Colunas

Caso Vaneza Lobão: a PM do Rio é uma corporação hostil a mulheres, LGBTIs e a quem combate as milícias

Na passada sexta dia 24 de Novembro, véspera do dia internacional de combate à violência contra as mulheres, Vaneza Lobão, cabo da PMERJ, mulher, lésbica, foi assasinada a tiros de fuzil na porta de casa, no bairro de Santa Cruz, por um grupo de criminosos encapuzados.

Maria Costa, médica do SUS

28 de novembro de 2023
star5 (2 avaliações)
Policiais militares do Rio. Foto: Tânia Rego/ Agência Brasil

Logo surgiram as suspeitas de que a execução tivesse como autores grupos milicianos. Não só pelo modus operandi típico desses grupos mas porque Vaneza estava lotada na 8ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM), uma das delegacias da Corregedoria da PMERJ. Uma das atividades centrais da corregedoria, atualmente, é investigar a participação de policiais tanto nas milícias quanto no jogo do bicho. As duas principais linha de investigação, por enquanto, são: retaliação dos criminosos por conta do trabalho realizado pela policial na corregedoria ou o fato de milicianos suspeitarem que Vaneza estaria passando à corporação informações sobre a movimentação desses grupos criminosos na localidade onde vivia. Vaneza rompeu várias barreiras impostas a mulheres lésbicas ao ingressar numa corporação como a PM, concluiu com nota 10 um curso de qualificação para cabos da PM —só 45 dos quase 6 mil participantes atingiram a pontuação máxima, foi condecorada, mas não sobreviveu à atuação dos grupos paramilitares no Rio.

As corporações policiais são hostis à presença de mulheres e LGBTIs

A polícia militar é a única carreira de funcionários públicos em que a proporção de homens é mais de 7 vezes superior à de mulheres: 88% são homens e 12% mulheres. Isso não é só resultado do machismo na instituição, as mulheres são literalmente barradas de entrar na PM. Nos concursos as vagas para mulheres são normalmente limitadas a 10%, no melhor dos casos 30% do número total de vagas. É uma espécie de cota ao contrário. Recentemente o ministro do STF, Cristiano Zanin, aceitou o pedido da Procuradoria Geral da República e considerou este limite inconstitucional, e determinou que os concursos fossem reabertos permitindo às mulheres concorrer ao número pleno de vagas.

Na contramão dessa decisão o governo Lula, incluindo o atual Ministro da Justiça e candidato a vaga no STF, Flávio Dino, deram aval à nova Lei Orgânica da Policia Militar, uma das principais bandeiras da bancada da bala. O PL 3045/2022 na prática limita a entrada de mulheres na corporação ao determinar para elas um limite de vagas e simultaneamente dizer que só na área da saúde as mulheres concorrem à totalidade das vagas:

6º Fica assegurado, no mínimo, o preenchimento do percentual de 20% (vinte por cento) das vagas nos concursos públicos por candidatas do sexo feminino, na forma da lei do ente federado, observado que, na área de saúde, as candidatas, além do percentual mínimo, concorrem à totalidade das vagas.

Para além das limitações no acesso as mulheres convivem diariamente com um ambiente hostil à sua presença. Há inúmeras denúncias de assédio e comportamentos misóginos por parte dos colegas de patente e de superiores. Muitas relatam maior dificuldade para verem aprovadas solicitações para estudar, ou integrar posições superiores. Vaneza, por exemplo, apesar de ter concluído um curso de inteligência da PM em 2018 permaneceu atuando em batalhões convencionais até 2022.

Se a PM é hostil para mulheres ainda mais é para LGBTIs. Segundo o delegado Anderson Cavichioli, presidente da Renosp (Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública – LGBTI+), o cotidiano dos LGBTIs nas corporações policiais é de assédio e perseguição:

Dizer-se publicamente LGBTQIA+ significa retaliação, que você vai ser preterido, que a promoção não sai, escalas abusivas. Nós temos vários episódios. Não sabemos qual o tamanho da população LGBTQIA+ dentro das corporações porque muitas pessoas não se assumem para se proteger. A dinâmica é manter a situação em silêncio para não ser prejudicado”

Claudio Castro determina celeridade na investigação mas na prática seu governo protege os policiais corruptos

O governador se prontificou a publicar uma nota no X (Twitter) lamentando a morte da PM Vaneza, e dizendo que solicitou uma resposta rápida e dura.

