Internacional

Viva a Revolução Síria

Fábio Bosco, de São Paulo (SP)

20 de dezembro de 2024
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No dia 27 de novembro, uma aliança de milícias lideradas pelo Hayat Tahrir al-Sham (HTS) – leia mais, abaixo – partiu da província de Idlib em direção à cidade de Aleppo, no norte da Síria. Eram cerca de 20 mil combatentes, com armamentos leves e drones. Não tinham tanques, aviões, mísseis nem baterias antiaéreas.

Em 8 de dezembro, o ditador Bashar al-Assad e os principais oficiais do regime fugiram do país. As Forças Armadas se dissolveram, juntamente com os 18 temidos serviços de inteligência que praticavam detenções, torturas e execuções. A ditadura da família Assad caiu após 54 anos no poder. Como foi que isto aconteceu?

Pobreza e uma ditadura cruel

Por um lado, o regime Assad perdeu toda a sua base social devido à pobreza a qual estava submetida 90% da população e à violenta repressão estatal. Em 13 anos, mais de meio milhão de sírios foram mortos, 13 milhões se tornaram refugiados e 200 mil desapareceram no cruel sistema prisional do país. Não havia qualquer perspectiva de melhoria. Seus dois principais aliados não compareceram para sua defesa: o regime russo, que está atolado na Ucrânia, e o Hezbollah, em situação semelhante, no Líbano.

Comemoração popular

Por outro lado, a ampla maioria da população apoiou a revolução. No Norte, a cada cidade liberada, milhares de jovens se uniram às chamadas milícias rebeldes. No Sul, a população retomou a auto-organização dos primeiros anos da revolução e marchou em direção à capital, ocupando delegacias de polícia e postos militares, o que a população das cidades ao redor de Damasco também fizeram.

No caminho para a capital, 400 presídios foram abertos e milhares de presos políticos foram libertados. A libertação dos presos sinalizou o compromisso da Revolução Síria com as liberdades democráticas. Refugiados sírios, no Líbano e na Turquia, começaram a voltar para seu país.

Houve comemoração em todas as cidades da Síria, nas comunidades de refugiados sírios em vários países, no Líbano e até mesmo os palestinos na Faixa de Gaza comemoraram, sob os bombardeios genocidas do Estado de Israel. O Hamas, principal organização da resistência palestina, saudou a revolução na Síria.

O líder do HTS, Abu Mohammad al-Joulani (cujo nome real é Ahmed Sharaa), indicou um membro da sua organização, Mohammad al-Bashir, para assumir o comando de um Governo de Transição, encarregado da reconstrução do país, da elaboração de uma nova Constituição, sem participação popular, e de convocar eleições livres em 18 meses.

Riscos imperialistas

O futuro deve pertencer ao povo sírio

O novo Governo de Transição revelou seus planos. Ele quer que a Síria seja uma economia de mercado capitalista, inserida no mercado mundial. E deseja construir alianças com os países imperialistas e as potências regionais, como as monarquias reacionárias do Golfo Árabe, para atrair capitais internacionais para o país. Tudo isso em paz, sem guerras ou novas revoluções.

Essas propostas não passam de ilusões. Uma economia de mercado capitalista não acabará com a pobreza. Apenas beneficiará um punhado de milionários e empresas multinacionais que tomarão as riquezas da Síria.

Imperialismo quer dividir a Síria

Alianças com os países imperialistas (Estados Unidos, União Europeia, China, Rússia e Japão) e os acordos com as monarquias do Golfo, a Turquia e Israel não trarão paz nem garantirão as liberdades democráticas já conquistadas. Esses países temem a revolução democrática síria e farão de tudo para dividir o país, tomar suas riquezas, interferir na sua política e apoiar futuras ditaduras.

A invasão israelense nas Colinas de Golã e o bombardeio de 500 alvos militares e de inteligência sírios já demonstram que o Estado sionista quer uma Síria fraca, dividida e ocupada. A ofensiva militar turca, através do autodenominado “Exército Nacional”, contra as milícias curdas no Norte da Síria, demonstra que a Turquia quer impedir qualquer tipo de autonomia dos curdos, passando por cima do direito do povo sírio decidir o futuro do seu país.

Aprofundar a revolução. Por uma Palestina livre!

A única aliança que interessa à Revolução Síria é a aliança com a classe trabalhadora e a juventude dos países árabes, para derrubar as ditaduras árabes em uma nova onda de revoluções sociais. Essa aliança começa pelo apoio incondicional à resistência palestina. Uma vitória na Palestina representará a garantia de liberdade e de melhoria de vida para a classe trabalhadora síria.

Caberá à classe trabalhadora e à juventude sírias aproveitar as liberdades democráticas para construir sindicatos livres, associações estudantis, coletivos pelos direitos das mulheres, movimentos pela reforma agrária, grupos de direitos humanos, grupos de autodefesa popular, dentre outros.

