Tina Turner, Mad Max e a Amazônia: Por que não precisamos de heróis?
Otávio de Aranha, de Belém (PA)
Nós não precisamos de outro herói
Nós não precisamos saber o caminho de casa
Tudo o que queremos é uma vida além
Da Cúpula do Trovão
Na Amazônia paraense, discute-se o megaempreendimento da Petrobrás chamado “Margem Equatorial”, que prevê a exploração petrolífera próxima à bacia da Foz do Amazonas, numa faixa litorânea que vai do Amapá ao Rio Grande do Norte. Enquanto ambientalistas discutem os impactos negativos deste empreendimento para a região, os defensores do projeto argumentam que ele trará mais “progresso” e “desenvolvimento”. A pergunta que fazemos é: será que sob o modo de produção capitalista, a continuidade do uso de combustíveis fósseis como fonte energética principal realmente trará mais progresso e desenvolvimento à humanidade?
Há quase quarenta anos atrás, a questão já fora tratada brilhantemente pelo diretor e roteirista George Miller, em 1985, com o filme “Mad Max: além da cúpula do trovão” (não confundir com “Mad Max: estrada da fúria”, de 2015), terceira película da franquia “Mad Max”, iniciada em 1979, que havia lançado ao estrelato um jovem e desconhecido ator chamado Mel Gibson.
Neste terceiro filme, além do retorno de Max Rockatansky, como o andarilho das estradas de um mundo pós-apocalíptico, temos a participação icônica de Tina Turner, como sua principal antagonista. “Aunty Entity” ou simplesmente “Titia”, comanda a cidade de Bartertown, uma espécie de centro comercial onde tudo pode ser trocado desde que ambas as partes se favoreçam. O escambo futurístico inclui de tudo, desde algumas horas com mulheres até a encomenda de assassinato, disfarçada nas regras peculiares da Thunderdome ou, como ficou conhecido em língua portuguesa, “Cúpula do Trovão”.
O mundo distópico de Mad Max
Para George Miller, o futuro que nos aguarda é representado por um retrocesso tecnológico, ambiental, econômico e social sem tamanho. A exploração desenfreada levou ao esgotamento dos recursos naturais da Terra, no que resultou em guerras e rebeliões que foram incapazes de superar as relações sociais e o modo de produção em vigor. Com isso, a humanidade de conjunto decaiu ao estágio de barbárie social. Os poucos sobreviventes enfrentam gangues predatórias que disputam os parcos recursos energéticos ainda existentes num cenário desértico e desolador.
Neste mundo futurista, em meio a escassez e solidão de uma terra devastada, eis que surge o brilho artificial de uma “grande” proto-cidade, Bartertown, movido integralmente a metano, produzido com esterco de porco na parte “baixa” da cidade, ou seja, no subsolo. Enquanto a “cidade baixa” é comandada pela dupla BlasterMaster, a “cidade alta” é dirigida por “Titia”. A rivalidade entre os dois sobre quem governa é representada na cena em que Master provoca um blackout energético, seguida da exigência do reconhecimento público e forçado de Titia: “MasterBlaster dirige Bartertown”.
É interessante observar a simbologia do deserto como cenário em plano aberto, oposto a rica fauna e diversidade biológica de um ecossistema como a Amazônia. A cidade, por sua vez, é um seco aglomerado de pessoas e mercadorias. Os animais mostrados ali, como camelos e porcos, servem apenas como ferramentas de produção ou locomoção. Distante da cidade e diferente da paleta monocromática de cor parda, estão os “órfãos”, crianças e jovens que tentam lembrar de um passado há muito esquecido. Na localidade onde se encontram, eles têm água como fonte natural em abundância e uma certa vegetação úmida, o que contrasta intencionalmente com o deserto.
A Cúpula do Trovão
O andarilho chega na cidade para reaver seus pertences roubados, quando é contratado por “Titia” para assassinar MasterBlaster. A tarefa parece ser simples, mas torna-se quase mortal, pois o serviço deve ser feito de forma que não deixe suspeitas e o jeito de fazer isso é desafiar MasterBlaster para a Cúpula do Trovão.
Na Cúpula, as regras parecem “justas”: trancados com diversas armas à disposição, a única regra é “dois homens entram, um homem sai!”. No fim, o “homem sem nome” (em homenagem a um dos personagens de faroeste de Clint Eastwood) leva a melhor, mas não finaliza o seu contrato, pois percebe que o gigante de músculos coberto parcialmente de ferro, trata-se, na verdade, de um deficiente mental com traços infanto-juvenis.
Assim, em meio a selvageria da Cúpula, Max paralisa e expressa uma dose de humanidade, poupando o seu adversário. Lembramos que no primeiro filme de “Mad Max”, o personagem de Mel Gibson possui um sujeito com retardo mental, de nome Ben, entre seus familiares. É interessante notar como George Miller incorpora, ainda que de passagem, a questão da deficiência e o tema da inclusão em sua obra (o que será melhor desenvolvido em “Mad Max: estrada da fúria”, com a personagem Imperatriz Furiosa), pois além de Blaster possuir um corpo avantajado numa mentalidade infantil, Master é um engenheiro que possui nanismo e juntos conformam uma unidade temerosa até mesmo para os planos de governabilidade de “Titia”.
