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O embate entre Musk e Moraes: a liberdade de expressão entre o poder do capital e o poder do Estado

Elon Musk ataca a soberania do Brasil e, com a desculpa da liberdade de expressão, promove o projeto da ultradireita mundial. Já Alexandre de Moraes não está interessado em defender a democracia e os abusos que comete podem se virar contra os trabalhadores

Pablo Biondi, de São Paulo (SP)

31 de agosto de 2024
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Elon Musk e Alexandre de Moraes
Foto: Reprodução

A imprensa nacional novamente encontra no Supremo Tribunal Federal um improvável protagonista dos acontecimentos políticos de maior destaque. O tribunal constitucional brasileiro, para além das suas rusgas com o parlamento, encontra-se engajado, na pessoa do ministro Alexandre de Moraes, numa queda de braço com o bilionário Elon Musk, o qual adquiriu o antigo Twitter e o renomeou como X.

Alexandre de Moraes é o relator dos inquéritos sobre fake news, sobre milícias digitais e sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. O ministro do STF tem tomado medidas para, em nome do “Estado democrático de direito”, bloquear diversos perfis em redes sociais, o que tem gerado acusações de censura e cerceamento da liberdade de expressão por parte dos porta-vozes da extrema direita – os mesmos que, curiosamente, são entusiastas da ditadura militar instaurada pela quartelada de 1964, e que durou mais de 20 anos. O desdobramento mais recente dessa movimentação foi a suspensão da rede X após a sua recusa de apresentar um representante legal em território brasileiro.

Moraes tem adotado uma atitude de defesa institucional da democracia burguesa pela mão forte do direito penal. Ninguém pode duvidar da disposição do ministro de defender o atual regime com todos os meios processuais (alguns deles controversos) que estão à sua disposição – um regime que se pavoneia como democrático, mas que mantém a exploração e a opressão generalizadas. Dentro dessa lógica de proteção do regime, Moraes pretende conter a incidência das milícias digitais sobre o processo eleitoral. Sendo também presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro afirma repetidamente que as redes sociais não podem ser “terra sem lei”, clamando por uma regulamentação legislativa, para além do controle efetuado pelas resoluções do TSE.

Como presidente do TSE e ministro do STF, Moraes defende a responsabilização jurídica das chamadas big techs (empresas gigantes do ramo da tecnologia de informação), na medida em que as considera coniventes com a circulação de notícias falsas e com a veiculação de discurso de ódio. Já havia sido assim quando o magistrado determinou o bloqueio do Telegram em 2022 e 2023. Foi essa orientação que o conduziu ao embate atual com Elon Musk, o qual tem resistido às ordens de bloqueio de perfis na rede X, chegando mesmo a fazer publicações debochadas para expressar sua intenção de não ceder.

A reação de Musk em face das multas aplicadas por Moraes em razão do descumprimento de suas determinações foi fechar o escritório da rede X no Brasil. A jurisdição brasileira, com isso, teria dificuldades para se impor sobre a empresa. No entanto, a legislação nacional exige que empresas estrangeiras que atuam no país mantenham um representante legal no território. Moraes concedeu a Musk 24 horas para que atendesse a essa exigência, o que não foi feito. Isso levou à recente decisão de suspender as atividades da empresa no país: a Anatel foi notificada para impedir o acesso dos computadores situados no Brasil à plataforma da X e já encaminhou a ordem para milhares de operadoras.

Como se vê, nenhum dos lados está disposto a ceder. Moraes dobrou a aposta e aprofundou a persecução judicial, chegando a determinar o bloqueio das contas de uma outra empresa de Musk (Starlink) para garantir o pagamento das multas aplicadas contra a X. Enquanto isso, o empresário naturalizado estadunidense declara-se vítima de uma opressão ditatorial, comunicando, por meio de seus representantes, que não irá cumprir decisões que considera ilegais.

