Incêndios: América Latina pede socorro! É preciso romper o poder dos capitalistas
Publicado originalmente no Portal da LIT-QI
Como latino-americanos, onde as estatísticas dizem que o catolicismo é predominante, é possível que em algum momento de nossas vidas, a maioria de nós ouviu falar que a bíblia diz que o mundo vai acabar em fogo. Provavelmente muitos e muitas de nós lembramos disso ao visualizar os incêndios florestais e sua voracidade.
A realidade nos mostra que o poder de destruição dos incêndios e suas consequências posteriores podem colocar parte da humanidade em risco de perder a vida, mas a responsabilidade está longe de ser moral/religiosa ou individual. A explicação para essa situação não é aquela baseada em pecados e punições como quer nos fazer crer o senso comum alardeado pela igreja e os poderosos.
América Latina coberta por fogo e fumaça
A América Latina já não pode ser visualizada do espaço. Nos dois últimos meses as imagens que vemos são de um continente cheio de pontos vermelhos produzidos pelo fogo ou de nuvens de fumaça cobrindo a antiga e linda imagem espacial da terra azul.
De acordo com o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), do Brasil, o número de focos de incêndios detectados pelo satélite de referência entre 01/01 a 20/09 de 2024 na América Latina totaliza 380.245 e abrange 13 países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guyana, Guyana Francesa, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela). Desses apenas o Chile, a Guyana Francesa e o Uruguai têm menores números que em 2023.
O Brasil lidera as estatísticas com 195.314 focos concentrados principalmente nos biomas da Amazônia e do cerrado. Dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) do Brasil informam que até o dia 16 de setembro eram 749 municípios com declaração de emergência e 11,2 milhões de pessoas afetadas diretamente. O prejuízo já totalizava 1,1 bilhão, o que significava ser 33 vezes maior que os prejuízos de 2023. No mesmo período do ano passado, a população afetada por seca/estiagem era de 630,7 mil pessoas, em 120 Municípios[1].
A Bolívia é o segundo país em número de focos de incêndios segundo o Inpe, 67.620 focos detectados. Os incêndios florestais devastam os departamentos de Pando, Beni e Santa Cruz, que estão todos localizados na Amazônia boliviana e onde ocorreram mais incêndios historicamente. Em um informe publicado pelo governo, em 19 de setembro, são 3,8 milhões de hectares afetados, 64 municípios, sendo 28 em estado de emergência e 43 mil pessoas afetadas diretamente.
No Equador, segundo o mesmo informe do Inpe tinha 1267 focos detectados e o governo declarou emergência em 15 províncias. Os incêndios começaram dia 23 de agosto e até o dia 20 de setembro queimaram 23.453 hectares de vegetação. A segurança alimentar está em risco porque há mais de 7.000 cultivos afetados prejudicando mais de 2.800 produtores agrícolas que em sua quase totalidade perderam as colheitas de legumes e verduras[2].
No Peru também é o maior número de focos de incêndios dos últimos anos criando uma situação de emergência nacional onde, de acordo com informe do governo[3] , os departamentos mais afetados incluem Cusco, Cajamarca, Huancavelica, Huánuco e Apurímac, onde as atividades agrícolas são mais intensas. Os incêndios neste país também já causaram ferimentos de queimaduras em 165 pessoas e a morte de 18 pessoas este ano. Além disso, mais de 2.000 hectares de culturas foram afetados.
A Colômbia, Venezuela, Argentina e Paraguai também são países duramente atingidos pelos focos de incêndios. Na Colômbia a Unidade Nacional de Gestão de Riscos e Desastres (UNGRD) informou no dia 19 de setembro que “durante o mês de setembro ocorreram 249 incêndios florestais em 14 departamentos: Cundinamarca com 66, Huila com 44 e Tolima com 44 são os mais afetados. As chamas consumiram 23 mil hectares de floresta”.[4] No Paraguai, segundo o Instituto Florestal Nacional (INFONA)[5] até agora mais de 181 mil hectares foram destruídos na área de Chovoreca (área protegida) e um total de mais de 353 mil hectares foram atingidos em todo o país. Na Argentina, a província de Córdoba é a mais afetada atualmente onde o fogo já consumiu por volta de 20 moradias.[6]
Podemos dizer que esses são os efeitos e consequências diretas dos incêndios, no entanto está longe de refletir todas as implicações. Os incêndios florestais impactam diretamente a biodiversidade, os solos e o ar. E se tudo isso ainda não chamava a atenção por não impactar diretamente a maioria da população, atualmente se torna mais visível através da fumaça que respiramos em todo o continente e que já leva a morte de milhares de pessoas. Além disso, o CO2 liberado para a atmosfera contribui em muito para o aquecimento global que, seguramente, vai levar a mais eventos climáticos extremos, o que também, como indicam as pesquisas, já está sendo entendido pela maioria da população que sofre as consequências.
