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Marielle e Anderson: Prisão de mandantes mostra relações entre milícias, crime organizado, polícia e parlamento

Ao contrário do que o ministro Lewandowski afirmou, investigações precisam avançar

Redação

4 de abril de 2024
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Domingos Brazão, seu irmão Chiquinho Brazão e Rivaldo Barbosa Alerj, ABr/via Fotos Publicas

No último dia 24 de março, o país acordou com a imprensa anunciando a resposta exigida pelos movimentos sociais nesses últimos seis longos anos: “Quem mandou matar Marielle e Anderson?” As prisões do Deputado Federal Chiquinho Brazão (União Brasil); de seu irmão, o Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Domingos Brazão; e, o que surpreendeu muita gente, a do ex-Chefe de Polícia Civil do Rio Rivaldo Barbosa, teriam colocado um ponto final nesse crime bárbaro.

O recém-empossado Ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, que acabara de deixar o Supremo Tribunal Federal (STF), reforçou essa ideia ao anunciar, no mesmo dia, que “os trabalhos foram dados como encerrados”. Mas será mesmo que está tudo solucionado?

Pelo que já foi divulgado pela imprensa, a partir das investigações, os irmãos Brazão teriam encomendado a execução aos matadores de aluguel e ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, que, em 14 de março de 2018, cometeram o crime bárbaro que chocou o Brasil.

O motivo apontado para o crime teria sido a posição contrária da vereadora a um Projeto de Lei, encaminhado por Brazão, para regularizar áreas dominadas pela milícia na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Uma explicação insuficiente, para dizer o mínimo, já que Marielle tinha pouca atuação na região, seu voto contrário não foi decisivo para o projeto e ela sequer discursou durante o debate da proposta.

Tudo dominado

Se a participação dos irmãos Brazão no crime já era dada como certa, a surpresa ficou por conta do então Chefe da Polícia Civil Rivaldo Barbosa, nomeado no dia anterior ao crime pelo interventor do Governo Federal no estado, ninguém menos que Braga Netto, futuro ministro de Bolsonaro e vice na chapa de 2022.

Nomeação que, vale lembrar, ocorreu apesar de indicação contrária do próprio setor de inteligência da Polícia Civil. O mentor da execução de Marielle e Anderson chegou a receber uma condecoração do Exército quatro meses após o crime.

Rivaldo Barbosa não teria atuado apenas para barrar as investigações, já que o Departamento de Homicídios do Rio, por si só, já é notoriamente corrupto e ligado às milícias e demais setores do crime organizado; mas, também, teria articulado diretamente as execuções, inclusive indicando o local para o crime, que deveria ser afastado da Câmara, para não levantar maiores suspeitas.

Marcelo Freixo e família de Marielle se reúnem com Rivaldo Barbosa, então chefe da Polícia Civil e que agora se descobriu ser um dos mandantes Foto Tania Rêgo/Agência Brasil

Essas prisões, que só ocorreram após seis anos de muita pressão e mobilização populares, ajudam a costurar algumas pontas soltas nesse crime. Expõem as relações espúrias entre a milícia, a Justiça e o Parlamento, que, ao contrário de antagônicos, atuam como uma única organização criminosa em prol da burguesia, incluindo aquela ligada ao crime organizado e à contravenção.

Mas, ainda restam muitas perguntas: Por que tanta demora na investigação? Qual o real motivo para a execução de Marielle e Anderson? Qual a ligação entre esse crime, as milícias e a família Bolsonaro?

Rio de Janeiro

Milícias, polícia e Estado

Mais do que uma relação promíscua, o que une o crime organizado, as forças policiais e as instituições do Estado, não só no Rio de Janeiro, é uma verdadeira simbiose; ou seja, uma relação de apoio e atuação mútuos, em que um protege o outro. Exemplo disto é o caso de Rivaldo Barbosa, o mentor do crime que “investigava” a si próprio.

A trajetória do homem que efetuou os disparos contra Marielle e Anderson, o ex-PM Ronnie Lessa, também é um exemplo dessa relação. Lessa fez parte do conhecido grupo de extermínio “Scuderie Le Cocq”, integrou o Exército e entrou na PM em 1991. Mesmo sem ter feito o curso para o Batalhão de Operações Especiais (Bope), participou de várias de suas operações.

Nos anos 2000, Lessa integrou a segurança pessoal do bicheiro Rogério de Andrade, sobrinho de Castor de Andrade. Seria, ainda, dono de um bingo clandestino, de academias, lojas de tatuagens em Rio das Pedras, além de atuar no tráfico de armas.

Relações proveitosas e queima de arquivo

A trajetória de Lessa também se confunde com a de Adriano da Nóbrega, apontado como chefe da milícia “Escritório do Crime”. Adriano da Nóbrega também integrou o Bope, onde acabou punido por “exagerar” (até mesmo para os padrões da instituição) numa sucessão de torturas, execuções e extorsões.

Sua relação com a família Bolsonaro era tão grande que o então Deputado Estadual Flávio Bolsonaro empregava a ex-esposa e a mãe do miliciano. Nóbrega também foi homenageado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) por iniciativa do amigo deputado e a família Bolsonaro também atuou na defesa de Nóbrega quando ele foi preso e condenado a 19 anos, por sequestro, extorsão e assassinato de um guardador de carros. Ou seja, uma relação íntima e de favores mútuos.

