Novas dimensões da questão negra no Brasil
Em nossa opinião, entramos em um momento importante da luta antirracista no Brasil. Mudanças importantes ocorreram nas últimas décadas e, por isso mesmo, continuar tocando essa luta da mesma forma que há 20 ou 30 anos, seria o mesmo que carregar água em crivo. Com base nesta constatação, pretendemos abrir um debate sobre as novas dimensões da luta pela libertação negra em nosso país. E para isso, iniciamos fazendo ajustes em algumas de nossas próprias reflexões sobre o tema.
Nós tínhamos uma hipótese que era a seguinte: o mito da democracia racial foi elaborado como uma ideologia para negar o racismo brasileiro e, consequentemente, escamotear as profundas desigualdades raciais existentes no país. Porém, mais do que isso, essa ideologia tinha como objetivo fazer com que a população negra e o conjunto da classe trabalhadora não percebessem essas desigualdades como produto da forma como o capitalismo brasileiro se desenvolveu.
Desse modo, essa ideologia deveria e deve ser encarada como parte integrante do conjunto das ideias que a burguesia forja para sustentar o seu regime: a democracia burguesa. Dizíamos também que o mito da democracia racial havia entrado em crise como parte da crise do conjunto das instituições e ideologias que sustentam essa democracia dos ricos. A base material de tudo isso seria a crise estrutural na qual o capitalismo está mergulhado desde 2007-2008. Obviamente, que essa relação não é mecânica, mas ela existe.
Sendo assim, se o mito da democracia racial entrou em crise- e se ele era um dos grandes obstáculos à autoidentificação racial dos afro-brasileiros-, logo, somos induzidos a concluir que, à medida que cresce essa autoidentificação negra, mais e mais se aprofunda a crise do mito da democracia racial, que, por sua vez, pode engendrar ainda mais a crise da democracia burguesa, enfraquecendo, assim, os próprios mecanismos de dominação de raça e de classe no Brasil. Bom, o problema é que essa relação não deve ser vista com tamanha estreiteza.
Antes de qualquer interpretação dos dados sobre autoidentificação racial, é preciso lembrar que, do outro lado da trincheira, existe uma classe social com consciência histórica e preventiva, a burguesia. É fato que ela perdeu parte da batalha que sempre travou contra o Movimento Negro na insistente negação do racismo. O grande problema é que o principal objetivo do mito da democracia racial não é apenas esconder o racismo, mas mostrar que o capitalismo brasileiro é, racial e socialmente, democrático. E dessa formulação a burguesia jamais abrirá mão, caso contrário, apontaria uma arma para sua própria cabeça. Mas, a burguesia não costuma brincar de roleta russa.
O crescimento da autodeclaração negra, ainda que seja aparentemente progressista, não é necessariamente antissistêmico. Nada evolui no vazio, nem mesmo a consciência, seja ela de classe ou de raça. Toda consciência tem uma base material, já nos ensinava Marx, e a classe, que é força material, é também força espiritual. Portanto, não é possível que, com tantas mudanças estruturais que vêm ocorrendo no Brasil nos últimos 30 anos, a burguesia continue tratando o tema racial da mesma forma como tratava nas décadas de 1980 e 1990, ou que a autoidentificação nos dias atuais tenha o mesmo significado e impacto que tinha naqueles períodos. Seguir vendo as coisas dessa forma, unilateral e supra histórica, é pouco dialético e nada consequente para o fortalecimento da luta antirracista.
Para avançar nessa reflexão, achamos necessário responder algumas perguntas como: essa consciência racial avança em direção a qual projeto ou programa? O do proletariado ou o da burguesia? É uma consciência que avança em direção à desmistificação daquilo que é a essência do mito da democracia racial ou atua como força retroalimentadora dessa ideologia? É uma consciência que avança na compreensão da relação entre capitalismo e racismo, raça e classe, ou que salta por cima dessa compreensão?
É certo que nenhum desses questionamentos devem ser respondidos de maneira definitiva. As reflexões que faremos aqui devem ser entendidas como tentativas de leituras de um processo que está em curso, porém numa velocidade preocupante.
Poucas organizações conseguiram perceber que parte da burguesia brasileira, a mal chamada burguesia progressista, entrou na disputa pelo tema da opressão racial e tem tentado, com certo êxito, sequestrar seus elementos essenciais, classistas e não conciliatórios. Porém, não foi um sequestro em que as vítimas tenham sido pegas de surpresa, mas aquele tipo de sequestro em que os sequestradores se apoiam nos que deveriam proteger as vítimas.
