Indígenas se retiram da farsa da “mesa de conciliação” sobre o Marco Temporal no STF
Decisão foi anunciada nesta quarta-feira (29) na segunda audiência sobre o tema
A Apib (Articulação dos Povos Indígenas) anunciou na tarde desta quarta-feira (28), a sua retirada da Mesa de Conciliação no STF (Supremo Tribunal Federal), que discute o Marco Temporal e outros ataques da Lei 14701/23 aos povos originários.
Criada por determinação do ministro Gilmar Mendes, relator dos processos que discutem a constitucionalidade da lei, a mesa de conciliação teve sua segunda reunião realizada ontem. A primeira ocorreu no dia 5/8.
As lideranças indígenas leram um manifesto (leia ao final deste texto) em que denunciam condições inaceitáveis e até humilhantes impostas desde o início pela Mesa, coordenada pelo juiz instrutor Diego Viegas, chefe de gabinete de Gilmar Mendes.
“A conciliação está sendo conduzida com premissas equivocadas, desinformadas e pouco aberta a um verdadeiro diálogo intercultural”, destaca um trecho da carta lida por Maria Baré, liderança indígena do Amazonas e uma das representantes da Apib à mesa.
Os povos indígenas apontam que a Lei 14.701/2023 é inconstitucional e que não há negociação possível sobre ela, que precisa ser imediatamente suspensa. Pedem ainda o encerramento da câmara de conciliação.
“Pela letra da Constituição da República de 1988, as terras indígenas foram gravadas como inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis. Qualquer negociação sobre direitos fundamentais é inadmissível”, afirmam os indígenas na carta.
O juiz Diego Viegas informou que os trabalhos prosseguiriam mesmo com a retirada das organizações indígenas representadas e que “outros indígenas” seriam colocados para substituir, o que foi recebido com indignação pelas lideranças.
Farsa de conciliação
Além da própria mesa de conciliação ser uma flagrante contradição, já que o Marco Temporal já foi julgado pelo STF como inconstitucional e foi desrespeitado pelo Congresso, o funcionamento da instância revela a verdadeira farsa da iniciativa.
Segundo denunciou a Apib, ainda na primeira audiência, foi informado que a lei não seria suspensa, apesar do agravamento da violência contra os povos indígenas desde que foi aprovada no final de 2023. Os juízes do STF informaram ainda que os acordos feitos deveriam ser realizados por aclamação, mas caso não houvesse consenso entre as partes, as decisões seriam tomadas pelo voto da maioria, que foi repudiado pelos indígenas.
A composição da mesa explica a indignação dos indígenas. Entre os órgãos, instituições e representações que participam da conciliação estão a AGU (Advocacia-Geral da União), os Ministérios da Justiça e dos Povos Indígenas, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), o Fórum de Governadores, o Colégio Nacional de Procuradores de Estado, a Confederação Nacional dos Municípios, a Frente Nacional dos Prefeitos e os autores das cinco ações discutidas, com uma vaga cada.
A Câmara dos Deputados e o Senado Federal tiveram direito a três vagas cada, e a Apib e suas organizações de base, apenas seis.
Para se ter uma ideia, os indicados pelo presidente da Câmara Arthur Lira para a mesa foram os deputados bolsonaristas Pedro Lupion e Bia Kicis, que tem posição notória a favor do agronegócio e da tese etnocida do Marco Temporal e da lei 14.701.
As lideranças presentes na primeira audiência também denunciaram o racismo vivenciado dentro da comissão.
AGU respalda postura de juiz
Representante do governo Lula, o advogado-geral da União, Jorge Messias, respaldou a posição de Viegas e fez um apelo para que a Apib permanecesse na reunião.