Essas organizações, centralizadas em conselhos populares locais, unidos em nível nacional, poderão disputar o futuro da Revolução Síria, rumo a uma Síria socialista, como parte de uma Federação de Países Árabes Socialistas.

 

Dinastia Assad inimiga da Palestina

A derrubada da ditadura fortalece a resistência palestina?

Muitas organizações de esquerda acreditam que a queda da ditadura Assad representa um retrocesso para a resistência palestina. Leda ilusão. A dinastia Assad sempre foi inimiga dos palestinos, de sua organização, a Organização para Libertação da Palestina (OLP), e de seu líder Yasser Arafat.

O golpe militar que levou Hafez al-Assad, pai de Bashar, ao poder, em 1970, foi realizado para impedir que armas chegassem da Síria até os palestinos, que lutavam contra a monarquia jordaniana. Em 1976, as tropas sírias invadiram o Líbano para impedir a vitória da Revolução Libanesa e da OLP, contra a extrema direita maronita (em referência a um grupo cristão, baseado fundamentalmente no Oriente Médio e vinculado à Igreja Maronita).

Assad também apoiou o massacre de palestinos no campo de refugiados de Tel al-Zaatar, em 1976, e, depois, apoiou a chamada “Guerra dos Campos” (1985-1988), uma agressão militar da milícia Amal, aliada de Assad, contra os campos de refugiados palestinos no Líbano.

Bombas e fome

Bashar el-Assad também tem um histórico de atrocidades contra os palestinos. No início da Revolução Síria de 2011, Bashar sitiou e impediu o ingresso de alimentos no campo de refugiados de Al-Yarmouk, o maior campo fora da Palestina Ocupada. Os palestinos tiveram que comer grama para sobreviver. Depois, Bashar bombardeou o campo e expulsou os palestinos.

Bashar obrigou Khaled Meshaal e os líderes do Hamas, cujo escritório internacional ficava em Damasco, a sair da Síria, em 2012, porque o Hamas se recusava a apoiar os massacres de sírios pela ditadura.

Ditadores nunca enfrentaram Israel

Os Assad, pai e filho, submeteram a população palestina a um regime de repressão, através de milícias especiais para vigiar e controlar os palestinos (uma delas é o Comando Geral de Ahmad Jibril) e de um centro de detenção e tortura, chamado “Ramo Palestino”. Quando a Revolução Síria abriu as portas do presídio de Sednaya, cerca de 630 palestinos foram libertados, incluindo 67 membros do Hamas e de um líder de seu braço armado, chamado Abu Judat al-Jaloudi.

Assad garantiu a segurança do Estado de Israel nas Colinas de Golã. Por 50 anos, o exército sírio impediu que qualquer grupo ou indivíduo desse sequer um tiro contra os israelenses, apesar destes ocuparem território sírio.

Declaração inaceitável

Infelizmente, o líder do HTS, Al-Joulani (Ahmad Sharaa) declarou que defende o acordo de cessar-fogo com Israel nas Colinas de Golã, firmado pelo ditador Assad, em 1974. Ele disse, ainda, que não permitirá que a Síria seja uma plataforma de agressão contra Israel.

Esta declaração de Al-Joulani é inaceitável. A Revolução Síria só se completa com a libertação da Palestina. Enquanto existir o Estado de Israel, não haverá paz para a Síria. A obrigação de Al-Joulani é dar apoio incondicional à resistência palestina, exigir a saída das tropas israelenses da Síria e do Líbano, exigir o fim do genocídio em Gaza e na Cisjordânia e defender uma Palestina livre, do rio ao mar. Este é o posicionamento que toda classe trabalhadora e a juventude dos países árabes esperam da Síria pós-Assad.

Saiba mais

Quem é o HTS

O Hayat Tahrir al-Sham é uma versão repaginada da Frente al-Nusra, formada em 2012 e filiada à Al-Qaeda. A partir de sua formação, a Frente al-Nusra cumpriu um papel negativo na Revolução Síria. Seu objetivo era transformar a revolução democrática do povo sírio em uma guerra sectária entre grupos religiosos. Para isso, recebia recursos principalmente de monarquias do Golfo. Ela é acusada de reprimir os ativistas da Revolução Síria e, inclusive, do assassinato, em 2018, do conhecido radialista Raed Fares.

Em 2016, a Frente al-Nusra, agora repaginada como HTS, rompeu com a Al-Qaeda e, desde então, tem brigado pela hegemonia dentro de Idlib, a última província “rebelde” (fora do controle do regime sírio). Seu foco foi governar Idlib, cobrando impostos sobre a agricultura e comércio, facilitar o ingresso de ajuda humanitária e organizar serviços públicos básicos.

