Colunas

Endurecer as leis é a saída para reduzir os feminicídios?

Erika Andreassy

13 de setembro de 2024
star4.9 (10 avaliações)

Nos últimos anos, a violência às mulheres passou a ocupar uma posição destacada no debate público nacional. Em resposta à pressão social gerada pelo aumento dos feminicídio, a Câmara aprovou no último dia 11 de setembro, um projeto de lei que aumenta a pena para crimes cometidos contra mulheres motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero.

O texto prevê, entre outras coisas, que o feminicídio deixe de ser uma qualificadora para os crimes de homicídio e passe a figurar em um artigo específico, com penas de 20 a 40 anos de prisão (contra os atuais 12 a 30 anos), agravados em 1/3, caso se trate de vítima grávida ou no primeiro trimestre pós-parto; menores de 14 ou maiores de 60 anos de idade; ou ainda se o crime tiver sido cometido na presença de filhos ou pais da vítima.

Sem deixar de reafirmar a importância de uma legislação que reconheça o feminicídio e puna rigorosamente o criminoso, é essencial questionarmos se a atual resposta oferecida pelo parlamento é, de fato, a melhor medida para enfrentar o aumento desses crimes.

Considerando que o feminicídio é, em geral, a culminação de uma série de abusos físicos, psicológicos e morais (e em alguns casos sexuais e patrimoniais), cuja manifestação envolve uma complexidade de fatores, entre as quais a extrema tolerância social às violências de gênero e raça e a dependência econômica de parte das vítimas de seus agressores, seu enfrentamento requer a adoção de uma abordagem multidimensional.

Esta abordagem deve incluir políticas voltadas tanto ao fortalecimento das redes de apoio às vítimas e o combate à cultura machista enraizada na sociedade, como garantias sociais e econômicas que permitam às mulheres pobres romperem o ciclo da violência. O aumento das penas pode até ser uma medida simbólica importante, mas o enfrentamento à violência de gênero precisa ir além das respostas punitivas.

O feminicídio no Brasil: dados e contexto

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil registrou em 2023, 1.463 casos de feminicídios, o maior número desde que o crime foi tipificado, há nove anos atrás. Mas, embora expressivos, esses dados são apenas uma parcela da realidade.

Segundo o Monitor de Feminicídios no Brasil; que utiliza como fonte, notícias de crimes com indícios de feminicídios, conforme tipologias e definições das Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres; em 2023 foram detectados 2.694 casos com indícios de feminicídios, dos quais, 1.706 consumados e 988 tentados, ou seja, 84,1% a mais que os dados oficiais.

Os feminicídios de certos grupos de mulheres são especialmente vulneráveis a invisibilização, como por exemplo os de mulheres indígenas, cujas mortes violentas ficam, em geral, encobertas pelos assassinatos no contexto de conflitos territoriais; as de mulheres trans, afetadas pelos estigmas que recaem sobre elas; ou ainda as de mulheres com alguma participação no consumo ou comércio de drogas ilícitas, que acabam enquadradas como mortes ligadas a “acerto de contas” e “vingança”.

Muito além de um problema de criminalidade, o feminicídio é um reflexo direto de uma sociedade que tolera, em vários níveis, as violências de gênero e raça. Não por acaso a maioria destes assassinatos são cometidos contra mulheres negras (61,1%), em idade reprodutiva (79,1% entre 18 e 44 anos), em ambientes domésticos (69,3%); tendo a arma branca como instrumento principal (49,9%) e como agressor parceiros ou ex-parceiros (73%), expressando uma dinâmica de poder e controle sobre as mulheres.

Este fenômeno é intensificado pela vulnerabilidade econômica de uma parte das vítimas, especialmente as mulheres trabalhadoras, negra e periférica, pertencentes às camadas mais empobrecidas da sociedade, que, em muitos casos, dependem financeiramente de seus agressores. A falta de suporte institucional, como acesso a serviços de proteção e assistência jurídica, e de oportunidades de independência financeira: empregos formais de boa qualidade, com remuneração digna e direitos trabalhistas e condições para poder trabalhar e deixar os filhos em segurança, como escolas e creches em tempo integral, etc; torna a situação ainda mais difícil para estas mulheres.

