Sobre a aprovação do PT às alianças com PL, em 2024. Ou… Como narrativas ficcionais podem se transformar em desastres reais
Na segunda, dia 28, o Diretório Nacional do PT aprovou uma resolução que permite que o partido do presidente Lula se coligue com o Partido Liberal (sim, é isso mesmo… o mesmíssimo PL que tem Bolsonaro como Presidente de Honra) nas eleições municipais de 2024.
A votação foi uma vitória da corrente Construindo um Novo Brasil (CNB), que reúne os principais nomes do petismo, a começar pelo próprio Lula e a presidente do partido Gleisi Hoffman, e apresentou uma resolução contrária à tese defendida por Valter Pomar (da Articulação de Esquerda) e outras correntes minoritárias, que proibia que candidatos petistas apoiassem ou fossem apoiados por integrantes do PL nas próximas eleições.
Dizer que a decisão é um vergonhoso escândalo seria muitíssimo pouco. Mas, o pior é que isto nem é tudo. A resolução aprovada ainda abusa do cinismo e da hipocrisia já que, ao mesmo tempo, veta alianças com “candidatos e candidatas identificados com o projeto bolsonarista”.
Deu pra entender? Difícil, né? E seria até impossível, caso não estivéssemos falando de um partido que não mede esforços (inclusive na distorção da lógica) para justificar seu projeto de conciliação de classes e cuja disposição para governar com e para a burguesia há muito ultrapassou todos os limites.
Tudo em nome da “narrativa da governabilidade”
Exemplo disto é a defesa do indefensável feita por outro notável membro da CNB, o deputado federal e Secretário de Comunicação do partido Jilmar Tatto. “Se um candidato a prefeito é ligado a um deputado que tem votado conosco (no Congresso), não vamos apoiar só por estar filiado ao PL? Ainda mais considerando que, em casos assim, é possível ter um bolsonarista raiz se candidatando contra esse cara. Se ele estiver com Lula para 2026, temos que pensar no futuro, não no passado”, declarou Tatto, em entrevista ao jornal “O Globo”, em 31 de agosto.
Ou seja, em nome da tal “governabilidade” e da manutenção do PT no poder, a regra é simples: vale tudo. A começar por não tirar lições do passado e passando, até mesmo, pela criação da esdrúxula categoria “bolsonarista raiz”, que convenhamos, na cabeça de Tatto deve se contrapor a algo como “bolsonarista flor-que-se-cheire” ou algo por aí…
E, aqui, antes de continuar, cabe um “parêntese” sobre um tema que permeia decisões como esta do PT. Um dos maiores desserviços e das coisas mais irritantes decorrentes das teorias pós-modernas é a popularização do termo “narrativa”, como substituto da análise histórica e até mesmo dos fatos e eventos concretos da realidade.
Por isso mesmo, não pode causar surpresa que o petismo e os reformistas em geral (mas, também, setores burgueses) gostem tanto do termo, já que, há muito, todos eles abraçaram o método de substituir o fato pela ficção para justificar tanto suas análises quanto suas políticas.
E, aliás, cabe lembrar, mesmo que brevemente, principalmente para aqueles e aquelas que incorporaram o termo sem muito critério, que a própria ideia de “narrativa” é absolutamente antimarxista, já que é fiel à essência da pós-modernidade: a negação da materialidade da História e da relação dialética entre o “todo” e suas “partes”.
Exemplo cabal é a tal “narrativa do golpe” (contra Dilma), que está na raiz do projeto que levou à construção da Frente Ampla e à política de concessões sem limites a uma tal “burguesia progressista” em defesa de outra ficção: o Estado Democrático de Direito. E, de lá pra cá, a coisa só piorou. E perigosamente.
Fico cá imaginando quantas vezes o termo não deve ter sido usado nos discursos (a favor e contra) a tese das alianças com a “banda-saudável” do bolsonarismo. Possivelmente tantas quantas temos ouvido outra ainda mais absurda e, apesar de semelhante, bem mais perigosa na atual conjuntura: a “narrativa” de que o governo Lula é único capaz de barrar a ultradireita.
“Narrativas” podem soar como contos-de-fada, mas é fácil se transformarem em filmes de terror
Mesmo com as elaborações mirabolantes e os malabarismos analíticos e políticos do próprio PT, como também dos setores majoritários do PSOL e outros partidos (União Popular, PCB etc.) que apoiam o governo (com mais ou menos críticas) não faltam provas de que isto não passa de uma “narrativa”.