Em todas as recentes declarações sobre milícias o governador tem feito questão de ocultar um fato, o que distingue as milícias dos outros grupos criminosos é que estas têm em sua composição funcionários do Estado, particularmente ligados à segurança (policiais militares, civis, bombeiros aposentados ou da ativa, funcionários da justiça, do ministério público, do legislativo e do executivo). A sua presença na milícia é fundamental, mesmo que não sejam os “chefes”, pois garantem a paz e uma maior liberdade para estabelecer os seus negócios.

No entanto os governos de que Claudio Castro fez parte, como governador ou como vice foram os que menos expulsaram PMs por crimes como envolvimento com milícia, extorsão, roubo ou receptação ilegal. Entre 2019 e o início de 2023 foram expulsos 271 policiais, enquanto só em 2018 foram expulsos 312.

Essa diminuição de PMs expulsos não reflete uma diminuição nas práticas de crimes por membros da polícia. Segundo dados do próprio Instituto de Segurança Pública (ISP) do estado do Rio os casos de extorsão atingiram o maior número desde 2003, quando começou a série histórica, de Janeiro a Outubro deste ano, foram registrados 1.796 casos — em média, um a cada quatro horas. A zona Oeste, onde vivia Vaneza, concentra um terço dos casos.

Como se não bastasse Claudio Castro mudou uma lei para garantir que Marcus Amim, que não tinha tempo suficiente como delegado da policia civil, pudesse ser nomeado novo secretário da polícia civil do Rio. O nome de Amim é fruto da influência de um deputado reconhecidamente ligado às milícias de Belford Roxo, Márcio Canela. Canela, juntamente com Daniela do Waguinho  (ex-ministra do Turismo) foram abertamente apoiados por milicianos da Baixada, o ex-PM Juracy Alves Prudêncio, o Jura. Para saber sobre o envolvimento de Daniela do Waguinho e Canela com as milícias de Belford Roxo Leia Aqui

Desmilitarizar e “desmilicianizar” as policias

O combate ao machismo, à LGBTIfobia e à corrupção e degeneração miliciana das policias militares passa pela sua desmilitarização. Não é a única medida mas é um passo fundamental. A estrutura militar é norteada pelo principio da guerra ao inimigo interno, e incorpora a opressão como forma de dominação das patentes superiores em relação às patentes mais baixas. A militarização da policia fomenta o machismo, a LGBTIfobia e o racismo.

A função da polícia deveria ser garantir a segurança dos cidadãos, e não entrar em guerra com uma parte deles (a população negra e pobre em especial). Para isso não há necessidade de uma policia militarizada mas de uma Polícia Civil Unificada nacional, com controle dos governos, por um lado, e da população organizada em conselhos por outro. Uma policia com um setor investigativo e outro setor de policiamento preventivo, “ostensivo”. A carreira da policia deve ser única, sem carreira diferenciada para as altas patentes. Soldados e agentes deverão ser contratados por concurso público, com carreira única, ou seja, os oficiais devem vir da base. O concurso deve ter um mínimo de 50% de vagas para mulheres, sem qualquer limite máximo, e deve incorporar também cotas para negros e LGBTIs.

Por outro lado é urgente uma investigação verdadeiramente transparente, sob controlo da população organizada em conselhos democraticamente eleitos, a toda a estrutura das policias de modo a revelar todos os que estiverem envolvidos em corrupção, extorsão, milícias, tortura, execuções e chacinas. Todos os envolvidos devem ser expulsos da policia e duramente punidos e julgados.

Mais textos de Maria Costa