O que pensar dessa guerra fratricida entre dois autoproclamados defensores da democracia e da liberdade? Não há senão a velha tensão entre capital e Estado capitalista. Qual partido tomar? Nenhum deles! A classe trabalhadora não pode ser contemplada nem por seus exploradores e nem pelos avalistas da sua exploração. É preciso desmascarar os dois paladinos da justiça, senão vejamos.

Lênin dizia que “a liberdade de reunião, incluída nas Constituições de todas as repúblicas burguesas, é uma fraude porque, quando queremos nos reunir, (…) os melhores edifícios são propriedade privada. Primeiro apoderemo-nos dos melhores edifícios e, então, depois falaremos sobre liberdade” (“Como iludir o povo com os slogans de liberdade e igualdade”). Essa passagem, que tem o mérito de desmistificar o tema da liberdade de reunião no capitalismo, também pode iluminar o tema da liberdade de expressão. Enquanto a comunicação social estiver restrita pela propriedade capitalista das plataformas digitais, qualquer discurso de celebração da liberdade de expressão será inevitavelmente falacioso. O poder econômico do capital não é compatível com o pleno desenvolvimento da capacidade de comunicação digital. Tanto é assim que as tendências contrárias a esse desenvolvimento, é o caso da prática de fake news, são impulsionadas a partir do poder econômico. Num ambiente privado e mercantilizado, manda quem tem dinheiro suficiente para “viralizar” conteúdos em escala suficiente para impactar a opinião pública.

Cabe a ressalva de que as liberdades democráticas no capitalismo, mesmo sendo formais, são de extrema importância para a classe trabalhadora. Garantias mínimas ligadas às possibilidades de veiculação de ideias e de organização da classe são indispensáveis até mesmo para a luta econômica ordinária, e por isso não podem ser negligenciadas. Por outro lado, também não é correto superestimá-las, imaginando-se que a sociedade burguesa simplesmente deixaria uma avenida aberta para um intercâmbio comunicativo irrestrito. A própria ordem de mercado, a despeito das disposições legais e constitucionais oficializadas pelo Estado, contém inúmeras restrições de natureza econômica ao que seria um processo verdadeiramente participativo de formação da chamada opinião pública.

O caso do X nos parece exemplar: toda uma mídia social encontra-se sujeita aos caprichos de um bilionário disposto a estabelecer um espaço privado sujeito às suas próprias regras de moderação de conteúdo, o que abre possibilidade para uma espécie de paraíso da desinformação e do assédio virtual. E é claro que Musk, ao desembolsar 43 bilhões de dólares para integrar a rede social ao seu patrimônio privado, quer reinar soberanamente sobre esse território, não admitindo nenhum tipo de ingerência estatal. Nesse território, nenhum discurso deveria ser limitado por um poder externo. A liberdade absoluta para proferir qualquer juízo político (inclusive discurso de ódio contra grupos oprimidos) anseia por espelhar a liberdade do capital para realizar seus fins econômicos do mercado, até mesmo porque o livre exercício da opinião (sobretudo quando a opinião gera engajamento nas redes) nas plataformas digitais nada mais é do que um negócio. A própria extrema direita é, num primeiro momento, apenas um veio lucrativo imediato para Musk, pois o capital não tem nenhuma ideologia definitiva, nenhuma crença absoluta. Qualquer verborragia política, à esquerda ou à direita, pode ser útil se implicar lucratividade. De todo modo, é preciso reconhecer que, ao menos por enquanto, o dono da X e de tantas outras empresas tem demonstrado um alinhamento consistente com a extrema direita, atuando como um catalisador de movimentos com esse perfil em diversas partes do mundo.

Assim sendo, as motivações declaradas de Musk em seu enfrentamento são risíveis. O que está em causa para o empresário não é a liberdade de expressão, e sim a liberdade de comércio e a livre fruição da propriedade privada por parte do capital. Não é por acaso que o bilionário silencia sobre as práticas de censura e repressão em países como China e Arábia Saudita: as parcerias comerciais, quem diria, importam mais do que as demandas democráticas para o campeão da liberdade de expressão. Aliás, a própria compra do Twitter contou com apoio de investimentos sauditas na operação.

