Caso Rafael Ramos e o racismo no futebol: um debate sobre o sistema capitalista de opressão e exploração e seu reflexo no esporte
João Pedro Andreassy Castro, do Rebeldia e da Juventude do PSTU
No último sábado (14), no Estádio do Beira-Rio em Porto Alegre, Internacional e Corinthians se enfrentaram numa partida movimentada, que acabou ofuscada por um ato repulsivo. Aos 30 minutos do segundo tempo, durante uma disputa de bola, o jogo foi paralisado pela arbitragem, pois Edenilson, do Internacional, reclamou que teria sido chamado de “macaco” pelo lateral-direito corinthiano Rafael Ramos. O jogador do Corinthians chegou a ser preso em flagrante por injuria racial, mas o clube pagou a fiança de R$ 10 mil e com isso o atleta responderá em liberdade.
Um caso como esse dentro do segundo clube mais popular do Brasil não pode passar batido. Não é a primeira vez que o Corinthians, criado por operários no começo do século XX e considerado como o time do povo, teve um de seus jogadores envolvido em casos de racismo. Em 2020, o então lateral-esquerdo Danilo Avelar, teve imagens suas vazadas, num jogo online, chamando o jogador da equipe adversária de “filho de rapariga preta”. Danilo foi afastado e posteriormente dispensado da equipe, quando a veracidade das imagens foi comprovada.
A atitude exemplar tomada com Avelar não foi repetida com Ramos. O Corinthians pagou a fiança do jogador português e não dá sinais de um possível afastamento ou punição. Sequer uma declaração foi feita até o momento e, em que pese o suposto xingamento ainda esteja sendo analisada (as falas ainda não foram comprovadas e temos que seguir a regra da presunção de inocência para evitar julgamentos precipitados), a omissão diante dos fatos, vindo de um dos clubes mais populares do Brasil, é inadmissível.
Todo esse caso levanta a bola para tratarmos sobre o racismo e, consequentemente, os reflexos da sociedade capitalista dentro do esporte mais popular do planeta.
Futebol e Racismo
Criado por ingleses na metade final do século XIX, o futebol é sem dúvidas o esporte mais popular de todo o mundo. O esporte que chegou ao Brasil em 1895 nas mãos de Charles Miller, tem como suas maiores referências atletas negros, como Reinaldo, George Weah, Eusébio, Leônidas da Silva e é claro Pelé. O racismo explícito, porém, sempre foi, e ainda é, muito presente no futebol brasileiro. Segundo dados do Globoesporte.com, em 2019, 48% dos jogadores negros relataram terem sido vítimas de algum ato racista, sendo 92% no estádio, 6,3% na concentração do clube e 1,3% no hotel.
No entanto, apenas 12% afirmaram terem denunciado, ou seja, em mais de 8 em cada 10 casos, o racismo acaba sendo deixado de lado. Parte disso tem a ver com a impunidade, de acordo com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, apenas 10% de todos os casos de racismo denunciados por jogadores, comissão técnica ou torcida são punidos. Tal impunidade no futebol também é reflexo da impunidade praticada na sociedade.
No Brasil, casos de racismo são normalmente tratados como injúria racial. Para fazer uma comparação, se alguém é indiciado por crime de racismo (Lei 7.716/89) ela pode ser punida com até cinco anos de prisão e multa, sendo esse um crime inafiançável. Já no caso de indiciamento por injúria racial (Decreto-Lei 2.848/40), a pena varia de seis meses a um ano de prisão (normalmente convertida em cestas básicas) e multa, sendo um crime afiançável, como ocorreu com Rafael Ramos.
O artigo “Nem Crime, Nem Castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de atos de discriminação”, de Gislene Aparecida dos Santos, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, realizou uma análise de como casos de racismo, que compõe uma amostra de processos de São Paulo entre 2003 e 2011, foram percebidos pelo judiciário e pelas vítimas. De todos os processos analisados, a grande maioria foi tipificada no inquérito como injúria racial (com pena mais branda), representando 73% do total, enquanto apenas 15% como racismo, o restante se tratava de outros crimes como violência doméstica, ameaça, lesão corporal, entre outros.
No futebol não faltam exemplos como esse. Um dos casos de racismo mais emblemáticos do futebol brasileiro ocorreu em agosto de 2014 na Arena do Grêmio em Porto alegre. No jogo válido pela Copa do Brasil do mesmo ano, Grêmio e Santos se enfrentavam. Em estádio adversário, o goleiro do Santos à época, Aranha, recebeu vaias e cânticos racistas pelos torcedores gremistas. Um desses atos foi gravado por câmeras da Rede Globo, que flagraram a torcedora Patrícia Moreira chamando nitidamente o goleiro santista de “macaco”, causando uma enorme repercussão nacional.