As causas dos incêndios
É verdade que as secas sempre existiram. Como afirma o Atlas das secas (2018)[7], a civilização já passou por fome, migração e doenças provocadas pela falta de chuvas desde a antiguidade. Afinal, vivemos em um planeta que apresenta diferentes condições ambientais. Mas o ser humano foi adaptando-se às situações ambientais adversas e retirando da natureza aquilo que era necessário à sua sobrevivência, além de produzir adaptações que inclusive possibilitou cultivar em zonas secas, como por exemplo, a irrigação.
Mas, se o ser humano foi capaz de criar condições e tecnologia para enfrentar as situações adversas e inclusive conseguir cultivar nas áreas mais secas, a pergunta é porque chegamos à condição de desequilíbrio atual?
O problema é que a voracidade pelo lucro de um setor muito minoritário da sociedade, os grandes bilionários, foram forçando os limites do planeta até chegar ao desequilíbrio atual, que nem mesmo os negacionistas estão tendo mais espaço para refutar. E, no sistema capitalista, onde o central é o lucro, além de não fazerem nada para reduzir as toneladas de CO2 lançadas na atmosfera, esses mesmos bilionários, com a ajuda de seus representantes nos governos, aproveitam as catástrofes climáticas que atingem os pobres para ganhar mais dinheiro.
Os eventos climáticos extremos, como a seca vivida na América Latina, passaram a ser um prato cheio para os que lucram com esse sistema irracional aproveitar o momento para provocar incêndios de acordo com seus interesses como, por exemplo, ampliar a quantidade de terras para a monocultura e pecuária em territórios de populações originárias ou áreas de preservação ambiental.
A realidade que está cada vez mais visível em todos os países do continente que sofrem os incêndios é que a maioria é provocado por um setor da classe rica que explora os recursos naturais de forma completamente irresponsável e que é totalmente apoiada pelos governos de plantão, sejam eles de direita, de centro ou da esquerda dita “progressista”. O corte de árvores e destruição de ecossistemas para a criação de gado, a monocultura e a exploração mineral é a marca registrada das últimas décadas na América Latina.
O aprofundamento da exploração capitalista exige cada vez mais quantidade de matérias primas e energias, que intensifica a pressão sobre os recursos naturais e o continente latino-americano é um dos que mais se intensificou essa retirada nas últimas décadas. No início do século XXI, o denominado neoextrativismo, ou seja, uma nova fase do extrativismo que os países latino americanos já haviam vivido em outros momentos, escancarou as portas para uma exploração desenfreada dos recursos no continente por parte, principalmente de transnacionais imperialistas, e foi incentivada por todos os governos de plantão. Os altos preços internacionais dos produtos primários ajudaram inclusive os “progressistas” a criar a ilusão nos trabalhadores e povo pobre que agora era a nossa vez.
No entanto, os privilegiados foram os ricos (empresários imperialistas e seus sócios nacionais), que ficaram mais ricos. E o ciclo da concentração da riqueza permanece, pois nossos recursos naturais são saqueados, nossa mão de obra é explorada e a maior do que é destinado aos caixas públicos através dos impostos retornam, com acréscimos, aos mesmos ricos através de incentivos fiscais, empréstimos a juros baixos e outros meios. Aos pobres os governos repartem as migalhas, através de vários bônus e bolsas pobreza, para garantir a sua permanência no poder. Esses mesmos governos são aqueles que, inclusive, destinam parte dos recursos para a força pública reprimir as populações originárias, pequenos agricultores e movimentos sociais que questionam a entrega de nossos recursos e a invasão de terras praticada pelos grandes empresários. E enquanto isso, fecham os olhos para as práticas dos mesmos que utilizam os incêndios para justificar invasão de territórios dos povos indígenas e áreas protegidas para expandir seus negócios.
