Um abismo de “raça e classe”: Capitalismo, racismo e desigualdades sociais
O relatório lançado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), com dados de 2020 e 2021, comprova a existência de um abismo em nossa sociedade. Um abismo de “raça e classe” que faz com que absolutamente todos índices (da situação no mercado de trabalho à Educação, das condições de moradia à violência) sejam absurdamente desfavoráveis para negros e negras, quando comparados com os da população branca.
Sabemos que isto está longe de ser uma novidade, mas é preciso encarar estes números com muito mais do que indignação e repúdio. É preciso tratá-los com a seriedade que eles exigem e, acima de tudo, com o compromisso de lutar para acabar com uma situação que, literalmente, rouba uma perspectiva de futuro para o povo negro.
Um compromisso que, em pleno “Novembro Negro”, é necessário, inclusive, para que façamos justiça àqueles e àquelas que vieram antes de nós e, como Zumbi, Dandara e os quilombolas de Palmares, deram suas vidas lutando pela igualdade, a liberdade e a justiça que o capitalismo nunca poderá nos proporcionar.
Algo que, em nossa opinião, só poderá acontecer se adotarmos a mesma postura de nossos ancestrais: a rebeldia radical e intransigente contra a Casa-Grande, hoje habitada confortavelmente por banqueiros, empresários e representantes do agronegócio.
Exatamente por isso, foi muito importante derrotar, nas urnas, os herdeiros da Casa-Grande saudosos dos pelourinhos e porões da ditadura, como Bolsonaro e a extrema-direita (que, com certeza, ainda nos darão muito trabalho). Mas, nosso voto crítico em Lula se deveu, também, ao fato de que não acreditamos que seja possível combater e, muito menos, superar o racismo à sombra da Casa-Grande, governando em conciliação de classes com seus herdeiros, como fazem os representantes e apoiadores da Frente Ampla.
Para discutir isto, a partir do relatório do IBGE, produzimos três artigos. Neste, discutiremos as relações entre exploração capitalista e opressão racial. No próximo, iremos apresentar alguns elementos do Marxismo que nos ajudam a compreender e analisar esta relação. No decorrer deles, já apresentaremos alguns dados do relatório, mas será no terceiro artigo que eles serão desenvolvidos, para fazermos algumas conclusões.
Para começo de conversa: “pretos” e “pardos” são todos negros
Ainda antes de começarmos, cabe uma observação. O critério de “raça e cor” usado pelo Censo, ao dividir a população negra em pretos e “pardos”, ainda reflete os estragos feitos pela Teoria do Embraquecimento (que, no final dos anos 1800, estabeleceu a branquitude como “ideal” de civilização e humanidade) e, também, pelo mito da democracia racial, popularizado, na década de 1930, por Gilberto Freyre, que, para negar a existência do racismo, tentou nos dividir através do tom de pele.
Algo que precisa ser ressaltado porque essas teorias e ideologias racistas também ecoam entre nós, fazendo com que, por exemplo, apenas 9,1% da população se autodeclarem “preta”, enquanto 47% se vejam como “parda” (e 43%, brancos). Sintomas de um problema já discutido pelo antropólogo e militante negro Clóvis Moura, em “Sociologia do negro brasileiro” (1988): “o brasileiro foge da sua realidade étnica, da sua identidade, procurando, através de simbolismos de fuga, situar-se o mais próximo possível do modelo tido como superior”, ou seja, “a camada branca dominante” (pág. 62).
Exatamente por isso, para nós, o correto seria falar em 56,1% de negros e negras (ou pretos e pretas) e, por isso mesmo, sempre que possível, iremos apresentar os dados somando os “pretos” e “pardos” (como o próprio IBGE faz na totalização de algumas tabelas). E, para não causar confusões, quando fizermos isto, indicaremos com a palavra “soma”, entre parênteses, na frente dos dados.