O Grêmio, então mandante da partida, foi responsabilizado pelos atos da torcedora. Por 5×0, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva excluiu o time da Copa do Brasil e aplicou-lhe uma multa de R$ 50 mil. Já Patrícia, passado a repercussão inicial, conseguiu se livrar do processo de injúria racial movido contra ela e outros 3 torcedores. Um acordo proposto pelo juiz Marco Aurélio Xavier, de Porto Alegre (RS), deu-lhes a oportunidade de suspender o processo, desde que se apresentassem a uma delegacia de polícia uma hora antes de cada partida oficial do Grêmio, incluindo os jogos fora de casa, durante 10 meses.
A atitude rigorosa e correta da Justiça Desportiva frente ao Grêmio em 2014, por sua vez, está mais para exceção do que para regra e não se repetiu, por exemplo, no ano passado perante o Brusque, quando em agosto, numa partida contra o Londrina pela série B do campeonato brasileiro, o jogador Celsinho, do Londrina, que estava no banco de reservas, ouviu de um dirigente do Brusque, a seguinte frase: “vai cortar o cabelo, cachopa de abelha”.
Celsinho não se calou. Interrompeu o jogo, chamou a arbitragem. Júlio Antônio Peterman, autor da frase, foi identificado e testemunhas comprovaram as ofensas. A arbitragem relatou a apuração na súmula. Em setembro, o STJD puniu o Brusque com perda de três pontos no campeonato, multa de R$ 60 mil e afastamento do dirigente da função por 360 dias e pagamento de R$ 30 mil. Dois meses depois, em novembro, às vésperas do Dia da Consciência Negra, o STJD voltou atrás e devolveu os 3 pontos ao Brusque, o que ajudou o clube a escapar do rebaixamento.
Vale destacar que o patrocinador do Brusque é nada mais, nada menos que Luciano Hang, dono da Havan e apoiador fervoroso de Bolsonaro, cujas racismo é amplamente conhecido. Semana passada, aliás, o presidente voltou a repetir a frase racista proferida contra negros e quilombolas sobre o peso em “arrobas”. Devido à declaração anterior, Bolsonaro chegou a ser condenado pela Justiça de primeira instância. No entanto, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a acusação em 2018. É pouco provável que dessa vez seja punido.
Mais recentemente, em jogo válido pela Copa Libertadores da América, um torcedor da equipe argentina River Plate tacou uma banana aos torcedores do time brasileiro do Fortaleza (fazendo alusão ao animal macaco). A cena de racismo explícito foi gravada e publicada na internet, gerando mais uma vez repercussão e pressão pública para uma punição ao torcedor.
Apenas após a comoção (majoritariamente brasileira) a equipe do River Plate se pronunciou dizendo que iria aplicar uma suspensão de seis meses ao torcedor (que é sócio do clube) e um curso de conscientização sobre “as consequências da xenofobia”. Tal punição é tão ridícula que só não é pior que a da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) que nem chegou a se pronunciar sobre o caso. Esses atos constantes de racismo, cuja maioria nem chega a ter punição, nos dá um norte para concluirmos que o futebol não é lá tão democrático quanto a mídia burguesa tenta pintar.
Racismo e Capitalismo
Apesar de serem destaque em campo, nenhuma das 20 equipes da “Serie A” do Brasileirão conta com um treinador negro em comando de equipe. Ademais, dos 20 presidentes de clubes da primeira divisão, nenhum é negro. Nas funções operacionais a proporção se inverte, sendo que os negros representam 47,6% nessas posições. Tais dados demonstram que não existe tal dominância ou democracia racial no que se trata de posições de destaque dentro dos clubes de futebol brasileiro. Porém isso não se restringe ao futebol. Segundo o instituto Ethos, apenas 4% das 500 maiores empresas do Brasil têm presidentes negros.
Esse cenário de opressão racial é sustentado e promovido pelo sistema capitalista. O capitalismo se beneficia e promove as opressões como forma de dividir a classe trabalhadora para manter sua dominação e elevar os níveis de exploração até as últimas consequências. Uma dessas formas é por meio da desigualdade salarial e da pressão para o rebaixamento de salários. Segundo pesquisa feita pela Catho, negros recebem até 34% a menos do que trabalhadores brancos em todos os níveis hierárquicos e de escolaridade. Em média, o trabalhador negro recebe R$1.865, enquanto o restante da força de trabalho nacional recebe R$3.509.
Esse cenário de exploração se reflete também no futebol. Apesar dos melhores jogadores de futebol possuírem contratos de centenas de milhões de reais, o salário médio dos jogadores de futebol no Brasil, cuja maioria é negra, é bem diferente. 55% dos atletas profissionais recebem aproximadamente um salário-mínimo por mês, 33% recebem entre R$1.001 e R$5.000. E somente 12% recebem salários acima de R$5.001.