A falta de estrutura e investimento na Rede de Enfrentamento à Violência

Já assinalamos que os feminicídios são um fenômeno diretamente relacionado à violência doméstica e à desigualdade de gênero. Eles raramente acontecem isoladamente, mas são, na ampla maioria das vezes, a culminação de um ciclo que começa muito antes, com atitudes controladoras, ameaças e abusos dos mais diversos tipos.

Um dos maiores desafios no combate à violência contra as mulheres é a insuficiência de recursos destinados às redes de apoio e proteção. As delegacias especializadas no atendimento à mulher, por exemplo, são insuficientes, acessíveis a uma parcela muito restrita de mulheres (apenas 10% dos municípios brasileiros contam com delegacias especializadas) e funcionam precariamente (apenas 10% delas funcionam initerruptamente), limitando o suporte necessário o às vítimas em momentos críticos.

Além disso, a quantidade de centros de referência, varas especializadas e casas abrigo é nitidamente escasso. Em muitas regiões, as mulheres que denunciam seus agressores não têm para onde ir, sendo forçadas a retornar ao convívio com os autores da violência.

De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a maioria dos países da América Latina, incluindo o Brasil, possui um déficit estrutural significativo no que diz respeito à oferta de serviços especializados de atendimento às mulheres vítimas de violência. A precariedade dessa rede de proteção, aliada à falta de fiscalização das medidas protetivas, resulta em uma situação em que muitas mulheres continuam expostas ao risco de feminicídio, mesmo após denunciarem abusos.

Leis mais duras não reduzem a violência

A experiencia demonstra que a simples aprovação de leis não é suficiente para reduzir a criminalidade. Basta ver a própria Lei Maria da Penha, uma das mais avançadas legislações de proteção à mulher do mundo, mas que não conseguiu frear o aumento da violência doméstica e dos feminicídios. O problema evidentemente não está na lei; que, diga-se de passagem, é uma conquista fundamental para se começar a enfrentar o problema; mas na sua implementação.

Após 18 anos de existência da Lei Maria da Penha, muitas mulheres continuam sem acesso à justiça, com denúncias não investigadas, medidas protetivas não fiscalizadas, e um sistema de apoio institucional insuficiente para atendê-las. Não adianta nada, portanto, aumentar a pena para os criminosos se eles sequer chegam a ser denunciados e processados. Essa constatação torna nítido que o enfrentamento aos feminicídios não pode se limitar ao endurecimento das leis.

Segundo pesquisa do Instituto Patrícia Galvao em parceria com o IPEC, nove em cada dez pessoas, acredita que se houvesse apoio do Estado, as mulheres em situação de violência doméstica se sentiriam mais seguras para denunciar e sair da relação violenta; para 85% dos entrevistados, os homens que praticam violência doméstica sabem que é crime, mas acreditam que não serão punidos; a maioria aponta ainda o apoio de familiares e amigos, a melhora da rede de assistência às vítimas e a independência financeira, como medida essenciais para possibilitar que as mulheres em situação de violência se protejam dos agressores e rompam o ciclo de violência.

Nesse sentido, em que pese a aparente intenção de proteger as mulheres, a aprovação do PL 4266/23, que aumenta as penas para os crimes de violência doméstica e os feminicídio, não passa de uma medida cosmética e tosca ante à crescente pressão social por respostas do Estado diante da violência de gênero. Expressa, na verdade, a falta de vontade política e comprometimento para começar a enfrentar seriamente este problema. Combater o feminicídio exige muito mais do que punições severas; é necessário um esforço contínuo e coordenado para mudar mentalidades e realidades. É essencial investir em políticas públicas que ofereçam suporte psicossocial, jurídico e econômico às mulheres em situação de vulnerabilidade e promovam a educação de gênero desde a infância.