Contudo, o IBGE não é o único motivo que nos obriga a fazer esta introdução. Há muito temos lutado pelo direito à autodeclaração, como parte da luta pela consciência e identidade racial e, também, porque concordamos com Octávio Ianni quando, em “Escravidão e racismo” (1978), ele discute que, ao darem as costas para o “ideal branquitude”, negros e negras também tomam “consciência da sua dupla alienação: como raça e como membro de uma classe”, o que impulsiona, de forma mais articulada e radical, sua consciência e lutas, tanto contra o racismo quanto o capitalismo.
Uma necessidade ainda maior nos dias de hoje, diante da postura ultra equivocada de setores dos movimentos negros, principalmente os influenciados pelas teses do “pós-modernismo” ou pelo que chamamos de “racialismo” (considerar raça como único critério determinante na análise e atuação sobre a realidade), que também adotam o tom de pele como critério, defendendo coisas como o “colorismo” e a “afroconveniência” (declarar-se negro/a apenas para ter acesso a políticas afirmativas, como as cotas).
É evidente que precisamos combater fraudes e casos de oportunismo, como os que ocorreram nas recentes eleições e, vez ou outra, se manifestam em relação às cotas. Contudo, consideramos um gigantesco erro adotar o critério do tom de pele contra aqueles e aquelas que, rompendo com o “ideal de branqueamento”, desejam assumir sua negritude e, ainda mais, impedir que os de pele “mais clara” tenham acesso às ações afirmativas pelas quais tanto lutamos ou participem de nossos movimentos e atividades, como muitas vezes os “racialistas” defendem.
Isto não é nada mais do que ressuscitar um critério que sempre jogou contra o povo negro, como também já foi discutido, desta vez pelo antropólogo congolês (residente no Brasil) Kabengele Munanga, que, em “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil” (2004), lembra que nos dividir pelo tom de pele significa reproduzir a “ideologia caracterizada, entre outros, pelo ideário do branqueamento”, que “roubou dos movimentos negros o ditado ‘a união faz a força’, ao dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de ambos” (p. 15).
Uma divisão que, além do mais, sequer está sintonizada com a realidade, até mesmo porque o capitalismo e, particularmente, suas forças de repressão, geralmente nos veem da mesmíssima forma: como negros e negras. Algo que os números da pesquisa inclusive evidenciam, já que “pardos” têm índices praticamente iguais (quando não piores) aos dos “pretos”.
Num mundo de super-ricos, ser negro é sinônimo de ser superpobre
Como afirmado no início, iremos apresentar a maioria dos dados no último artigo. Mas, para dar uma ideia do que estamos falando, vale citar alguns exemplos. Em 2021, brancos representavam 43,8% da força de trabalho (soma de ocupados e desocupados), os “pretos” eram 10,2% e os “pardos”, 45%. Contudo, somos mais de 60% dentre desocupados: 12% são “pretos”, 52% são “pardos”, contra 35.2% são brancos. Considerando-se o total da população, a taxa de desemprego, já extremamente alto (14%), também era diferente por raça-etnia: na população branca era 11,3%, enquanto atingia 16,3% dos negros (“soma”).
Além disso, registrávamos o já absurdo índice de 40,1% dos trabalhadores (com 14 anos ou mais) sobrevivendo na “informalidade”. E enquanto 32,7% dos brancos estavam nesta situação, 46,3% (“soma”) da população negra trabalhavam sem acesso a direitos e em condições precárias.
Consequentemente, como veremos depois, não é surpresa alguma que o levantamento também tenha constatado que o nível de pobreza da população negra é o dobro em relação aos brancos e que estes últimos recebam, em média, o dobro do salário pago a negros, tendo, consequentemente, muito mais acesso a bens duráveis (como geladeira, televisão etc.). Como também são completamente desproporcionais todos os dados referentes à Educação, condições de moradia e saneamento.
