O que realmente Haddad anunciou na TV na noite desta quarta-feira?
Governo Lula enquadra reajuste do salário mínimo nas regras do arcabouço fiscal, limitando sua recomposição
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, realizou, na noite desta quarta-feira, 27, um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV, a fim de anunciar um conjunto de medidas de ajuste fiscal. Trata-se de um pacote para atingir o tão almejado “superávit primário” (receitas menos despesas, excluindo os gastos com a dívida) e manter o arcabouço fiscal, o novo teto de gastos que substituiu o de Temer.
Para divulgar esse conjunto de medidas que atingem em cheio salários e direitos da classe trabalhadora, enquanto mantém intacto o andar de cima, o governo Lula embalou o pacote com adereços de Natal. Mas isso não muda sua essência: o que parece um presente de final de ano é, na verdade, um ataque brutal aos salários e direitos a fim de garantir o arcabouço, ou, em outras palavras, o pagamento dos juros aos banqueiros via dívida pública, dos subsídios bilionários às grandes empresas e ao agronegócio.
Salário mínimo
A principal medida anunciada por Haddad é a alteração das regras de reajuste do salário mínimo. Segundo Haddad, “o salário mínimo continuará subindo acima da inflação, dentro das regras fiscais“. O que isso significa? Hoje, o reajuste se dá pela antiga regra dos governos anteriores do PT: a variação do PIB de dois anos anteriores, mais a correção da inflação. Colocar o salário mínimo “dentro das regras fiscais” significa que o aumento do mínimo não poderá exceder os 2,5% estabelecidos pelo arcabouço para os gastos do Orçamento.
Após impor um teto geral sobre os gastos públicos, o governo Lula impõe um teto sobre o salário mínimo, o que vai desacelerar seu reajuste (já anêmico) nos próximos anos.Ou seja, se já era um salário mínimo de fome, com um reajuste insuficiente sequer para se atingir o estabelecido pela Constituição (calculado em R$ 6.294,71 pelo Dieese), agora vai piorar ainda mais.
Muito se falou, nos últimos meses, e se testou, inclusive, através da imprensa, sobre uma proposta que o ministro bolsonarista Paulo Guedes sonhava: desindexar todos os benefícios do salário mínimo,inclusive as aposentadorias. Evidentemente, essa medida gerou grande desgaste. Ao invés disso, Haddad e o governo Lula mantiveram a indexação (por hora), mas resolveram rebaixar o reajuste do salário de forma geral.
Essa nova política vai atingir as aposentadorias, pensões, benefícios como o próprio BPC (Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos carentes e pessoas com deficiência), além do próprio seguro-desemprego e o abono salarial. Ou seja, tudo o que é vinculado ao salário mínimo. Atinge, indiretamente, os trabalhadores que estão na informalidade, a maioria da classe, já que você rebaixa os salários de forma geral.
Ataques a direitos
Além da mudança da regra do salário mínimo, Haddad anunciou a restrição ao direito do abono salarial, pago hoje a quem recebe até dois salários mínimos (R$2.824), uma espécie de 14º salário. Pela nova regra, esse índice será reajustado apenas pela inflação no próximo período, parando quando chegar a um salário mínimo e meio. Um ataque justamente aos trabalhadores mais pobres.
Para além disso, devem continuar os cortes disfarçados de “correções”, como o recente corte de R$ 6 bilhões do BPC, que prejudicaram justamente a população mais vulnerável. Além de critérios mais “rígidos” a fim de impor uma restrição ainda maior à concessão de direitos como o próprio Bolsa Família.
Bilionários são os verdadeiros isentos
O governo Lula transformou o anúncio do pacote de ataques e ajuste fiscal no que seria o cumprimento de sua promessa de campanha: a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil. Isso seria compensado aumentando o imposto para os que ganham mais de R$ 50 mil por mês. Isso, a princípio, zeraria a defasagem da tabela do IR para essa primeira faixa de renda.
