismo em crise, em favor dos bilionários. Ou seja, se a gestão dos governos petistas criaram as condições para a ultradireita emergir, agora se dobra a aposta com uma gestão, e uma composição de forças, ainda mais à direita.
E o dramático é que nem mesmo esse papel de conselheiro crítico à esquerda o PSOL é capaz de cumprir. Recentemente, a bancada do partido votou a favor do corte do BPC (Benefício de Prestação Continuada) a 670 mil idosos e pessoas com deficiência, como forma de compensação à desoneração fiscal de 17 grandes setores da economia. O PSOL não só não denunciou a medida, como a sua bancada votou a favor dessa medida que não pode ser classificada nada menos que perversa.
Combate-se a extrema direita apoiando um governo que ataca a classe trabalhadora, impõe um regime de austeridade fiscal, e ainda votando a favor desses ataques? É um pensamento um tanto peculiar.
A argumentação de Valério Arcary padece, na verdade, de uma lógica formal, nada dialética, que não consegue ir além do aspecto eleitoral: Lula é o único candidato que consegue derrotar Bolsonaro (isso há dois anos), logo, é impossível vencer o bolsonarismo sem ele e o PT. Porém, dois anos depois da derrota eleitoral de Bolsonaro, e de governo Lula 3, vemos a extrema direita à frente de importantes capitais na corrida eleitoral, e figuras como Marçal catalisando uma extrema direita ainda mais radicalizada.
Formal porque coloca como pressuposto essencial a disputa eleitoral. Temos que segurar esse governo burguês, abdicando de qualquer reivindicação da classe trabalhadora e engolindo os ataques (quando não participando deles), para reelegê-lo em 2026, porque se não a ultradireita volta. E depois? Depois vemos. Não dialético porque não vê a realidade em movimento, as tendências em curso, o processo de retrocesso econômico e social para além dos números conjunturais divulgados pelo IBGE, e a necessidade de se combater o atual governo e a sua política. Até ser defrontado por um processo como foi junho de 2013, e ter que sacar alguma teoria da conspiração para tentar explicá-lo.
Esse discurso, na verdade, não é de hoje. Em 2013, por exemplo, em meio à convulsão social, dirigentes petistas, até supostamente críticos como Valter Pomar, falavam, em certo tom de ameaça, que a esquerda não tinha alternativa por fora do PT. Foi uma espécie de profecia auto realizada, já que a esquerda majoritariamente permaneceu como puxadinho de Lula, como o PSOL fez e faz agora, e negou-se a se colocar como alternativa à esquerda, mesmo reformista, progressista ou o que seja.
É um argumento utópico, porque coloca como tarefa apoiar Lula e o PT até que a ultradireita esteja definitivamente derrotada, e a roda da história volte para trás, na velha polarização da Nova República entre uma esquerda e uma direita institucionais, “democráticas”, por dentro do regime. Uma espécie de etapismo reacionário em que se abandona, sobretudo, qualquer critério de classe.
Essa posição é, na verdade, uma armadilha com o objetivo de perpetuar a capitulação da esquerda ao PT e à política de conciliação de classes. E o problema, como o próprio Valério afirma, é que a situação hoje é “muito mais grave”. Na crise que desembocou no impeachment de Dilma, havia um espaço antissistema que foi ocupado pelo bolsonarismo diante da ausência de uma alternativa realmente antissistema à esquerda. Hoje, já existe uma extrema direita muito mais consolidada, ideológica que, como mostra o fenômeno Marçal, não depende exclusivamente da liderança de Bolsonaro.
Para Valério Arcary, o que está em disputa é o enfrentamento à extrema direita, e para isso deve-se apoiar o governo. Mas o que está em disputa, na realidade, é o próprio futuro da humanidade diante do aprofundamento dos eventos climáticos extremos. São os direitos sociais mais básicos, como os empregos (cujos índices atuais são escondidos pelo subemprego e a precarização). É a aposentadoria. E também a luta contra a extrema direita, que se fortalece e se alimenta da desmoralização dos governos do PT, numa verdadeira espiral que afunda o país num processo cada vez maior de barbárie e degradação.
E é justamente por isso que não dá para enfrentar Bolsonaro sem enfrentar o governo Lula e a sua política que é quem, hoje, aplica uma política neoliberal, com ajuste e austeridade fiscal, inclusive apoiando privatizações de governos de ultradireita, como em São Paulo. Afirmar que é impossível impulsionar uma oposição de esquerda ao governo Lula porque esse espaço é ocupado pela extrema direita é um falso dilema “Tostines”, pois a esquerda nunca ocupará mesmo essa posição se não enfrentar o governo, disputando a consciência da classe trabalhadora e dos setores mais marginalizados e oprimidos, ganhando-os para um programa e a luta em defesa dos direitos da classe, contra o arcabouço fiscal, por educação, saúde e saneamento básico. E para um projeto socialista e revolucionário.
Sem romper com o governo, construir uma forte oposição de esquerda que dispute a consciência da classe trabalhadora para, inclusive, enfrentar o bolsonarismo e a ultradireita, ficaremos presos nesse círculo infernal, e daqui a dois anos estaremos discutindo tudo isso aqui de novo. Se ainda houver um país até lá.
Leia também
O voto no “mal menor” perpetua uma polarização entre alternativas dentro do mesmo sistema