A eleição de Trump e a crise da ordem mundial
A eleição de Trump atualiza a necessidade de entender a situação política global cada vez mais complexa, polarizada e instável. O governo do país imperialista mais poderoso do mundo estará nas mãos de um dos maiores expoentes da ultradireita, o que poderá gerar confrontos muito mais sérios do que os ocorridos em seu primeiro mandato, justamente porque a realidade atual é de uma crise muito maior.
Trump é a expressão de um setor da burguesia imperialista norte-americana ligado ao petróleo, a uma parte mais especulativa do capital financeiro e das grandes empresas de tecnologia. Seu projeto não é simplesmente uma continuação de planos imperialistas anteriores, mas a expansão qualitativa de seus lucros neste momento de declínio da economia mundial e aumento da rivalidade interimperialista. Isso pode levar a algumas mudanças significativas.
Por que Trump venceu?
Ele foi eleito com base em uma combinação de dois processos distintos. Um deles, já bem conhecido, foi a capitalização do descontentamento com o governo Biden em relação à situação econômica, em especial a inflação pós-pandemia de cerca de 20% para as famílias. Isso levou a um desgaste significativo do Partido Democrata em sua base de trabalhadores em geral, bem como de latinos e negros. Trump cresceu até mesmo nesses setores.
Mas houve também outro elemento muito importante. Ele fez uma campanha político-ideológica de ultradireita, com foco nos imigrantes, mas dirigida contra todos os oprimidos. Essa campanha, que conquistou uma parte das massas para uma determinada visão de mundo, se desenvolveu nos moldes da ultradireita atual, com muitas fake news nas redes sociais. E apontou para um renascimento nacionalista dos Estados Unidos por meio da extrema direita, contra os imigrantes. Esse elemento é importante porque não é apenas conjuntural e reflete uma base para uma perspectiva mais estratégica para a extrema direita.
Os planos de Trump
O resultado da campanha foi que Trump agora tem um peso superestrutural maior do que em seu primeiro mandato. Ele tem a maioria no Senado e na Câmara dos Deputados. Como já havia garantido a maioria na Corte Suprema dos EUA, sua influência é muito maior do que a da maioria dos governos anteriores.
Isso lhe dá uma base para implementar seus planos muito duros, que incluem a deportação em massa de imigrantes, uma reforma do estado liderada por Elon Musk com uma desregulamentação radical, a expansão da produção de petróleo por meio do fracking e uma virada nacionalista imperialista na economia com a imposição severa de tarifas.
Para apoiar essas mudanças, Trump defende medidas autoritárias e cada vez mais repressivas. Como em outros processos, a extrema direita está pressionando a democracia burguesa com uma tendência cada vez mais bonapartista.
Uma demonstração da crise da democracia burguesa nos EUA
Trump é tanto uma consequência quanto um agente da crise da democracia burguesa nos EUA. Por um lado, ele é uma expressão da crise da democracia burguesa ao capitalizar a erosão do antigo Partido Republicano (que ele transformou) e do Partido Democrata, bem como das outras instituições do regime.
Por outro lado, ele é um agente ativo dessa crise. Já promoveu uma tentativa fracassada de golpe (a invasão do Capitólio) e pode agora adotar uma nova postura autoritária. É provável que Trump aumente a polarização social e política que já existe nos EUA. Ele não trará estabilização, mas mais desestabilização. É importante lembrar que, durante seu primeiro mandato, houve um dos maiores ascensos de massas nos EUA desde 1968, após o assassinato de George Floyd. Não estamos dizendo que isso acontecerá novamente. Não sabemos. Estamos apenas apontando para uma tendência de instabilidade.
Uma expressão da decadência do capitalismo
A eleição de Trump também é uma expressão da decadência do capitalismo. É um produto, como todo o fortalecimento da extrema direita, dessa fase da curva descendente do capital desde a recessão de 2007-09. Esse declínio é expresso na crise da Alemanha e da União Europeia, no recuo de continentes inteiros na divisão mundial do trabalho, mas também no país imperialista hegemônico, os EUA.
Nessa fase da curva descendente após 2007-09, as disputas interimperialistas se ampliaram, especialmente com o conflito entre o imperialismo americano em declínio e o imperialismo chinês emergente.
Os EUA continuam hegemônico em termos econômicos, financeiros, tecnológicos e militares. Mas é inegável que o imperialismo chinês está crescendo e se expandindo, ocupando espaços importantes, como na indústria automobilística (especialmente com carros elétricos) ou no setor de bens de produção (máquinas e equipamentos) e por meio da Nova Rota da Seda.
A política nacionalista imperialista de Trump, resumida no MAGA (Make America Great Again), inclui uma expansão qualitativa da guerra tarifária contra a China. Ela não se limitará ao conflito com a China, mas também afetará a União Europeia, bem como as exportações de países semicoloniais. Isso tende a gerar reações retaliatórias em cadeia que acabarão afetando as exportações dos EUA.
Esse tipo de política pode levar a ganhos parciais imediatos, mas envolve a tentativa de reverter a tendência da globalização imperialista. Não há como desmantelar a internacionalização da produção com as cadeias de valor estabelecidas pelas multinacionais em todo o mundo, porque isso afetaria diretamente os custos de produção das próprias multinacionais. Pelo contrário, isso pode acelerar o declínio do imperialismo norte-americano. Por exemplo, não é favorável à batalha pelo espaço econômico asiático, um dos mais importantes na atual disputa imperialista.