A morte de Adriano da Nóbrega, numa atuação conjunta das polícias militares baiana e carioca, em fevereiro de 2020, foi uma evidente queima de arquivo. O episódio, ainda que, a princípio, possa não ter relação direta com o caso Marielle, reforça o papel e a relação da polícia com o crime organizado, para muito além das fronteiras do Rio de Janeiro.

Crime organizado e estatal

‘Se eu falar, acabou o Rio de Janeiro’

Truculência, violência e execuções sumárias, praticadas contra a classe trabalhadora e os setores mais pobres, são marcas do Estado e das forças de segurança que remontam à escravidão e a todo um histórico de racismo.

No Estado Novo de Vargas (1937-1946), houve um salto na generalização da violência e da tortura, tanto em relação aos presos políticos como no que se refere aos presos “comuns”. Foi neste período, também, que começou uma profissionalização da corrupção na polícia carioca, com incentivos diretos e indiretos dados a empresários, donos de casas de prostituição, jogo do bicho etc.

Ditadura militar e crime organizado

Após o Golpe de 1964, toda essa teia deu um salto, atingindo dimensões que aprofundaram a barbárie. Todos os grandes bicheiros do Rio estiveram envolvidos com a ditadura, em apoio direto ou indireto. Usaram a ditadura para consolidar influência política e, posteriormente, contaram com os agentes da ditadura para assessorar os seus negócios.

A década de 1960-70 também foi marcada pela “profissionalização” do jogo do bicho, com a delimitação rígida de territórios e a constituição de organizações fortemente hierarquizadas. Essa mudança foi possível graças à contratação de agentes da repressão da ditadura, garantindo, por meio da violência, o que não se podia garantir pela “lei”.

A relação da contravenção com policiais matadores permaneceu após a redemocratização, para realizar serviços de segurança e execuções de rivais. Portanto, Ronnie Lessa e Adriano da Nóbrega não são exceção nesta relação; mas, sim, são a regra.

Crime e poder

Para se ter uma ideia de como os bicheiros compõem a estrutura de poder no estado, com influências que vão além das fronteiras do Rio, vale lembrar que o atual Ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, o mesmo que correu para anunciar o fim das investigações do caso Marielle, deu vários votos favoráveis ao bicheiro Rogério Andrade, acusado de mandar assassinar seu concorrente Fernando Iggnác, com o qual disputava pontos de jogos. Primeiro, Lewandowski suspendeu o julgamento do bicheiro e, depois, votou pelo encerramento de uma ação penal contra o contraventor.

Levantamento realizado pelo jornal “Folha de S. Paulo”, em fevereiro, mostra que, nas últimas décadas, o STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concederam mais de 15 habeas corpus à cúpula do jogo do bicho do Rio.

Ainda em 2018, quando foi interrogado pelo Ministério Público do Rio e era suspeito de envolvimento na execução de Marielle e Anderson, o miliciano Orlando Curicica já havia alertado sobre a atuação do então chefe da Polícia Civil no estado.

Mais do que isso, Curicica indicou o que poderia ocorrer caso falasse tudo o que sabe: “Se eu resolver falar, acabou o Rio de Janeiro. Isso eu garanto à senhora, se eu falar o que eu sei, não existe mais o estado do Rio de Janeiro a nível de Justiça. Vai ter que reinventar a Polícia Civil, vai ter que reinventar a Polícia Militar”.

Vale tudo?

Até alianças com milicianos que mataram Marielle e Anderson?

Tão logo os irmãos Brazão foram presos, começou uma disputa nas redes sociais, com bolsonaristas exibindo fotos de Domingos Brazão apoiando Dilma à reeleição de 2014 e petistas rebatendo, lembrando que seu irmão, o deputado federal Chiquinho Brazão, apoiou Bolsonaro em 2022.

Já o vice-presidente do PT, Washington Quaquá, reafirmou seu apoio a Domingos Brazão, em uma declaração de 24 de janeiro. “Eu conheço o Brazão e sou amigo dele! Não só não acredito que ele fizesse uma brutalidade dessas, como o conheço na política e isso é coisa de gente sem capacidade política”, declarou. Mesmo após a prisão, Quaquá não deixou de defender o amigo: “Não vou nem dizer que é inocente nem culpado, não vi ainda provas cabais”.

O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), aliado de Lula, nomeou Chiquinho Brazão como chefe da Secretaria Especial de Ação Comunitária entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024. Vale lembrar, ainda, que as suspeitas sobre os Brazão já vêm de muito antes. E mais: o mesmo Eduardo Paes provavelmente terá ninguém menos que Marcelo Freixo, agora filiado ao PT, como companheiro de chapa para a reeleição.

É o pragmatismo político que vai além da aliança com partidos da direita e da extrema direita, mas que chega até mesmo a milicianos que assassinam lideranças sociais.

Até o fim

É preciso continuar lutando pela investigação e punição de todos os envolvidos

Esse crime bárbaro está longe de ter sido resolvido. É preciso ir até o fim, e punir todos os responsáveis. E, como vimos, não serão a Justiça, o Parlamento, em seus diferentes níveis, ou muito menos as polícias, que irão resolver o caso. Só a pressão e a mobilização populares poderão garantir justiça de fato, enfrentando as instituições e as alianças espúrias que protegem essa corja. Justiça para Marielle e Anderson!