As noites estreladas do Brado
São três anos da morte de um camarada de extrema importância para São José do Rio Preto. Diante disso, conversando com amigos e falando sobre as crônicas que criei sobre diversas partes e questões da cidade, que percebi que não podia deixar o Centro Cultural Brado, dirigido pelo camarada Marcão, de fora desse “bojo”. Segue a homenagem de um cronista.
Silêncio! Todos a postos e com armas da mão. A poesia já vai começar! Aceitamos livros de Drummond, Bukowski, Fernando Pessoa e Paulo Leminski. Verdadeiras granadas, como nos gostava de apontar o organizador de tudo isso: grande e camarada Marcão. Seus olhos fundos e cheios de bolsas, testa marcada, barba mal feita e altura suficiente para assustar qualquer pequeno-burguês que viesse se meter com assuntos que não deveriam ser seus, deixava claro. No Centro Cultural Brado só entram os camaradas!
Passou a infância no Boa Vista, mas é quando se muda para o CAIC, acima da Avenida de Maio, que a magia acontece. Na rua Isaías Luciano da Silva, número 134, uma casa marcada pela cultura e pela arte. Um verdadeiro oásis de encanto, poesia e choro em meio às mesmices de um bairro como qualquer outro.
Tudo aquilo sempre me encantou. O portão da entrada, meio enferrujado, com tinta verniz e alguns traços. Mas era justamente lá dentro que a magia ganha corpo e contornos: um local cercado de poesia e arte por todos cantos. Garrafas ao meio de paredes de concreto, dinossauros em jaulas de passarinho, sem falar nos quadros de diversos autores, autoras e militantes famosos. Adorno todo preto, contradizendo os olhos de quem vê e chamando atenção para o que realmente importava: as esculturas!
Aquele lugar era tudo, é tudo: casa de arte, sebo cultural, espaço de encenação, poesia e muito mais! O ganha-pão de um cara que, quase sempre, tinha que dar murros e enfrentar a vida de frente: pintor de casas, pintor de almas vazias e incompletas! Pintor de si mesmo, talvez. Verdadeiro ouvinte das causas extremas.
Muitas reuniões foram feitas naquele piso marrom-antigo. Muitas conversas foram jogadas foras na cozinha daquele museu vivo, enquanto o próprio “curador do espaço”, verdadeiro cozinheiro, assava um bolo de coco; quando não inventava receitas mirabolantes que convencia as pessoas não pelo paladar, mas pelo romance nas palavras bem escolhidas.
Ora ou outra, quase sempre, estrelavam-se as noites de poesia coletiva naquele palácio de estética duvidosa, mas reconfortante, ao lado de camaradas de mais distintas origens espaciais e sociais. Eram as noites estreladas do Brado, com música, declamações, orações à Afrodite. Encantos, desencantos, choros e deschoros. A música é que não faltava, daquelas que vinham da caixa de som até aquelas que vinham do interior, das maiores profundezas de uma mísera alma humana. Aplausos, críticas e gritos honestos, sinceros e destemidos. As granadas poéticas eram lançadas, enquanto guardo a minha: Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade.
E se tratando dos eventos educativos? Seminários de Marx, Lenin e Trotsky. Discussões valiosíssimas para o conhecimento historicamente acumulado. Tudo, muito bem organizado e cabível em suas quatro pequenas paredes, que mais eram como coração de mãe.
Hoje, o Brado é e não é: é um espaço que não é mais, de saudade e desprezo por aquilo que já foi. Muitas pessoas já esquecem, não se lembram dos últimos detalhes. É como se daquilo nada tivesse sido. Ao mesmo tempo é: é história, perfeição humana em uma curta linha dos processos ditos “cronológicos” de alguma existência humana, que se acabou e hoje é memória. As noites estreladas do Brado continuam, tem sua estrela: Marcão presente, hoje e sempre! Mais estrela que tudo!
Ainda espero, ansiosamente, o Vigésimo e Quarto Sarau do Brado.