“Hip Hop estilingue” (1): ritmo e poesia também ecoam a luta por uma Palestina livre
O debate sobre o genocídio em curso na Palestina também tem sido travado na mídia e no campo cultural. E sabemos muito bem o quanto isto tem significado em termos de distorções e falseamentos da realidade, produção de “fake news” e uma ladainha constante sobre uma suposta disputa entre um mundo “civilizado” (à imagem e semelhança do sionismo e seus aliados imperialistas) e terroristas ou bárbaros, representados pelos palestinos e todos e todas que ousam defende-los incondicionalmente.
Em meio a tudo isto, imagens têm viralizado mundo afora. Para além da constante propaganda sionista, a grande maioria é terrível e exemplar da agressão desumana de Israel, ao ponto de entrarem em contradição com o discurso pró-sionista que as acompanha na mídia.
Por isso, foi com razoável encanto que, esta semana, me tornei mais uma dentre as dezenas de milhões de pessoas que já ficaram boquiabertas diante de uma imagem vinda da Palestina que, ao mesmo tempo, é “forte” e cheia de esperança: um garoto de 15 anos rapeando “Shounting at the wall” (“Gritando na parede”, com legendas em inglês), em meio aos destroços de Gaza.
Foi ouvindo os versos de Abdel-Rahman Al-Shantti, ou MC Abdul, que decidi escrever a coluna desta semana sobre o Hip Hop palestino. O que, antecipo, se tornou uma viagem contraditória e complicada.
Contraditória porque navegar pela produção dos/as rappers palestinos é uma mescla constante de encanto com o talento da moçada e indignada revolta, diante da realidade que lhes serve como fonte de inspiração. Complicada porque estamos falando de um movimento que já tem uns 30 anos, já produziu muito, sofreu transformações etc.
Em função disto, acabei sendo obrigado a dividir a coluna em três artigos. Este primeiro serve como uma introdução geral. No próximo, irei apresentar alguns grupos e artistas, traçando paralelos com a história Palestina. No último, irei tocar em alguns temas recorrentes no Hip Hop palestino, destacando também o papel das mulheres.
Ainda como introdução, destaco que nem sempre foi possível rastrear as especificidades dos posicionamentos políticos e ideológicos dos artistas, apesar de que ficará evidente que a maioria dos citados tem perspectivas que vão para muito além daquelas que são defendidas pelas mais conhecidas lideranças políticas palestinas.
E, por fim, são poucos os vídeos legendados em português. Contudo, sabemos que isso nunca é um impedimento para que se curta qualquer coisa (inclusive muita bobagem) que “vem de fora”, em idiomas que ninguém entende.
Versos e microfones também são armas contra a ocupação
Os vídeos com o MC Abul chamam atenção, também, porque ele parece ser muito mais novo do que os 15 anos divulgados na mídia. E, em muitos deles, é mesmo, já que foram gravados em 2020, quando, aos 12 anos, o jovem MC explodiu nas redes sociais, com 5 milhões de visualizações em quatro dias.
O motivo de tanto sucesso? Narrar, de forma nua e crua, a realidade em que ele vive. “Estou exausto / Ontem à noite, não consegui dormir / E quando dormi, pude ouvir bombas em meus sonhos / Situação de pesadelo / Como eles podem ser tão malignos? / Fazendo mártires de crianças e pessoas inocentes (…) / Eu quero liberdade para a população / Dois milhões de prisioneiros vivendo neste local / Gritando contra a parede, mas nada está mudando / Essa é a vida sob uma ocupação” dispara o garoto em alguns dos verso de “Shouting at the wall”.
No dia 10 de outubro, quando o vídeo voltou a viralizar mundo afora, Abdul deu uma entrevista, falando dos EUA, onde estava se apresentando quando os ataques iniciaram, e destacando que sua família é mais uma dentre os milhões que, hoje vagam pelos escombros de Gaza, sem casas, água ou comida e sob bombardeios e ataques incessantes que já deixaram mais de 10 mil mortos (a maioria mulheres e crianças), não poupando sequer hospitais, escolas e campos de refugiados.
“Neste momento, estou vivendo meu sonho nos EUA. Mas, minha família em Gaza está vivendo um pesadelo (…). Eu tenho água limpa, eletricidade para carregar meu celular e segurança. Eles não têm. Por mais louco que pareça, eu gostaria de poder voltar para casa em Gaza para estar com eles (…). Mas, não posso. Só posso manter meu povo e meu país em meu coração, enquanto crio e me lembro de que o espírito da Palestina é a motivação não apenas para minha música, mas para tudo o que faço”, disse o MC ao portal “The National”, especializado na cobertura do Oriente Médio.
E é exatamente esta a postura da maioria dos rappers palestinos que, em meio ao luto e à dor, têm conseguido fazer a “poesia das ruas” contagiada pelos “ritmos das lutas”.
Repetindo o mesmo papel que cumpriu e cumpre nos bairros latinos e negros norte-americanos ou nas quebradas mundo afora, mas numa situação incomparável, MCs, DJs, “break dancers” e grafiteiros palestinos têm se apropriado se da escrita, da arte e do microfone para dar vazão a seus sonhos e, principalmente, ao grito há muito entalado no peito e na garganta.