Explico. O maior medo da burguesia sobre a questão negra brasileira sempre foi a sua combinação com a questão de classe, o que faz do mesmo um problema explosivo. Os quase 400 anos de escravidão em que raça e classe eram quase sinônimos, foram demasiadamente suficientes para forjar essa paranoia anti-negra em nossas classes dominantes. E essa afrofobia foi preservada em razão da forma como se deu a abolição: sem reparações e sem mudanças qualitativas na alocação dos indivíduos na estrutura da sociedade brasileira, em razão da sua descendência étnico-racial. Após o 13 de maio de 1888, os negros formariam uma massa compacta, que Clóvis Moura denominou de franja marginal. O mito da democracia racial foi elaborado justamente para esconder essa realidade e impedir que a mesma fosse compreendida, questionada e transformada.
No entanto, o que temos vistos nos últimos anos foi um giro dessa burguesia em relação à questão negra, incorporando a mesma a seus projetos e a suas políticas, sem que para isso tenha movido sequer uma figa da estrutura social em que o proletariado negro está submetido. Por mais que isso expresse, de maneira distorcida, a luta do Movimento Negro das últimas décadas, contraditoriamente, a burguesia não incorporou as reivindicações mais importantes defendidas por este movimento, mas sim conseguiu inserir o tema racial no seu projeto estratégico, que é de recolonização do Brasil. E fizeram isso com a maestria digna de uma classe social que se especializou em pintar com cores reluzentes estruturas podres tomadas por cupins por toda a parte. Muitas explosões nas favelas, morros e nos setores mais negros e pauperizados da classe operária aceleraram esse processo. Não menos importante foi a adesão de muitos não-negros à luta antirracista. A rebelião antirracista, de dimensão mundial, que estourou nos EUA em 2020, após o assassinato de George Floyd, fez a burguesia engatar a quinta marcha de sua contraofensiva ideológica. Daí que seus intelectuais orgânicos mais lúcidos tiveram que girar diante de todo esse ascenso negro para contê-lo no limite do seu regime. A adesão de muitas organizações negras a esse regime, particularmente durante os governos petistas, facilitou essa acomodação. Veremos mais à frente, que, na verdade, foram essas organizações que incorporam o projeto da burguesia às suas demandas e não o inverso.
Essa classe social conseguiu manipular dados estatísticos importantes sobre autodeclaração para tentar mostrar o surgimento fictício de uma burguesia negra e o crescimento, não menos fictício, de uma classe média negra no Brasil, justo no momento em que as estatísticas mais sérias mostram o empobrecimento do conjunto da classe trabalhadora.
Uma dessas manobras está nas interpretações dos dados recentemente divulgados pelo IBGE. Neles o item “negro” passou a ser a somatória dos autodeclarados pardos e pretos. Assim, muitos dos que antes se declaravam “brancos” passaram a se declarar “pardos”, e, portanto, entraram para a lista de “negros”. Como no Brasil existe uma hierarquia cromática em que, quanto mais escura a cor da pele dos indivíduos, mais obstáculos ele está sujeito a enfrentará e, quanto mais clara for, menos obstáculo terá, então é possível dizer que a comunidade negra ganhou milhares ou até milhões de “pardos” burgueses ou de classe média, que antes se julgavam brancos. Sendo assim, o capitalismo brasileiro pode estar forjando uma burguesia negra e enegrecendo sua classe média sem que para isso tenha sido obrigada fazer qualquer inversão na estrutura da sociedade.
Não são os negros que estão ascendendo socialmente, mas muitos “ex-brancos” burgueses e de classe média que estão enegrecendo. Assim, o capitalismo brasileiro, em seu contexto mais decadente, pode estar forjando uma burguesia negra e ampliando a sua classe média negra através de uma simples mudança nos critérios de mensuração racial utilizado pelo IBGE. Quando, na realidade, é mais fácil ter aumentado o contingente de brancos entre os mais pobres que de negros entre os mais ricos. Essa narrativa não é nova, visto que em 2012 veio à tona uma enxovada de publicações afirmando, através de distorções de dados, que mais de 50% da classe média brasileira seria formada por negros ou até mesmo aqueles que afirmavam que esse percentual chegava a 80% (Leia aqui uma das inúmeras publicações sobre os negros compondo a maioria da classe média negra brasileira). Essas narrativas estão de volta e é provável que estejam voltando com mais força e apoiadas em novos argumentos.