Juventude, raça e classe
A realidade do futebol brasileiro se mistura com a realidade da classe trabalhadora do nosso país, de sua maioria pobre, negra e jovem que tem de trabalhar para, muitas vezes, sustentar sua família e, para isso, tem que abdicar de estudo e lazer. Como já tratado no artigo intitulado “Não é sobre violência cotidiana, é sobre capitalismo”, 8 em cada 10 jovens com até 24 anos ocupados, estão em um emprego precário, mal remunerado e com jornadas excessivas de trabalho. Além disso, 4 em cada 10 estudantes acaba abandonando a sala de aula para manter seu sustento.
Para a maioria dos jogadores de futebol a realidade é exatamente a mesma. Segundo a Revista Quero, apenas 1,4% dos jogadores de futebol com 18 anos ou mais que tiveram contratos assinados, entre dezembro de 2018 e março de 2019, declararam terem cursado ensino superior. Esses dados são bem abaixo dos, ainda poucos, 18,1% dos jovens de 18 a 24 anos que estão matriculados no ensino superior e dos 17,4% das pessoas de 25 anos ou mais que concluíram um curso segundo dados do Semesp.
O sonho de ser um jogador de futebol famoso e a falsa esperança de vencer na vida é, na maioria das vezes, confrontada com a realidade de exploração e opressão desse sistema, que suga toda a juventude e energia dos trabalhadores durante suas longas jornadas de trabalho, não lhes dá tempo de lazer ou divertimento, e depois nos descarta quando acham que já não somos mais tão “produtivos”.
Pode-se perceber, portanto, como o futebol não é algo abstrato ou fora da sociedade, mas como tudo no sistema, mais um reflexo da opressão e decadência capitalista, opressão essa que é intensificada aos negros e jovens. Tudo que ocorre no futebol é reflexo do que ocorre na vida. Desde o racismo, até a posição brasileira de periferia capitalista na divisão mundial do trabalho, que faz com sejamos produtores de “matéria prima” para o mercado futebolístico e nossos jogadores, tão logo se destacam, sejam literalmente vendidos para clubes estrangeiros, principalmente da Europa, centro do futebol mundial.
Para uma verdadeira reestruturação no futebol, portanto, também é necessária uma reestruturação social, ou seja, o fim desse sistema capitalista, que oprime e explora e o substitua por outro tipo de sociedade, uma sociedade socialista, onde se conquiste a igualdade de fato, de raça e classe. Onde a classe trabalhadora faça suas regras e a juventude não tenha de escolher entre trabalhar e não estudar ou estudar e morrer de fome. E o futebol deixe de ser uma mercadoria e possa cumprir sua verdadeira missão, de ser fonte de alegria, paixão e diversão. Apenas com essas reestruturações social, é que poderemos ver na sociedade, e consequentemente no futebol como um reflexo da primeira, o fim do racismo e da opressão racial.
Isso não significa renunciar à luta contra o racismo, ou colocar a luta pela revolução socialista antes da luta pela igualdade racial, no futebol ou na sociedade. Pelo contrário, a luta contra o racismo e toda forma de opressão é fundamental, aqui e agora, e tem que ser considerada como parte da luta de classes. Pois cada conquista dos oprimidos e explorados nesse sistema fortalece nossa classe, que é também negra, feminina, LGBTI, etc. na luta contra a dominação do capital e rumo a essa transformação social.
Infelizmente, a classe trabalhadora está dividida pela opressão, e para que possa se unir na luta contra a dominação capitalista ela precisa se libertar de todo preconceito e ideologias de opressão, como o racismo, o machismo, a lgbtifobia, a xenofobia e levantar a bandeira da igualdade, contra a violência e pelos direitos dos oprimidos. É dessa forma que a luta contra o racismo tem que ser encarada.
Basta de racismo e impunidade
Como torcedor corinthiano me sinto na obrigação de me somar às milhares de vozes que estão denunciando e exigindo que, frente a mais esse ato de violência e racismo, o Corinthians honre sua tradição democrática e contra as injustiças sociais, que fez da Democracia Corinthiana um dos movimentos mais importantes do esporte brasileiro. Que afaste o jogador Rafael Ramos de seu elenco até que esse caso seja totalmente esclarecido e, caso a denúncia seja realmente comprovada, que ele tenha seu contrato imediatamente rompido.
Além disso, é preciso que as CBF e Conmebol passem a punir de forma severa todos os casos de racismo e/ou machismo, lgbtifobia, etc que acontecem nos estádios de futebol, tanto nos gramados quanto na arquibancada, também incentivando a denúncia desses atos tão subnotificados e demonstrando que violências como essa não serão tolerados e nem naturalizados, ajudando a criar um ambiente mais saudável para os jogadores e torcedores de todas as raças, nacionalidades, gênero e orientação sexual.