No Brasil, o país com maior extensão de terras, é nítido como coloca Jeferson Choma: “As imagens de satélites são a maior prova de que as queimadas indicam a abertura de novas fronteiras agrícolas para o modelo de agricultura capitalista chamado agronegócio.”[8]
A diretora do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) no Brasil diz que “a maioria destes incêndios tem origem criminosa. Um dos casos mais comuns é o de pecuaristas que utilizam queimadas para limpar os pastos. Normalmente, esta prática tradicional só é permitida com autorização prévia do estado onde o terreno está localizado. A crise atual levou à sua proibição absoluta em todo o país. Talvez seja a lei menos respeitada no Brasil”, completa a diretora de ciência do Ipam.”[9] E diante disso, nos últimos dias, a única atitude do governo Lula foi estabelecer multas ínfimas, que sequer mexem no bolso dos grandes latifundiários.
Mas essa conclusão não se restringe ao Brasil. Nos demais países também é evidente o interesse de setores ligados ao agronegócio e à mineração, que aproveitam dos incêndios para expandir suas áreas de negócios, inclusive entrando em terras indígenas e protegidas ambientalmente.
No Paraguai, segundo relato da Iniciativa Amotocodie, um incêndio que foi provocado por um fazendeiro, “Demorou apenas dez dias para que o território Garaigosode fosse quase totalmente consumido. A propriedade indígena perdeu 14,2 mil hectares de campos e floresta. (O) Monumento Natural Cerro Chovoreca, refúgio de fauna e famílias Ayoreo em isolamento, (perdeu) 3.900 há”[10]
Na Bolívia, as estatísticas não deixam dúvida, os departamentos onde os incêndios mais destruíram são Beni e Santa Cruz, que estão na Amazônia boliviana. “Em Beni, foi registrada 54% de toda a área que queimou anualmente na Bolívia entre 2001 e 2020, de acordo com o Sistema de Monitoramento e Alerta Precoce de Risco de Incêndios Florestais. Já em Santa Cruz, 38% dos hectares foram consumidos pelas chamas.”” Prova disso é que, na temporada 2024, pelo menos 3,8 milhões de hectares foram queimados na Bolívia. Destes, 2,3 milhões eram pastagens e 1,5 milhões correspondiam a florestas.”[11]
Todos sabemos que o aumento da emissão de gases de efeito estufa vem provocando o aquecimento global responsável pelo desequilíbrio climático no planeta. E essa conclusão não é de hoje, mas os grandes dirigentes do planeta, os países imperialistas que são os principais representantes da classe rica que domina as decisões não fizeram nada para resolver o problema. Depois de cúpulas e cúpulas, agendas e agendas, compromissos e compromissos, a situação piorou, pois tudo isso é balela para enganar a maioria de nós, população pobre e trabalhadora, que, cada vez em maior número, sofremos as consequências.
Enquanto isso, os governos de plantão na América Latina continuam afrouxando cada vez mais as leis ambientais, cedendo às pressões dos grandes empresários, como no Peru, com a Lei Florestal[12], no Equador com o não cumprimento, por parte do governo do resultado da consulta do parque Yasuní[13] e tantos outros exemplos em todos os países, que seria impossível relatar em um só artigo.
É preciso ir às ruas
É preciso ir às ruas e organizar os de baixo para exigir dos governos que destinem imediatamente verbas para combater os incêndios existentes, mas também é preciso exigir endurecimento das leis ambientais que nos últimos anos tem sido flexibilizadas ou anuladas por todos os governos para privilegiar os grandes e ricos empresários dos diversos países.
Nas últimas semanas temos visto que várias manifestações tem sido realizadas em diversos países do continente, como no Peru, exigindo do governo Dina que anule a nova lei florestal que foi votada em dezembro de 2023 e que abre as portas para o desmatamento. Assim como no Brasil, exigindo de Lula que pare de financiar o agronegócio e o exproprie. Assim como no Equador, o movimento social exige que o governo Noboa respeite a decisão da consulta popular do Yasuni.