Não queremos dizer com isso que não seja progressista ver pessoas que outrora se autodeclaravam brancas, para se aproximar do padrão imposto como superior, rompendo, ainda que parcialmente, com essa ideologia de superioridade racial. Na verdade, uma luta importante do conjunto do Movimento Negro brasileiro nas últimas décadas foi, não apenas incluir os “pardos” na categoria de “negros”, mas fazer com que os negros de pele mais clara se assumissem, definitivamente, como negros e não como pardos. Porém, o que de fato não aconteceu foi qualquer mudança estrutural na base da pirâmide em favor do proletariado negro. Vejamos: se a maioria dos mais pobres são negros e a quase totalidade dos mais ricos são brancos, como foi possível enegrecer a burguesia brasileira se os ricos ficaram mais ricos e os pobres ficaram mais pobres e parte da classe média se proletarizou? Talvez a varinha de condão do IBGE possa explicar esse feito, tal como o fato de que, apesar de Lula não ter nomeado uma ministra negra para o STF, ele, pelo menos, nomeou um homem negro, já que Flávio Dino se autodeclara “pardo”. Mister “M” não faz mágica, faz truques, mas há quem o chame de mágico, assim como há aqueles que descobriam de uma hora para outra que Flávio Dino é negro, embora sociologicamente não o seja. O certo é que mudanças estruturais não se fazem com mágica, muito menos com truques, mas o ilusionismo político pode moldar consciências e forjar falsas narrativas.
A mudança estrutural que ocorreu na comunidade negra, particularmente entre o proletariado negro brasileiro, foi, na verdade, para baixo. Isto é, na corrosão dos poucos direitos que possuíam enquanto trabalhadores. Afinal, qual foi o setor da classe trabalhadora mais impactado com as reformas (trabalhista, previdenciária, tributária, administrativa, educacional, etc) realizadas nos últimos anos, senão o negro? E por que isso parece não contar? Porque, ao mesmo tempo em que a burguesia aprofunda as desigualdades raciais, ela cria mecanismos para fazer com que essa “consciência racial” se afaste o máximo possível do seu conteúdo de classe e se desvincule da noção de totalidade. Estão tentando fazer da “raça” uma árvore para esconder a floresta onde germina a luta de classes, e, com isso, ofuscar a realidade concreta da classe formada majoritariamente por negros e negras, a trabalhadora. Feito isso, ficaram bem à vontade para glamourizar a pobreza ( “favela é potencia!”, “favela venceu”) e romantizar o racismo (negro no topo, pretas empoderadas, black money, etc).
Assim, quanto mais portas essa mesma burguesia fecha na cara do proletariado negro, mais propaganda faz de que a vida da comunidade negra está melhorando. E esse discurso, ao ser reproduzido às centenas de vezes pela boca de muitas lideranças negras, transformou-se numa verdade goebbeliana. Eis aqui a essência do mito da democracia racial, só que com roupagem de virada de ano.
A esse respeito, a postura da empresária Luíza Trajano é bem reveladora. A dona do Magazine Luiza se transformou numa espécie de vedete da defesa dos oprimidos. Assume abertamente que o Brasil é racista, defende políticas de cotas, tem reserva de vagas para oprimidos em suas lojas, uma política de diversidade e trainee para negros e negras. Pois bem, Luíza Trajano foi uma das empresárias âncoras na defesa da Reforma Trabalhista aprovada no governo Temer, que aumentou o subemprego e o desemprego na casa dos milhões, afetando principalmente negros e negras. Também assinou recentemente a carta de empresários contrários ao Brasil apoiar à investigação de Israel como Estado genocida. Eis aí a mítica defensora dos oprimidos.
Com tantos “aliados” assim na parte de cima da pirâmide social, parte das organizações negras, possivelmente a maioria delas, trocou a mobilização política por projetos assistencialistas financiados pelo Estado, ONGs e fundações empresariais. No lugar das reivindicações como geração de empregos, desencarceramento negro, desmilitarização da PM, titulação dos territórios quilombolas, descriminalização e legalização das drogas, etc, surgiram vocabulários como empoderamento, empreendedorismo e bem viver, santificados nas conferências antirracistas patrocinadas por organismos imperialistas como Banco Mundial, ONU, UNICEF e Fundação Ford. Esses termos passaram a dominar o léxico político da maioria das organizações antirracistas do Brasil e do mundo.
