Negros

Por que João Cândido ainda incomoda tanto o alto comando da Marinha?

O comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, enviou uma carta à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados opondo-se ao projeto de Lei que inclui João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O projeto já havia sido aprovado em 2021 no Senado. Em sua carta, o comandante nomeado por Lula insulta a memória de João Cândido e dos marinheiros negros revoltosos

Claudio Donizete, operário do ABC e da Secretaria de Negros e Negras do PSTU

26 de abril de 2024
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Em pleno 2024, o comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, resolve atacar a memória de João Cândido, o líder da Revolta da Chibata, assim como a memória dos marinheiros negros que se insurgiram contra as arbitrariedades e humilhações impostas pela Marinha. O comandante, nomeado por Lula, de forma vergonhosa e inaceitável, se coloca do lado da chibata e contra os marinheiros negros atacados.

Depois de 114 anos da Revolta da Chibata  contra as atrocidades cometidas aos negros marinheiros; mesmo depois da abolição formal da escravidão, por qual razão o alto comando da Marinha insiste em repelir o nome do “Almirante Negro” das honrarias a ele por direito, negado pelo Estado Maior das Forças Armadas e o Estado brasileiro?

Somente uma resposta é possível: a perpetuação do racismo como política de Estado e dos governos. Reconhecer João Cândido como herói quebra essa premissa e destrói o paradigma racista a aqueles que lutaram pela sua liberdade e justiça no Brasil. Insere-se, inclusive, na extensão de uma política de Estado pela Reparação da Escravidão no Brasil, tema que atualmente voltou com muita força a partir das denúncias do Banco do Brasil na estruturação da escravização e comércio negreiro internacional em nosso país. Leia mais aqui

O governo Lula/PT, ao capitular às Forças Armadas, fortalece esse tipo de reação

O que justifica tal nota e iniciativas da Caserna da Marinha é a capitulação do governo Lula/PT, desde o primeiro dia desse atual mandato, inclusive com a nomeação do Ministro da Defesa, José Múcio, figura próxima de Bolsonaro e com trânsito entre os setores que arquitetaram a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Às portas dos quartéis, já no final do governo Bolsonaro, Múcio fez declarações como essa: 

Eu falo com autoridade porque tenho parentes lá. No de Recife, tenho alguns amigos aqui [Brasília]. É uma manifestação da democracia. A gente tem que entender que nem todos os adversários são inimigos, a gente tem até inimigos correligionários. Eu acho que daqui um pouquinho aquilo vai se esvair e chegar a um lugar que todos nós queremos.” 

Bom, em 8 de janeiro de 2023 todo mundo viu onde foi parar seus “correligionários e democratas” de plantão em frente aos quartéis. 

Marinha insiste em demonizar João Cândido, e Governo Lula se cala

A nota divulgada pela Marinha e defendida pelo comandante Marcos Sampaio Olsen, que, diga-se de passagem, foi nomeado por Lula, tenta barrar uma homenagem ao Almirante Negro, e requenta velhas argumentações como a quebra de hierarquia e disciplina, das ameaças de bombardeio à cidade do Rio de Janeiro e remonta à morte de duas crianças nesse impasse. 

Sua oposição em não fazê-lo constar no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, segundo o comandante, se justifica, pois o reconhecimento do militar qualificaria “reprovável exemplo de conduta” para os brasileiros. E ainda classifica os marinheiros envolvidos na revolta, como Cândido, como “abjetos”, e disse que enaltecê-los significa exaltar atributos que não contribuem para “o pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado democrático de Direito“, chamando o episódio de vergonhoso e deplorável.

Lula com o comando das Forças Armadas, incluindo o comandante Marcos Sampaio Olsen

Mas, como era de se esperar, seletivamente, não há por parte desse oficial ou da Marinha nenhuma indignação ou autocrítica às atrocidades e chicotadas patrocinadas pelo Alto Comando aos fuzileiros negros na época. E, oficialmente, o governo Lula ainda não se posicionou sobre as odiosas declarações da Marinha e de seu comandante. Lembrando que Lula é o chefe e comandante geral das Forças Armadas, e, portanto, tem responsabilidade também por essas declarações. Depor esse comandante e rechaçar suas declarações seria o mínimo diante deste fato.

Isso é mais uma demonstração da necessidade de uma oposição de esquerda e socialista ao governo Lula, que governa com os capitalistas, incluindo a direita e a extrema direita.

Hipocrisia e abandono a essa reparação pelo estado e governos

A morosidade nos projetos para reconhecer João Cândido como herói nacional tramita no Parlamento desde 2007, na busca de concessão de anistia póstuma a ele e aos outros militares da revolta.

Em 2008 foram vetados pelo governo Lula todos os efeitos da anistia e promoções que os marinheiros teriam direito caso tivessem seguido no serviço ativo, além de pensão por morte, sob a justificativa de significativo impacto orçamentário do Estado. E em 2010, Lula hipocritamente batizou com o nome de João Cândido um navio petroleiro, no Porto de Suape, em Pernambuco, sem nenhuma menção à reparação e justiça social à família de João Cândido.

Filho de João Cândido reage à declaração da Marinha e o papel do governo Lula

Adalberto do Nascimento Cândido, 85 anos, o Candinho, é o filho caçula de João Cândido, e rebateu frontalmente os ataques a seu pai feitos pela Marinha e seu comandante, atacando ainda a criminalização do protesto contra os castigos físicos de chibatadas que os militares de baixa patente sofriam a época.