Vale acrescentar que essa livre condução empresarial das redes sociais, tal como exigida por Musk, é qualificada pelo caráter imperialista que o capital estadunidense assume em face de países periféricos como o Brasil. Tem-se uma situação peculiar na qual uma multinacional sediada nos EUA, respaldada por recados da embaixada da sua nação de origem, pretende se colocar acima da lei e da jurisdição de uma semicolônia, desdenhando abertamente da sua pretensão de soberania nacional. Mas também não se pode ignorar que o governo brasileiro, em consonância com a subserviência internacional da própria burguesia brasileira, contribui para a sua própria subalternidade. Percebe-se o quão constrangedora é a situação quando a Starlink, empresa de Musk afetada na contenda em torno da X, é revelada como fornecedora de serviços vitais para o Exército e a Marinha do Brasil. Desse modo, a escalada da litigiosidade, caso conduza à suspensão ou saída da Starlink, pode prejudicar o funcionamento de atividades técnicas vitais das forças armadas. Isso torna ridícula a tese de que Moraes e Lula seriam diques de contenção do domínio imperialista sobre o Brasil, já que tal domínio está instaurado por toda parte, inclusive no gerenciamento da tecnologia militar. Fica evidente a necessidade de ruptura com o imperialismo e expropriação das multinacionais aqui instaladas para garantia de soberania de fato. Este passo nem Moraes, nem Lula, estão dispostos a dar, afinal através do seu papel no Estado são responsáveis pela manutenção das condições de exploração das multinacionais imperialistas no país.

Mas a hipocrisia de um burguês fanfarrão não deve nos causar simpatia pelo outro lado da trincheira. Alexandre de Moraes foi a figura institucional mais contundente na resposta do regime à intentona golpista do bolsonarismo, mas não nos enganemos: o ministro é um “chefe de polícia togado” que alcançou o posto máximo da jurisdição brasileira em virtude dos seus laços estreitos com o sistema político. Foi secretário da Segurança Pública do governo Alckmin em São Paulo (2015) e ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo Temer (2016). Toda a sua habilidade de persecução penal foi desenvolvida no gerenciamento do aparato repressivo do Estado junto a grandes nomes da política nacional.

Mais do que dar sustentação à democracia burguesa, Moraes pode ser visto como uma força de restauração da lógica do sistema político anterior, em que as candidaturas burguesas que prevaleciam eram mais confiáveis institucionalmente, mais obedientes às regras do jogo. O bolsonarismo, com efeito, subverteu essa lógica, tendo triunfado por meio de artifícios semiclandestinos (como o uso massivo de redes sociais) que não haviam sido assimilados pela estrutura eleitoral oficial, ainda voltada para os grandes financiamentos de campanha e para a política profissional tradicional. Esta política profissional parece ter entrado em crise juntamente com a democracia burguesa: há uma demanda crescente por outsiders (ou por agentes que possam se passar por tal) e por métodos heterodoxos na política, como se nota em distintas escalas (da surpreendente ascensão de Pablo Marçal em São Paulo ao renascimento político de Donald Trump nos EUA). Os carreiristas da política partidária lidam cada vez mais com a ameaça emergente de oportunistas e vigaristas vitaminados pelas mídias sociais.

Nesse sentido, Alexandre de Moraes é parte de uma reação conservadora que vê na extrema direita um indesejável elemento de perturbação da ordem política. Moraes entende que a efetivação de um programa burguês de privatizações e de reformas neoliberais, tal como se deu nos governos que integrou ao longo de sua carreira política, só pode ser levada a cabo com eficiência dentro das relações partidárias normais que se estabelecem nos parlamentos. Personagens puramente midiáticos, movidos a engajamento nas redes e desprovidos de habilidades de gerenciamento do Estado e de composição de interesses políticos, são vistos como aventureiros que apenas atrapalham o bom andamento do mercado, sobretudo quando sonham acordados com golpes de Estado. O bolsonarismo, vale observar, conformou-se apenas parcialmente ao jogo institucional, inaugurando um padrão de governo baseado na crise permanente com os demais poderes da República e no apelo bonapartista à sua base social.