Para que se tenha uma ideia do que isso significa, 76% dos “empreendedores negros” não possuem CNPJ, 82% não têm empregados, 41% têm apenas o Ensino Fundamental, e 72% não contribuíam para o INSS. A média de rendimento das empreendedoras negras é R$ 1.852. Os dados são do próprio Sebrae. São “empreendedores por necessidade” ou simplesmente trabalhadores desempregados que não se veem como trabalhadores, mas como empresários e haja confusão.
E isso tem se transformado num grande obstáculo para aquilo que historicamente foi uma das principais bandeiras do movimento negro: a luta contra o desemprego dentro da comunidade negra. Ora, como um trabalhador desempregado ou subempregado, que foi convencido, de uma hora para outra, de que não é trabalhador e sim um “empreendedor”, vai lutar por geração de emprego?
Na mesma direção, muitas entidades negras deixaram de exigir que o Estado priorize a comunidade negra em suas políticas sociais focalizadas para reverter as desigualdades, e passaram a negociar para que este mesmo Estado financie seus projetos, a fim de minimizar a situação cada vez mais dramática para onde o capitalismo e este Estado burguê empurram o proletariado negro. Para justificar tal opção, caracterizam qualquer projeto transformador como utópico ou idealista e dizem: “estamos fazendo o que é possível”! Quando, na verdade, não existe nada mais idealista do que remediar as desgraças do capitalismo com assistencialismo racial.
Não queremos dizer com isso, que somos contra reformas ou que abdicamos de lutar por mudanças em favor da comunidade negra por dentro do capitalismo. Não se trata disso. Muito pelo contrário, as grandes reformas ocorridas em benefício da população negra foram produtos de organização e mobilização política. Mesmo a política de cotas, por mais distorções que nela tenham sido operadas, só foi implementada porque houve grandes mobilizações e debates. Ela não veio de graça. O que temos afirmado, e a realidade tem nos dados razão, é que tais lutas não podem, jamais, estarem desvinculada da luta mais geral pela superação do capitalismo. No limite do capitalismo, cada uma dessas conquistas torna-se limitadas, parciais e efêmeras.
Cientes disso- da incapacidade de o capitalismo melhorar as condições de vida do conjunto da população negra-, a burguesia tem induzido muitas organizações negras a mostrarem que o capitalismo pode ser humanizado e humanizador, bastando para isso que os corações dos bons burgueses sejam tocados no sentido de torná-los parceiros destes movimentos e que destinem recursos para ajudá-los a realizar os “sonhos” de quem vive nos bolsões de miséria. Dizem: aqui nosso projeto empregou tantos negros, gerou renda para tantos empreendedores, encaminhou tantos outros para as universidades e tirou tantos adolescentes do crime e das drogas; enquanto, no atacado, o desemprego cresce, a renda dos negros diminui, as desigualdades e a violência se aprofundam. Assim, transformaram muitos dos nossos em “troféus negros” expostos em prateleiras racistas. E sempre que algum dedo negro ousa apontar na cara branca do capitalismo, esses burgueses franciscanos apressadamente apresentam esses troféus como se dissessem: vejam que lindo, as coisas não são bem assim como dizem esses radicais!
Ou seja, parte das entidades ditas antirracistas converteram-se em difusoras da ideia de que o capitalismo pode ser racialmente democrático e humanamente recuperável. Não resta dúvida de que, desta forma, o mito da democracia racial mais se reordena que se debilita e, infelizmente, parte da autoidentificação negra tem girado em torno dessa mistificação que só fortalece o capitalismo, não por culpa de quem se autodeclara, mas em razão do labirinto político que o movimento negro foi seduzido a entrar.
Mas, como falamos acima, tudo isso é um processo que ainda está em curso e que pode ser desviado para um caminho classista e revolucionário, o que vai depender da direção política. Até porque, se é verdade que parte do ativismo negro tem atuado, consciente ou inconscientemente, dentro dos limites de um projeto burguês fantasiado de diversidade, é verdade também que o proletariado negro não come, não bebe, e não veste mitos. Realidades podem ser mistificadas, mas os mitos também podem ser destruídos, assim como realidades podem ser radicalmente transformadas. Sobre isso trataremos no próximo artigo.