Candinho classificou como absurdas as declarações e ressaltou a persistência na perseguição e difamação de seu pai, mesmo muitas décadas depois da revolta. Ainda exalta seu pai-herói e relembra que essas declarações remetem aos tempos da ditadura. “A Marinha tem é que agradecer ao meu pai e aos demais companheiros da época. A Marinha só se modernizou depois, porque houve aquele movimento. Os marinheiros não tinham formação nenhuma. Os oficiais eram filhos de fazendeiros, que entravam na Marinha sem capacidade nenhuma“, afirmou Candinho. “Essas declarações nos fazem lembrar a volta à ditadura. Mas estamos numa democracia. Se fizer um plebiscito, o nome de João Cândido será aprovado como um herói. E não um herói da Marinha, mas popular. Um herói do povo brasileiro”, completou o filho do “Almirante Negro”.

E seguiu com suas críticas: “O que foi dito é o absurdo dos absurdos. É o que estão querendo fazer. Meu pai já faleceu há mais de 50 anos (em 1969) e, pela lei, pode se tornar um herói da Pátria. E essa Marinha continua com essa perseguição contra ele. Até hoje. Nem quando ele faleceu a patrulha era tanta, e vivíamos uma ditadura. Meu pai foi perseguido e foi absolvido. Passou dois anos preso, em 1912, e foi impedido depois de trabalhar na Marinha Mercante“.

Como se deu o conflito e quais eram as reivindicações?

No dia 22 de novembro de 1910, 2.379 marinheiros se rebelaram contra os castigos e chibatadas aplicados pelos superiores como castigo sob as justificativas mais diversas. A rebelião tornou João Cândido um dos personagens mais respeitados na luta antirracista e, também, contra os governos, na História do Brasil.

Apesar de ter sido preparado durante um longo período, o levante explodiu quando o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes foi punido com 250 chibatadas sem direito a tratamento médico.

As principais reivindicações, sintetizadas em um Manifesto enviado para o gabinete do presidente da época, Hermes da Fonseca, eram o fim dos castigos físicos, a redução da jornada de trabalho e anistia aos marinheiros revoltosos. E, para garanti-las, os marinheiros tomaram as quatro principais embarcações da Marinha, e cerca de 80 canhões foram apontados para a capital, o Rio de Janeiro, que foi atingido por um disparo de advertência, aumentando enormemente a tensão.

Pressionado, tanto pelas ameaças dos marujos quanto de políticos, além da simpatia ao movimento demonstrada nas ruas, morros e cortiços, o governo aceitou os termos propostos e pôs fim aos castigos físicos em 26 de novembro de 1910, prometendo, ainda, anistia a todos os envolvidos. Porém, a promessa não foi cumprida e, no dia 28, um decreto dispensou cerca de mil marinheiros por indisciplina.

Após isso, uma segunda revolta na Marinha iniciou-se, dessa vez, no Batalhão Naval, estacionado na Ilha das Cobras. Essa segunda revolta, no entanto, foi massacrada violentamente, e os envolvidos foram aprisionados e torturados nessa ilha. Outras centenas de marinheiros foram enviados para trabalhar em seringais na Amazônia e muitos foram fuzilados durante o trajeto.

Marinheiros durante a Revolta da Chibata

Quem era o Almirante Negro?

João Cândido Felisberto nasceu em 24 de junho de 1880, em Encruzilhada, no Rio Grande do Sul, em uma família de ex-escravizados. Aos 14 anos, entrou para a Marinha, transformando-se num marujo muito experiente, que sabia manejar muito bem os instrumentos e principalmente os canhões dos navios, em particular o Minas Gerais, que era o seu “encouraçado”.

No decorrer dos anos, chegou a navegar pela Europa, pelas Américas e a África, absorvendo larga experiência de sobrevivência e nas operações no mar, além de fazer contatos com marinheiros organizados em sindicatos e organizações de esquerda na Inglaterra, e de ter tomado conhecimento dos acontecimentos do Encouraçado Potemkin, em que marujos russos se rebelaram, em 1905, contra o governo de seu país.

João Cândido tornou-se, assim, em um marco importantíssimo para o estabelecimento de novos marcos, mais humanitários, na Marinha. Sua vida é exemplo de uma trajetória de muita luta, resistência às injustiças históricas, especialmente no enfrentamento ao racismo, à intolerância e à violência que afetam o povo negro e pobre e foram herdadas dos sistemas escravagista, colonial e imperialista.

Contudo, sua história e legado também foram marcados pelo sofrimento (foi preso, torturado e internado em um hospício) e por décadas de negação, pelo Estado brasileiro, do reconhecimento da importância e relevância do papel que cumpriu. Ou seja, mais uma vez foi marginalizado e criminalizado, sem nenhuma reparação histórica e financeira em relação aos serviços prestados, legitimamente, ao Estado.

Somente em 2008, João Cândido recebeu a anistia, mas sem nenhuma reparação póstuma aos seus familiares. E, mesmo assim, em 2021 o Estado o reconheceu como Herói da Pátria. Mas, de forma cínica, sem conceder qualquer indenização ou reparações, legitimas e necessárias, a uma vida inteira dedicada à luta contra a exploração, a opressão e em defesa dos Direitos Humanos, tanto para os marinheiros quando para o povo, em geral, e negros e negras, em particular.

Viva a memória e atos heroicos do Almirante Negro, João Candido!

Reparação e indenização imediata aos seus familiares!

Repúdio total ao racismo e afronta da Marinha aos direitos dos marinheiros da Revolta da Chibata! 

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