E, como síntese de tudo isto, a população negra está muito mais vulnerável à violência. Em 2020, por exemplo, a taxa de homicídios dentre os brancos era de 11,5 por 100 mil habitantes, enquanto dentre negros e negras era três vezes maior: 32,2/100 mil (“soma”).
Este abismo, diferentemente dos que existem no relevo do planeta, não são resultados de “incidentes” ou causas “naturais”. Foi escavado pelas garras de um sistema que promove desigualdades que separam, em primeiro lugar, o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras do punhado de super-ricos e bilionários que se apropriam das riquezas através de seus bancos, empresas e do agronegócio e, vale lembrar, ampliaram ainda mais suas fortunas durante a pandemia que, literalmente, jogou a maioria da humanidade para o fundo do poço.
Segundo a pesquisa “Desigualdade Mata”, publicada pela ONG Oxfam (baixe aqui), em janeiro de 2022, os 10 homens mais ricos do mundo mais que dobraram suas fortunas, de US$ 700 bilhões para US$ 1,5 trilhão (R$ 8 trilhões), durante os dois primeiros anos da pandemia de Covid-19, o que significa que ganharam nada menos que US$ 15 mil por segundo (ou seja, quase R$ 80 mil); enquanto a renda de 99% da humanidade caiu e mais de 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza.
Já no Brasil, desde que a pandemia foi declarada, em março de 2020, o país ganhou 10 novos bilionários. Agora, temos 55 deles, cuja riqueza aumentou em 30% (US$ 39,6 bilhões), sendo que os 20 bilionários no topo da lista têm mais riqueza (US$ 121 bilhões, ou R$ 643 bilhões) do que 128 milhões de brasileiros (60% da população).
O duplo papel das opressões no capitalismo: superexploração e divisão da classe operária
Esses números são exemplares de que a principal divisão existente na sociedade capitalista é a de “classe”. É a absurda concentração das riquezas nas mãos de um punhado de burgueses que mantém a maioria da humanidade na miséria.
Contudo, este mesmo sistema também transforma diferenças existentes na sociedade (de raça-etnia, orientação sexual, identidade de gênero, local de origem etc.) em desigualdades socioeconômicas e políticas que em muito contribuem para que a burguesia mantenha e amplie seus lucros, já que servem, ao mesmo tempo, para “justificar” a superexploração de um amplo setor da sociedade e dividir a classe trabalhadora, na tentativa de reduzir seu potencial de luta.
Algo que no caso de negros e negras atinge dimensões literalmente terríveis e proporcionais à profundidade do racismo no país que mais recebeu africanos e africanas escravizados, que foi o último a abolir a escravidão e cuja história, portanto, foi retalhada por longos e dolorosos 388 anos de escravidão, seguidos de apenas 134 anos de camadas tão estreitas e restritas de “liberdade, igualdade e justiça” que mal servem para encobrir as muitas feridas abertas.
Dados que, como sempre, até mesmo a “grande imprensa” tem apresentado com ares de indignação. Tratamento que, certamente, também será dado pelo governo eleito e muitos setores dos movimentos negros e sociais que o apoiam. Uma postura, sem dúvidas, bastante diferente da que Bolsonaro adotaria, já que, pra sua laia, tudo isto não passa de “mimimi”.
Mas, no entanto, apenas repúdio e discursos de solidariedade à população negra de forma alguma poderão reverter esta situação. “Não há capitalismo sem racismo”, já nos disse Malcolm X. Portanto, não há como destruí-lo sem que se trave uma luta sem tréguas contra aqueles que o alimentam e dele se beneficiam: os banqueiros, empresários, donos do agronegócio e seus aliados e representantes no cenário político.
Para combater o racismo é preciso derrubar a Casa-Grande
O fato é que nem mesmo muitos do que repudiam a realidade revelada pelo IBGE apontam deveria ser o centro do debate sobre os dados: as desigualdades acentuadas pelo racismo (assim como pelo machismo, a LGBTIfobia, a xenofobia etc.) só podem ser entendidas em função da divisão da sociedade em classes e, portanto, estão condicionadas à própria lógica do capitalismo e o primeiro e último objetivos da burguesia: a superexploração a serviço da manutenção e aumento de seus lucros.