E tem sido assim há uns 30 anos, quando surgiram os primeiros raps cantados em árabe e refletindo temas locais. Primeiro, no Norte da África (Marrocos e Argélia, em particular), depois por todos os cantos do chamado Mundo Árabe.
“O Hip Hop estilingue”
O intertítulo acima é também o título mais do que apropriado de um excelente documentário sobre o cenário Hip Hop nos territórios palestinos, “Slingshot Hip Hop”, dirigido pela síria-palestina, radicada nos EUA, Jackie Salloum e que serve como um fantástico ponto de partida para conhecer essa história. Contudo, pra começar, prefiro voltar no tempo.
Desde quando a produção de norte-americanos começou a se popularizar nos bairros palestinos, ainda nos anos 1980, o Hip Hop que brotou e se desenvolveu em Gaza, na Cisjordânia, dentre os árabes vivendo nos territórios ocupados por Israel, nos campos de refugiados ou dentre os que estão espalhados pelo mundo, adquiriu formas próprias, até mesmo por carregar uma pegada que tem a ver com suas tradições artístico-culturais e étnicas.
Na mescla que foi dando origem ao movimento, destacam-se, por exemplo, o “zajal” (ou “grito”), uma espécie de poesia cantada remanescente das primeiras comunidades que viveram na Península Árabe; o “mawal”, um tipo de música de “lamento”, cujos versos são cantados em um ritmo vagaroso e sentimental; e o “saj’”, um estilo de leitura pausada e cadenciada, utilizada principalmente para os textos sagrados, como o Alcorão, ou a literatura mítica, como “As mil e uma noites”.
Para se ter uma ideia de como estas influências foram relidas pelo rap, vejam, aí, uma montagem feita pelo DJ libanês Gaby Ghazal, a partir de um tradicional “zajal”, e, também, um exemplo do “mawal”. Além disso, às batidas eletrônicas e à percussão de origem afro, foram adicionadas os ritmos percussivos e instrumentos regionais, com destaque para os tambores de mão e alguns instrumentos de corda.
Foi desse rico caldo cultural que a juventude palestina tirou os ingredientes para criar um potente e belo jeito de fazer “rap”. Um Hip Hop que segundo a pesquisadora Sunaina Maira, da Universidade da Califórnia (EUA), precisa ser entendido como parte de uma “longa tradição de música árabe revolucionária e ‘underground’ [dos subterrâneos da sociedade] e de canções políticas que apoiaram a resistência palestiniana”, como ela escreveu no artigo “Hip Hop Palestino: um movimento transnacional da juventude”, de 2008.
Transnacional dentro de sua própria terra, graças à lógica colonial de Israel. Por isso mesmo, em “Slingshot Hip Hop” um dos temas mais recorrentes é a tentativa de encontro (muitas vezes frustrada) entre os “Palestinos de 48” (ou seja, cerca de 1,5 milhão que vive nos territórios ocupados durante a chamada “catástrofe”, ou Nakba, em 1948), os “de 67” (quando Israel tomou de assalto a Península do Sinai, a Cisjordânia, Gaza, Jerusalém Oriental e as colinas de Golã) e, também, os que foram atingidos pela diáspora forçada.
Inquestionável pioneiro nesta história, o DAM (criado em meados dos 1990 e sobre o qual irei falar mais no próximo artigo) é exemplar neste sentido, em músicas como “Mali Huriye” (“Eu não tenho liberdade”, veja o vídeo aqui), que versa não só sobre a explosão das barreiras como também dos acordos e traições que têm prolongado a dor dos palestinos.
“Estamos assim há mais de 50 anos / Vivendo como prisioneiros atrás das grades dos parágrafos / De acordos que não mudam nada / Não vimos nenhuma luz, e se espiarmos por entre as grades (…) / Em todo lugar que vou, vejo fronteiras, aprisionando a humanidade / Por que não posso ser livre como as outras crianças deste mundo? / Queremos uma geração furiosa / Para arar o céu, para explodir a história / Para explodir nossos pensamentos (…) / Que não se dobra / Queremos uma geração de gigantes”, dizem os versos iniciais e finais.
No decorrer dos artigos, também iremos ver que este é o mesmo “espírito” da maioria dos demais grupos, como o Arabeyat e MWR, quem têm origem em territórios hoje pertencentes a Israel; o Ramallah Underground e Boikutt, que têm raízes na Cisjordânia; o PR (Palestine Rapperz) e MC Abdoul, localizados em Gaza; além de vários grupos e músicos espalhados pelo mundo.
Há, evidentemente, muita diversidade entre eles. Mas, também, muito em comum. A começar pelo fato de que os versos ritmados que brotam desta juventude são carregados de História. E não de qualquer “história”. Uma História cujos capítulos, há décadas, são mutilados e manchados por dores e sofrimentos, por muros, sangue e mortes.
Mas, também, uma história escrita com atos heroicos de rebeldia, lutas constantes e poderosos levantes. E nada disso passou desapercebido dos rappers palestinos. E essa é, talvez, a grande força do Hip Hop de lá: manter-se conectado com suas tradições ancestrais para compor crônicas e verdadeiras epopeias sobre a vida e as lutas de seu povo. É isso que veremos no próximo artigo.