Tina Turner como Aunty Entity
Tina Turner está memorial neste personagem. Sua presença marcante e estonteante demarca uma das vilãs mais enigmáticas e complexas produzidas até aquele momento. Muito diferente dos sádicos Toecutter e Lord Humungus das versões anteriores, “Titia”, além de elegante e bonita, não é má ou vingativa, seu único propósito é o desenvolvimento e o progresso de Bartertown. Em nome do “progresso” e do “futuro da cidade”, ela passará por cima da família (como é o caso de Master) e até das leis que ela mesmo criou: “Não fui eu quem criei as leis? Acham que eu não conheço as leis da Cúpula do Trovão?”.
Seu caráter burguês, entretanto, revela-se com o luxo de sua morada, uma enorme tenda montada bem acima do chão, com direito a água não radioativa, frutas a vontade e até música ao vivo. A princípio, ela é apresentada como vítima, uma mulher oprimida pela poder de Master sobre a produção de energia, o que se mostra verdadeiro, contudo, como qualquer burguês “progressista”, o privilégio de seu modo de vida se sustenta sobre o trabalho mega explorado e até mesmo escravo, da parte baixa de Bartertown.
A “rainha do rock”, como já era conhecida naquele tempo, emplacou um dos maiores sucessos de sua carreira, “We Don’t Need Another Hero (Thunderdome)”. A canção ficou em primeiro lugar naquele ano em vários países, como Austrália, Canadá, Alemanha, Espanha e Suíça, enquanto nos Estados Unidos e diversos outros foi a segunda música mais ouvida. Composta por Graham Lyle e Terry Britten, a canção foi indicada ao Globo de Ouro de “Melhor Canção Original” e ao Grammy de “Melhor Performance Vocal Pop Feminina”.
Quem são nossos heróis?
“Mad Max: além da cúpula do trovão” é um filme de ação que segue o clássico rito da jornada do herói: seu protagonista, após passar pela queda e ascensão, tem um desfecho digno, com o autossacrifício e a redenção. A história posterior, agora sim, “Estrada da fúria”, talvez tenha tido menos interferência da produtora e, portanto, mais liberdade criativa de George Miller, pois além de contar com uma protagonista mulher (Imperatriz Furiosa, interpretada por Charlize Theron) e passar Max para o personagem secundário, questiona justamente a existência de “heróis”, tema da canção interpretada por Tina Turner.
Voltando a 2023 e olhando de perto para a questão amazônida, no qual os assassinatos de ativistas, como Bruno Pereira e o jornalista Dom Philips; de indígenas, como Lúcio Tembé, cacique da aldeia Turé-Marikita, em Tomé-Açu, Pará; os conflitos de terras; as invasões e ataques do garimpo ilegal; a atuação de madeireiras e mineradoras legais que exportam riquezas e deixam miséria e fome na região; além da completa ausência do Estado em serviços básicos, como saúde, educação e saneamento, coloca-nos num cenário que não parece tão distante da distopia fictícia de “Mad Max”.
Quando da instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA), o discurso de “progresso” e “desenvolvimento” também foram usados para convencer a população local, mas o resultado foi um verdadeiro caos social, como a destruição do habitat e do modo de vida de várias aldeias e ribeirinhos. O “progresso” está a ver navios até hoje, como no assentamento Doroth Stang, localizado no lote 96, em Anapu, as margens da Rodovia Transamazônica.
Obviamente que os revolucionários, no cinema ou na sociedade, não estão contra o progresso, o avanço tecnológico ou o desenvolvimento social, muito pelo contrário. O problema é que o modo de produção capitalista e suas relações de produção têm como atividade-fim, quando da exploração de recursos naturais, não o desenvolvimento da humanidade, mas a obtenção de grandes lucros privados, deixando os danos e as consequências no local. Foi assim com Belo Monte, no Pará; foi assim com a Vale, em Brumadinho e; poderá ser não muito diferente com a “Margem Equatorial”, que teve, recentemente, a licença de estudo negada pelo IBAMA, o que provocou revolta em senadores e deputados da frente ampla do governo Lula-Alckimim.
Quando governantes, tais quais Lula, Helder Barbalho, governador do Pará ou mesmo Edmilson Rodrigues, que governa a capital paraense, discursam sobre “progresso” e “desenvolvimento”, estão meramente a reproduzir o slogan da fachada da proto-cidade de Bartertown, gravado em tábuas de madeira, onde se pode ler: “AJUDANDO A CONSTRUIR UM AMANHÃ MELHOR”.
Assim como no filme, trata-se de um engodo! Infelizmente, estes senhores não são nossos heróis! Nós, os de “baixo”, ou seja, os peões, os pescadores, os indígenas, os quilombolas, os povos da floresta e a juventude só podemos confiar em nossas próprias forças, em nossa luta pelo direito a existência, portanto, contra os megaprojetos do grande capital para a região, pois no amanhã, não queremos uma Cúpula do Trovão!
“E eu me pergunto quando
Nós vamos mudar
Vivendo sob o medo
Até que não reste nada mais”
(Tina Turner, 1939-2023).