Algo que pode ser exemplificado por aquilo que relatório revela sobre o impacto da combinação de racismo e machismo no rendimento médio dos trabalhadores. Em 2021, a renda média dos brasileiros com 14 anos ou mais era R$ 2.406. Contudo, ao separarmos a população por raça, a diferença é de cerca R$ 600, para acima e para abaixo, desta média. Brancos e brancas recebiam, em média, R$ 3.099. Negros e negras, R$ 1.804 (“soma”).
E quanto o machismo entra em jogo, a disparidade é ainda mais gritante. Homens brancos ganhavam ainda mais que a média nacional: R$ 3.435. Depois deles, vinham as mulheres brancas, com R$ 2.653 (já afetadas pelo machismo, mas também acima da média nacional); seguidas pelos os homens e mulheres negros (“soma”), ambos abaixo da média dos demais brasileiros: R$ 1.959 e R$ 1.567, respectivamente.
E quando a xenofobia é acrescentada à equação, a situação só pode ser qualificada como absurda. Em 2021, o maior rendimento médio do país era o dos homens brancos do Sudeste, com R$ 3.835; enquanto homens e mulheres negros nordestinos (“soma”) tinham os piores salários de todas regiões do Brasil: R$ 1.547 e R$ 1.309, respectivamente.
É evidente que além de lucrar enormemente com estas disparidades, a burguesia ainda consegue impor divisões no interior da classe trabalhadora. Por um lado, “convence” os brancos que eles/elas têm o “direito” de ganharem mais e viverem melhor, porque são “mais instruídos”, “mais preparados” e, inclusive, “mais semelhantes” com os que são vistos (nos meios de comunicação, livros didáticos etc.) como exemplos de sucesso.
E, ainda, são levados a acreditar que as piores condições de vida de negros e negras é simplesmente uma decorrência de sua “negritude”, basta lembrar alguns dos lamentáveis ditados populares, e racistas, que correm de boca em boca. Afinal, aqui, quando tudo vai muito mal, a “situação está preta”; dia de trabalho “é dia de branco”; nossas mulheres são “da cor do pecado”; negros comportados e bem educados são “negros de alma branca” e “negro parado é suspeito, correndo é ladrão”.
Por isso, inclusive, também não é um acaso, muito menos um “mimimi”, que negros e negras geralmente se percebam “inferiores” em relação aos brancos ou os vejam, todos, como opressores. Contudo, não há nada de correto ou “natural” nisto.
É preciso entender que tudo isto faz parte do projeto de dominação burguesa, como há muito é discutido pelo marxismo (o que veremos no próximo artigo). Também não é um acaso que estes ditados tenham sido forjados na época da escravidão, quando o capitalismo dava seus primeiros passos, ou no início de sua fase imperialista, no final dos anos 1800.
E também por isto, é mais do que uma ilusão vender a ideia de que poderemos destruir esta herança sem destruímos a Casa-Grande. É uma fraude. Afirmar que seja possível por um fim ao racismo de braços dados com os que só lucram (econômica e politicamente) com a opressão contraria não só a lógica quanto também a história do capitalismo. Exatamente por esta razão mais do que nunca é preciso resgatar as lições deixadas por Zumbi e Dandara. É preciso colocar a Casa-Grande abaixo.
É preciso nos aquilombarmos, para que possamos construir um mundo muito semelhante àquele construído pelos quilombolas, como exemplificado por um documento de 1677, escrito por Manuel Inojosa, um senhor de engenhos que enviou para Palmares um de seus capitães do mato, como espião: “Entre eles tudo é de todos, e nada é de ninguém, pois os frutos do que plantam e colhem, ou fabricam nas suas tendas, são obrigados a depositar às mãos do conselho, que reparte a cada um quanto requer seu sustento.”