Se essa medida, por um lado, taxa os que ganham mais, por outro mantém isentos o verdadeiro topo da pirâmide social. Os verdadeiros capitalistas continuarão se beneficiando dos R$ 546 bilhões em isenções fiscais que o próprio Ministério da Fazenda divulgou recentemente. Os dividendos bilionários pagos aos acionistas de empresas como a Petrobras ou a Vale, também continuarão isentos, indo direto para os cofres de megafundos financeiros e banqueiros internacionais.
Parte das medidas para garantir a aceitação do pacote inclui ainda tímidas mudanças nas aposentadorias dos militares e a redução dos “supersalários” no setor público, sem especificar o que seria de fato realizado.
Tirando com uma mão e tomando duas vezes mais com a outra
A isenção do Imposto de Renda deve beneficiar 36 milhões de trabalhadores formais, segundo levantamento da Unafisco. Por outro lado, os mais de 37 milhões de aposentados e pensionistas sofrerão com o reajuste menor do salário mínimo. Além das mais de 20 milhões de famílias que sobrevivem com o Bolsa Família. E os 4,7 milhões de idosos e pessoas com deficiência que dependem do BPC.
Na verdade, a redução do reajuste do salário mínimo atinge a população e toda a classe trabalhadora, formal ou informal, beneficiária ou não de algum programa social, de forma geral. Do trabalhador formalizado que ganha 2 salários mínimos, à idosa carente que depende de um benefício como o BPC. Ou o trabalhador informal que vive de bicos, já que toda a base salarial vai ser rebaixada.
Não vai parar por aí
O governo Lula espera “economizar”, segundo Haddad, R$ 70 bilhões neste ano e no próximo, a fim de atingir o déficit zero. Só para efeitos de comparação, só em juros da dívida aos banqueiros, o país pagou R$ 649 bilhões no ano passado. Sem falar no famigerado Plano Safra que garantiu inéditos R$ 400 bilhões ao grande agronegócio que tocou fogo no país neste ano, destroi o meio ambiente, persegue indígenas e, sim, praticamente não paga imposto. Em seu pronunciamento, Haddad também não especificou de onde virão esses R$ 70 bilhões, o que deve ser detalhado nos próximos dias.
Quando o governo Lula aprovou o arcabouço fiscal, em 2023, já era evidente que aquele novo teto era incompatível não só com o reajuste do salário mínimo, como os demais benefícios sociais. E, inclusive, com os pisos constitucionais da Saúde e da Educação, fixados hoje em 15% e 18%, respectivamente. Por isso, os ataques não vão parar por aqui. Já há uma campanha em curso, e negociações de corredores no Congresso Nacional, para a derrubada desses pisos e a manutenção do arcabouço. A tramitação dessas medidas no Congresso Nacional, inclusive, pode piorar ainda mais essas medidas, pois já há uma “proposta paralela” da direita recrudescendo esses ataques.
O ataque ao salário mínimo e a direitos sociais anunciados por Haddad, de toda forma, é mais um ajuste brutal nas costas da classe trabalhadora e do povo pobre, em prol de uma política econômica que só beneficia os bilionários, o agronegócio, as grandes empresas, o rentismo e os banqueiros. A ampliação da isenção do Imposto de Renda, uma luta muito importante levada a cabo durante décadas, está sendo utilizada para passar a boiada de uma política neoliberal e de austeridade.
Durante todo o dia, o mercado agiu como esperado: especulando com o dólar sabendo que nada de realmente ameaçador viria. Em seu pronunciamento, Haddad afirmou que “ o Brasil de hoje não é mais o Brasil que fechava os olhos para as desigualdades e para as dificuldades da nossa gente. Quem ganha mais deve contribuir mais”. O andar de cima, os verdadeiros capitalistas, os bilionários que controlam mais de 70% da economia, porém, não vão “contribuir mais”. A desigualdade vai continuar e os trabalhadores e o povo pobre é quem, mais uma vez, pagarão a conta.