Em Idlib, seu governo nunca foi eleito e há muitas denúncias de arbitrariedades, sem nunca chegar ao nível da ditadura Assad ou da ditadura do Daesh (Estado Islâmico). Ao mesmo tempo, o HTS criou uma Academia Militar, onde maioria dos jovens combatentes que iniciaram a ofensiva sobre Aleppo, em 27 de novembro, se formou.

Em 2024, à frente do Governo de Transição, o HTS busca uma reconstrução capitalista do país, com apoio dos imperialismos e das potências regionais. Não há garantia em relação às liberdades democráticas. Neste momento, o HTS não tem força para cercear tais liberdades, mas está reconstruindo as Forças Armadas sírias, o que pode lhe possibilitar tomar medidas repressivas.

Colaboradores do regime

O Partido Comunista e a ditadura Assad

O Partido Comunista Sírio foi fundado em 24 de outubro de 1924 e atuava no território que hoje corresponde à Síria e ao Líbano. Seu primeiro dirigente foi um operário da indústria do tabaco, Fuad ash-Shimali, que se manteve à frente do partido até 1932. Nesse período, o PC apoiou o importante levante em Jabal Druze, no Sul do país.

Em 1937, foi eleito seu dirigente histórico, Khalid Bakdash, de origem curda e filho de um oficial do Império Otomano (um dos maiores e mais duradouros impérios da História, entre o final dos anos 1.200 e a década de 1920, abrangendo partes do Oriente Médio, da Ásia, do Sudeste da Europa e do Norte da África). Para Fuad ash-Shimali, a eleição de Bakdash colocou o partido nas mãos dos “intelectuais”. Bakdash estava à frente do partido em dois momentos chave, nos quais o Partido Comunista cometeu erros históricos.

As muitas traições do stalinismo no Oriente Médio

O primeiro foi o apoio à Partilha da Palestina, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1947, abrindo o caminho para a Nakba (a “catástrofe” palestina). Esse apoio levou à perda de milhares de militantes. Segundo relatos de dois dirigentes comunistas, um partido que contava com 20 mil militantes no Líbano e 15 mil militantes na Síria ficou reduzido a centenas.

Boa parte desses militantes migrou para um partido camponês chamado Partido Socialista Árabe, liderado por Akram Hourani, um grande defensor dos direitos dos camponeses pobres e da unidade dos povos árabes, que comandou um grupo de 800 sírios “fedayin” (termo árabe cuja tradução livre seria algo como “mártir”, mas que, no decorrer da História, foi interpretado como “guerreiros da liberdade”), que foram para a Palestina lutar contra os sionistas, em 1948.

É sempre bom lembrar que o Partido Comunista Palestino apoiou a Nakba, vários de seus membros integraram as milícias sionistas da Haganah (principal organização paramilitar sionista, entre os anos 1920 e 1950, que se tornou o núcleo das Forças de Defesa de Israel, ou FDI) e ainda tiveram um ministro no primeiro gabinete israelense.

Uma traição histórica da qual ele nunca se recuperou. Pior ainda, até hoje o PC israelense e o Partido do Povo defendem a política de dois Estados na Palestina, conferindo aos criminosos sionistas o benefício do roubo das terras palestinas.

O segundo erro histórico foi a integração do PC Sírio na Frente Nacional Progressista, liderada pelo ditador sírio Hafez el Assad, em 1972. De lá para cá, o Partido Comunista Sírio participou de todos os governos da ditadura Assad, exceto no intervalo entre 1981 e 1986.

A necessidade de um partido operário, socialista e internacionalista

Integrar o ministério de uma ditadura sanguinária durante cinco décadas já deveria ser motivo de reflexão. Mas, o pior ainda estava por vir. Em 2011, a classe trabalhadora e o campesinato iniciaram um levante contra a ditadura Assad.

A posição dos partidos comunistas (nesse momento dividido em três: “Unificado”, Bakdash e Kadri Jamil) foi apoiar a ditadura e participar do massacre de mais de meio milhão de sírios, através da formação de uma milícia “comunista” armada pela ditadura, uma repetição da atuação do PC palestino durante a Nakba.

Essa posição novamente levou à perda de muitos militantes e ao seu total desprestígio junto à população.
Apesar da obviedade dessas traições, os partidos comunistas sírio e palestino nunca fizeram qualquer autocrítica.

A Revolução Síria necessita de um novo partido, operário, socialista e internacionalista, para organizar a oposição de esquerda ao novo Governo de Transição, para aproveitar as liberdades democráticas conquistadas e impulsionar as lutas operárias e populares e a formação de conselhos populares, rumo ao poder dos trabalhadores e trabalhadoras. E, para assim, construir a solidariedade efetiva com a Palestina.

Assista a live especial sobre a revolução síria