Vale citar uma postagem feita na rede X pelo cientista político Christian Lynch já em abril de 2024: “Sempre fiz questão de lembrar que Alexandre de Moraes só é esse ‘terror’ de homem da lei e da ordem, odiado pelos reacionários, porque é o maior conservador da Nova República. É um jurista do Partido Republicano Paulista. Um chefe de polícia de São Paulo da República Velha. Tem o espírito tão velho quanto o Estadão. Defende o establishment da constituição de 88 com a energia com que Campos Sales defendia a política dos governadores. Elogia Temer como elogiaria Rodrigues Alves. Homem da ordem, tem nojo do populismo reacionário”. Portanto, se Moraes entra em rota de colisão com Musk no caso da rede X, isso ocorre porque o ministro não lida bem com a ideia de uma rede social submetida a um controle puramente privado, o que poderia torná-la numa fonte de abastecimento constante do chamado “populismo reacionário” e de quaisquer tendências consideradas disruptivas.

Nessa ordem de considerações, a classe trabalhadora não deve, de nenhum modo, acomodar-se com uma posição na qual sua defesa contra o autoritarismo da extrema direita é confiada à cúpula do Judiciário e, em particular, ao seu quadro mais habilidoso no que concerne o exercício das funções repressivas do Estado. Essa “terceirização” do papel de combate ao bolsonarismo desarma o proletariado, tornando-o vulnerável à força institucional que o tutela. Os trabalhadores têm necessidade de se apoiar na sua própria força social, na sua capacidade de organização, o que vale tanto para a autodefesa como para a educação política mais geral.

O que verificamos no confronto entre Elon Musk e Alexandre de Moraes é a histórica tensão entre o apetite desmedido do capital, que quer tudo para si independentemente das consequências sociais e institucionais das suas ações (“livre iniciativa de mercado”), e a cautela asseguradora do Estado, que impõe limites mais ou menos moderados ao capital no interesse do próprio capitalismo e do regime “democrático” que o mantém. De um lado, temos o burguês que sonha com a ausência de restrições para as redes sociais enquanto negócio, pretendendo afrouxar ao máximo as amarras institucionais; de outro, temos o magistrado policialesco que quer reforçar essas amarras, que vê no jogo desregulamentado do mercado da comunicação um fator de instabilidade política e de desordem (deixe-se a política para os “profissionais”, não para os amadores).

No que diz respeito à classe trabalhadora, nenhum desses lados merece apoio. A livre comunicação na sociedade não é plenamente possível no capitalismo. O poder do capital reduz essa comunicação a um negócio a ser regido pelos grandes proprietários, algo que se mostra muito mais grave em se tratando do capital imperialista, que repousa num monopólio mundial que ultrapassa e despreza a soberania nacional; o poder do Estado, por sua vez, a regulamenta para prover estabilidade geral para a ordem social capitalista. Assim, Estado e capital nem sempre estão de acordo em tudo, mas se nutrem da mesma forma de sociedade, das mesmas relações de produção, e por isso mesmo se encontram unificados em última instância, plenamente alinhados naquilo que é mais fundamental. Eis porque nem a interferência judicial e nem a propriedade privada da rede podem garantir a liberdade de expressão plena. Somente uma revolução proletária, ao superar a democracia burguesa e o modo capitalista de produção, pode abrir caminho para formas de intercâmbio comunicativo que sejam regulamentadas exclusivamente pela deliberação dos trabalhadores a partir dos seus próprios órgãos de poder.

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