“Tenho plena confiança na instalação e na condução desta mesa. Acredito que com o quadro que temos no país, de invasões, em que não conseguimos, como Estado, o acesso pleno dos seus direitos, nós temos que pactuar”, declarou. “O presidente vetou, o Congresso derrubou. O ministro Gilmar Mendes poderia ter tomado uma decisão junto a seus pares, e nós não estaríamos aqui, tendo a oportunidade de discutir esse tema”, afirmou Messias.
Não há conciliação com opressores! Fortalecer a mobilização!
A liderança indígena e integrante da Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas Raquel Tremembé destacou que essa comissão de conciliação é um absurdo desde o começo.
“É absurdo usar o termo conciliação, pois se trata, na verdade, de mais um atropelo para violar nossos direitos. Como sempre, uma violência perpetuada de diversas formas. Não há conciliação com opressores”, afirmou.
“Não deveria ter havido participação desde o início. Mas, agora, o fato é que será mais um espaço ocupado para esses opressores atuarem”, avaliou a dirigente.
Para Raquel, o caminho é fortalecer a mobilização dos povos indígenas em todo o país, com apoio da classe trabalhadora e movimentos sociais, para exigir a derrubada da lei etnocida 14.701, bem como para exigir do governo Lula a demarcação e desintrusão dos territórios indígenas. “Temos de lutar pelo que é nosso de direito, nossos territórios, nossas vidas”, concluiu.
Basta de mortes e violências contra os povos originários! Abaixo o Marco Temporal e a Lei 14.701!
Carta-manifesto da Apib
Excelentíssimos Senhores Ministros do Egrégio Supremo Tribunal Federal Excelentíssimos Senhores Juízes Auxiliares
Excelentíssimas Autoridades Presentes
Povos indígenas de todo o Brasil
Com os nossos respeitosos cumprimentos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, entidade de representação nacional, vem se manifestar sobre a conciliação que está em curso neste egrégio Supremo Tribunal Federal.
Antes de mais nada, é importante dizer que o Supremo Tribunal Federal tem sido um espaço importante de garantia dos direitos indígenas. Sua atuação durante a pandemia foi fundamental, diante de graves violações a direitos a que os povos indígenas estavam submetidos.
Por reconhecer neste tribunal um espaço de concretização da Constituição, a APIB propôs, em 28 de dezembro de 2023, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7582. A entidade esperava a suspensão da Lei nº 14.701, principalmente dos artigos da lei contrários ao que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 2023.
A Comunidade Internacional assiste com preocupação os ataques aos direitos dos povos indígenas brasileiros! Cinco órgãos de tratados da ONU já recomendaram que o Estado brasileiro rejeitasse a tese do Marco Temporal e continuasse o processo de demarcação dos nossos territórios tradicionais.
No entanto, a lei permaneceu em vigor. E, em abril de 2024, a APIB foi surpreendida com uma proposta de conciliação entre as partes das ações que questionam a inconstitucionalidade da Lei e outros setores da sociedade que sequer são partes do processo.
Não havia nitidez sobre o que se estaria a conciliar, quais seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado no sistema de proteção dos direitos indígenas que foram garantidos aos povos indígenas pelo Constituinte originário de 1988. Pela letra da Constituição da República de 1988, as terras indígenas foram gravadas como inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis. Assim, qualquer negociação sobre direitos fundamentais já seria, a princípio, inadmissível
Ainda assim, a APIB, sentou-se à mesa, com disposição política e vontade de reabrir os flancos de negociação, muito embora a não declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 seja uma sinalização nociva, a indicar incoerência e sujeição a pressões indevidas.
Durante a primeira audiência de conciliação, a entidade encontrou um ambiente aflitivo, sendo informada que a lei não seria suspensa, não obstante toda violência que ela tem gerado nos territórios.
A APIB foi informada também que na ausência de consenso as decisões seriam tomadas por maioria. Dessa forma, a instância da conciliação poderá ser transformada em uma assembleia, sem ter a legitimidade necessária para decidir sobre direitos fundamentais. Entendemos que a tutela dos direitos fundamentais das minorias é função do Supremo, da qual ele não pode abdicar.