As causas estruturais da violência de gênero

O enfoque exclusivamente punitivista, além de pouco efetivo; por não enfrentar as diversas dimensões da violência doméstica e dos feminicídios; ignora completamente as causas estruturais da opressão de gênero.

A opressão sexual e a violência derivada da ideia de que a masculinidade está ligada ao controle e à dominação das mulheres não são produtos de uma herança do passado que se mantém por uma questão cultural, (sequer de um suposto sistema patriarcal que subsiste e/ou coexiste ao modo de produção capitalista, como teorizam algumas intelectuais do feminismo socialista, que recorrem ao ecletismo para tentar responder aos problemas que envolve a luta pela liberação da mulher). O advento do capitalismo, efetivamente, modifica as bases materiais das opressões nesse sistema, transformando-as em arma da exploração e dominação de classes.

Do ponto de vista econômico, as opressões permitem a ampliação da extração de mais valia através da superexploração de setores inteiros (parcelas oprimidas da classe trabalhadora e países submetidos ao imperialismo) e o rebaixamento das condições de vida dos trabalhadores pela manutenção de um enorme exército de reserva, composto por mulheres, negros, imigrantes, juventude precarizada, etc que ajuda a regular o mercado de trabalho e pressiona os salários para baixo.

Do ponto de vista ideológico, elas ajudam a desviar da estrutura de classes as verdadeiras causas das desigualdade e a dividir e segmentar a classe trabalhadora, enfraquecendo assim a luta revolucionária contra a exploração e o sistema.

Políticas de gênero e perspectivas de superação

Para enfrentar efetivamente o feminicídio é necessário que o Estado implemente uma política de gênero ampla e integrada. Essa política deve contemplar, por exemplo, campanhas permanentes de combate ao machismo e à violência contra as mulheres, além de investir em educação nas escolas que promovam a igualdade de gênero e a desconstrução de estereótipos.

Outro aspecto crucial é autonomia econômica das mulheres. Políticas que promovam a inserção e a manutenção da mulher no mercado de trabalho e garantam sua independência financeira são fundamentais para que possam romper com o ciclo de violência. Sem alternativas de renda e moradia, muitas mulheres acabam reféns de relacionamentos violentos.

O aumento das penas pode ser uma medida simbólica importante, mas o combate à violência contra as mulheres precisa ir além das respostas punitivas. Ele requer um investimento substancial na rede de apoio às vítimas, na educação para a igualdade de gênero e na criação de oportunidades para que as mulheres possam viver com dignidade e autonomia.

Evidentemente, essas medidas não serão implementadas sem uma forte pressão social e de luta das mulheres, apoiadas pelas organizações da classe trabalhadora e vinculado à luta de classes, que imponha esse programa aos governos de plantão e fortaleça a luta pela transformação social necessária para derrubar as bases materiais das opressões, ou seja, uma luta para derrotar a burguesia e destruir o sistema capitalista de exploração.

Não se trata de uma tarefa fácil, ela pressupõe, por uma lado, uma combate permanente e quotidiano no interior da classe trabalhadora contra todas as expressões de machismo e discriminação no sentido de fortalecer os laços de solidariedade seus membros e a luta pela obtenção de conquistas formais que avancem no terreno da igualdade de gênero, tão caras às mulheres trabalhadoras.

E por outro, a independência política do movimento de mulheres trabalhadoras em relação à burguesia; seus governos de plantão (sejam de direita e extrema-direita ou da “esquerda progressista” e suas frentes amplas) e dos feminismos burguês e reformista (em todas as suas variantes: liberal, radical, ecléticas, etc) que buscam submeter a todo momento a luta das mulheres contra a opressão, aos interesses de classe da burguesia ou apresentem saídas que não ultrapassam os limites do sistema, impedindo que este avance numa perspectiva socialista.

Mas que não seja fácil não significa que seja impossível, pelo contrário, é a alternativa mais eficaz e coerente para de fato pôr fim à violência machista e acabar com os feminicídios.

Mais textos de Erika Andreassy