Primeiro, uma “narrativa” que se insere naquele que se transformou no único “livro” do reformismo: a via eleitoral. Assim como durante o processo de luta pelo “Fora Bolsonaro” estes setores rasgaram todas páginas e capítulos inteiros da luta de classes, recusando-se a engrossar os movimentos nas ruas, para desviá-los para o processo eleitoral, hoje, nem sequer passa pela cabeça deles se apoiar nas mobilizações e nas lutas para varrer para o lixo da História tanto a “banda podre” quando o suposto setor “saudável” e amigável do Bolsonarismo.
Pelo contrário. Agora, deram um passo adiante (ou, melhor, mais à direita), com a tese “genial” de se unir ao bolsonarismo para derrotar o bolsonarismo. E, infelizmente, as coisas deixam de ser cômicas quando são pura e simplesmente evidências de uma tragédia anunciada. Algo que o PT vem construindo como um conto-de-fadas, embalado pela cantinela da conciliação de classes, mas cujo final pode se transformar num filme de terror.
Em um editorial publicado no “Opinião Socialista”, em 9 de agosto (“Quem faz o jogo da direita”), lembramos que “o setor que vem implementando medidas que favorecem a burguesia, e não os trabalhadores e trabalhadoras, é próprio PT”, já que “não é que o PT esteja apresentando propostas boas aos trabalhadores e elas são derrotadas pela direita; mas, sim, é ele próprio que apresenta medidas que agradam a direita”.
Exemplos não faltam. O Arcabouço Fiscal foi elaborado pelo Ministro Fernand Haddad, e não os “conservadores de direita” assentados no governo, e já se refletiu nos cortes de verbas para a Educação e a Saúde.
O mesmo pode ser dito sobre a Reforma Tributária (cuja votação favorável de um quinto dos parlamentares do PL, diga-se de passagem, foi usada como argumento pró-aliança com os bolsonarista) ou, ainda, sobre a nada discreta omissão diante do Marco Temporal, acompanhada de uma descarada defesa da exploração do petróleo na Amazônia.
O que dizer, então, da indicação de Cristiano Zanin para o Supremo Tribunal Federal? Ou será que Lula desconhecia as posições anti-LGBTI+, antiproibicionista e antipovo do sujeito que ele indicou para o Supremo Tribunal Federal, como discutimos no artigo Zanin: o ministro terrivelmente reacionário escolhido por Lula?
Como também explicar o genocídio negro na Bahia e o brutal assassinato de Mãe Bernadete a não ser criando “narrativas” asquerosas, como a divulgada pelo governador petista do estado ao levantar a hipótese de que o crime tinha a ver com a disputa entre facções criminosas? E o que dizer, então, dos constantes e crescentes acordos e concessões à cúpula das Forças Armadas?
Nem bolsonaristas nem ilusórias narrativas. Precisamos de uma oposição de esquerda com independência de classe
O problema é que “narrativa atrás de narrativa”, o PT e seus aliados vão dando cada vez mais corda e munição para a burguesia; seja a que eles consideram “progressiva”, seja o Centrão, sejam os conservadores, fundamentalistas e reacionários que já estão no Planalto e governos estaduais e municipais, sejam os bolsonaristas aos quais irão se aliar em 2024.
E o que esperar disto? Primeiro, não causará espanto se eles próprios se desmoralizarem diante dos setores que historicamente o apoiam. E não é uma “narrativa” que coloca esta hipótese como possível. É a História. Pois, queiram admitir ou não, foi isto o que aconteceu com Dilma. Ou, ainda pior, que sejam os trabalhadores e trabalhadoras, a juventude, o povo negro, as LGBTI+, as mulheres, os indígenas e quilombolas, os mais pobres e periféricos que se desmoralizem, ao se perceberem traídos.
E, infelizmente, são fatos como estes, e não supostas “narrativas”, que historicamente antecedem a emergência e fortalecimento da ultradireita. Principalmente quando aqueles que deveriam combatê-la se confundem com ela.
Por isso mesmo, dizer que alianças com o PL são diferentes de dar as mãos para o bolsonarismo é mais do que uma piada de péssimo gosto ou puro exercício de cinismo e hipocrisia. É inaceitável. E mais um exemplo de que o único caminho que podemos seguir é o da construção de uma oposição de esquerda a este governo. Não só para, de fato, destruir o bolsonarismo, mas também, através da ação direta e da independência de classe, construir a única História que pode nos tirar desta barbárie: a luta pelo socialismo.