É preciso ampliar as mobilizações em todo o continente, realizando dias de luta unificados para fortalecer nossa batalha pela defesa da Amazônia e dos diversos biomas que necessitamos preservar, além de garantir o território das populações indígenas e a qualidade de vida para todos e todas que necessitamos do ar puro para respirar.
É necessário romper o poder dos capitalistas
Mas também é necessário pensar no nosso futuro e das novas gerações. Como diz a letra de uma música brasileira[14], na natureza “não há pecado, nem perdão”. Não podemos acreditar, como coloca a igreja que os desastres ambientais como os incêndios florestais são obra de um ser superior para nos penalizar por nossos pecados, pois a realidade nos mostra que é obra e reponsabilidade de uma classe social que a cada ano fica mais rica explorando a natureza e nossa mão de obra. E temos que nos conscientizar que na natureza também não há perdão, pois ela cobra sua destruição e a conta fica para os mais pobres. É a nossa classe, a dos pobres e trabalhadores que enfrenta o ar poluído todos os dias, que morre de doenças respiratórias, que fica sem teto e sem terra para plantar, que paga mais caro pelos alimentos e um longo etecétera de todas as consequências que enfrentamos com a destruição ambiental causada pelo sistema capitalista.
Sem falar que a juventude, as crianças e as novas gerações que virão já estão vivendo e vão viver em uma barbárie ambiental como indica todas as previsões científicas.
Por isso se queremos salvar a nossa casa, o nosso planeta, é necessário pôr fim ao sistema capitalista e construir uma sociedade que conviva de forma respeitosa com a natureza. E essa sociedade só pode ser uma sociedade que não tenha a exploração e o lucro como seu centro de existência, mas sim suprir as necessidades do ser humano de forma igualitária e solidária e em conformidade com os limites da natureza. É por isso que defendemos uma sociedade socialista. Somente essa sociedade, onde os trabalhadores e trabalhadoras e o povo pobre governe, podemos impor a vontade da maioria.
[1] Portal CNM – Estudo atualizado pela CNM mostra que mais de 11 milhões de pessoas foram diretamente afetadas por incêndios – Confederação Nacional de Municípios
[2] Apagón nacional inesperado: Gobierno no ha pronunciado cuál fue la causa | Televistazo 7 PM #ENVIVO🔴 (youtube.com)
[3] INDECI destaca importancia de trabajo en conjunto de los tres niveles de gobierno ante incendios forestales – Noticias – Instituto Nacional de Defensa Civil – Plataforma del Estado Peruano (www.gob.pe)
[4] UNGRD propone apagar incendios con fuego, ¿de qué se trata la nueva estrategia? (gestiondelriesgo.gov.co)
[5] Datos estadísticos sobre incendios forestales durante las primeras semanas del mes de setiembre – Instituto Forestal Nacional (infona.gov.py)
[6] https://www.infobae.com/sociedad/2024/09/21/incendios-y-drama-en-cordoba-las-llamas-alcanzaron-a-varias-casas-en-capilla-del-monte-hay-evacuados-y-un-detenido/
[7] Atlas de Sequías de América Latina y el Caribe; 2018 (lapismet.com.br)
[8] Em todo o Brasil, a barbárie climática bate à porta | Opinião SocialistaOpinião Socialista (opiniaosocialista.com.br)
[9] O que se sabe sobre a onda de incêndios no Brasil (uol.com.br)
[10] Análisis de los incendios en Chovoreca, septiembre 2024 – Iniciativa Amotocodie (iniciativa-amotocodie.org)
[11] ¿Por qué cada año los incendios forestales arrasan en Brasil y Bolivia? – Medio Ambiente (france24.com)
[12] Gobierno peruano busca implementar cambios en Ley Forestal ignorando demandas formales para derogar la norma (mongabay.com)
[13] Nuevo decreto de presidente Noboa no resuelve incertidumbre sobre el cumplimiento de la consulta del Yasuní en Ecuador (mongabay.com)
[14] Caetano Veloso – Alguém Cantando (youtube.com)