Além disso, a APIB também foi confrontada com visões ultrapassadas e inadequadas sobre a garantia dos direitos indígenas. Na conciliação, foi aventada a possibilidade de ter a vontade dos indígenas colhida pela Funai, órgão de estado que não tem essa competência.
A Constituição de 1988, em seu artigo 232, acabou com a política de tutela!
Outros apontamentos realizados durante a primeira audiência de conciliação foram violentos e opressivos. A eventual aprovação de uma PEC que consolidaria o marco temporal no texto constitucional soou como uma ameaça, viciando o ambiente de liberdade que deve ser criado em uma mesa de conciliação. O juízo condutor da audiência de conciliação chegou a perguntar se os indígenas teriam representação parlamentar suficiente para impedir a votação de um projeto de emenda constitucional violadora de seus direitos fundamentais. Os povos indígenas, após séculos de extermínio, são minorias. E por isso contam com o tribunal!
Os povos indígenas estão sob guarda de cláusulas pétreas da Constituição, cuja defesa e guarda é função do Supremo Tribunal Federal!
Diante de condições inaceitáveis – e até humilhantes – impostas aos povos indígenas na audiência de conciliação, o juiz conciliador disse que uma saída dos povos indígenas os tornaria responsáveis pela “espiral de conflitos”. Isso é de uma violência atroz.
Os indígenas resistem secularmente e lutam pelo direito de existir em uma realidade em que são vítimas da violência. Desde a colonização, até os dias atuais, os mortos, feridos e submetidos aos conflitos violentos são os indígenas. Os que ainda precisam lutar pela garantia territorial e por direitos, desde há muito válidos, mas ineficazes, são os indígenas.
É inadmissível que os povos do Brasil que tem a maior contribuição para a conservação das florestas, dos biomas, da biodiversidade e que são aqueles que mais tem capacidade de fazer frente à emergência climática e ao desenvolvimento sustentável do país sejam submetidos a um processo de conciliação fora da lei, com esse nível de pressão, chantagem e preconceito.
Nós, povos indígenas, já fomos submetidos a tentativas de aculturação forçada, integração forçada, desterritorialização forçada. Não iremos nos submeter a mais uma violência do Estado Brasileiro, com a possibilidade de uma conciliação forçada.
Infelizmente, a conciliação está sendo conduzida com premissas equivocadas, desinformadas e pouco aberta a um verdadeiro diálogo intercultural.
Neste cenário, a APIB não encontra ambiente para prosseguir na mesa de conciliação. Não há garantias de proteção suficiente, pressupostos sólidos de não retrocessos e tampouco, garantia de um acordo que resguarde a autonomia da vontade dos povos indígenas. Nos colocamos à disposição para sentar à mesa em um ambiente em que os acordos possam ser cumpridos com respeito à livre determinação dos povos indígenas.
Nos resguardamos o direito de nos manifestar nos autos e tratar sobre os nossos direitos diretamente com o Juízo competente para decidir sobre os processos de competência do STF: o eminente relator e o Plenário do STF. Temos confiança que o Supremo Tribunal Federal não fugirá de sua missão constitucional.
Ainda estamos vivos e não desistiremos de nossas terras, do usufruto exclusivo das riquezas dos rios, lagos e solos, do direito de não sermos removidos de nossos territórios e do direito de termos nossos modelos próprios de desenvolvimento. Não permitiremos mais que o projeto dos neocolonizadores nos atravesse e nos arrase.
Lutamos pelo direito à diversidade que inclua radicalmente todos os setores da sociedade brasileira e contamos com o apoio da sociedade para a proteção de nossas vidas e de nossas florestas. O Brasil pega fogo e são os indígenas que têm as respostas e a chave para combater a emergência climática.
A APIB se retira da conciliação.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib
28 de agosto de 2024