Sob Trump, é provável que haja um reforço da política defendida pelos reformistas de defesa do “Sul Global” (a aliança da China com os BRICS) contra o imperialismo dos EUA.
Não é papel do socialismo revolucionário apoiar um imperialismo contra outro nessas disputas econômicas interimperialistas, mas lutar contra todos eles.
Apoiamos a luta de qualquer país semicolonial contra o ataque imperialista. Lutamos contra os ataques do imperialismo dos EUA contra os países semicoloniais (por exemplo, na América Latina). Defendemos os países semicoloniais da África e da Ásia contra as brutais imposições chinesas com a dívida externa e a Nova Rota da Seda. Apoiamos a Ucrânia contra a invasão imperialista da Rússia. Mas fazemos isso com uma política de independência de classe, sem dar o menor apoio político a qualquer governo burguês.
O impacto da vitória de Trump sobre as guerras em andamento
As duas guerras mais importantes em andamento no mundo hoje (Palestina e Ucrânia) , que não existiam durante o primeiro mandato de Trump, já levaram à erosão do imperialismo norte-americano em todo o mundo.
O crescente isolamento do sionismo das massas do mundo pelo genocídio israelense também traz mais descrédito político ao imperialismo dos EUA que o apoia. A invasão da Ucrânia pela Rússia também tem sido um motivo de desgaste político e econômico para os EUA, incapaz de impor uma solução para o conflito.
É provável que todo esse processo se agrave com Trump. O genocídio sionista deve receber ainda mais apoio do governo dos EUA, assim como seu ataque contra o Líbano. Trump impulsionou o Acordo de Abraão em seu primeiro mandato em 2020, que ele chamou de “Acordo do Século”. O objetivo era restaurar as relações diplomáticas e políticas entre Israel e os países árabes, especialmente com a Arábia Saudita. No entanto, esse acordo só chegou a incluir os Emirados Árabes Unidos. A política genocida de Netanyahu em Gaza impediu sua continuação. E o apoio de Trump a Netanyahu continuará a representar grandes problemas para sua implementação. Vamos ver o que acontecerá.
Pode ser que aconteçam grandes mudanças na guerra da Ucrânia. A redução do apoio econômico dos EUA a Zelensky, que já era pequeno, pode ter consequências importantes, levando à imposição de um “acordo de paz”, com a divisão do território ucraniano e a vitória russa.
Não parece que a intervenção de Trump nesses processos com esses objetivos leve a restauração da hegemonia dos EUA. Pelo contrário, pode ampliar seu declínio também nessa área.
Trump e o negacionismo climático
O negacionismo climático de Trump acrescentará elementos de crise ao desastre ambiental que já existe. Espera-se que o ano de 2024 seja o mais quente da história. Isso é acompanhado por catástrofes como enchentes em Valência (Espanha) e no Rio Grande Sul (Brasil), incêndios na América Latina e muito mais. Neste exato momento, ter um presidente negacionista no governo do país mais poderoso só aumenta a paralisia dos governos burgueses em todo o mundo diante do desastre climático.
Não é que Trump vá paralisar políticas imperialistas realmente importantes para proteger o meio ambiente. Esses planos são realmente apenas cosméticos. Eles não mudam a essência do consumo de combustíveis fósseis e do aquecimento global.
Mas agora é possível que, mais uma vez, o debate retorne ao nível rebaixado “Trump versus os Acordos de Paris”, como se a alternativa real fosse esses “acordos” que não mudam nada.
Precisamos fortalecer as lutas que já começaram em defesa do meio ambiente. A conscientização em massa sobre a questão cresceu na esteira dos desastres climáticos, desmentindo o negacionismo da extrema direita.
Mas é necessário partir de lutas concretas em defesa do meio ambiente para apontar para uma alternativa socialista revolucionária, em oposição às políticas reformistas que apontam para saídas por dentro do capitalismo.
A vitória de Trump fortalece a extrema direita global
É inegável que a vitória de Trump fortalece a ultradireita global. Já existe uma articulação internacional da ultradireita com Orbán, Milei, Bolsonaro, Fox, Le Pen e outros, que agora será reforçada para as próximas eleições.
A rede global de extrema direita, coordenada por Steve Bannon, trabalha muito nas redes sociais, que são muito mais desenvolvidas do que as liberais ou reformistas. Essas redes reforçam a posição ideológica da extrema direita com sua visão de mundo supremacista, anti-imigração, misógina, racista e LGBTfóbica. Elas produzem e disseminam notícias falsas, criando uma alternativa de “informação” paralela à grande mídia e também financiada por grandes empresas.
Ainda não se sabe quais serão as repercussões internacionais de um futuro governo Trump. Mas é provável que um novo governo de extrema direita nos EUA também aumente a instabilidade em todo o mundo. Ele pode gerar uma tendência de maior polarização internacional social e política.
A alternativa a essa extrema direita fortalecida não pode ser voltar a legitimar o Partido Democrata nos EUA, ou o peronismo na Argentina contra Milei, o PT no Brasil contra Bolsonaro, ou alternativas de conciliação de classes em outros países. Trump não pode ser explicado sem o desastre do Partido Democrata, Bolsonaro sem os treze anos de governos anteriores do PT ou Milei sem a experiência com o peronismo.
Construir uma alternativa baseada na mobilização de massa e na independência de classe é, de fato, a melhor resposta ao governo Trump.
Originalmente publicado no Portal da LIT-QI