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Novembro Negro: Zumbi, Dandara e Palmares em disputa

Hertz Dias, Membro da Secretaria de Negros do PSTU e vocalista do grupo de rap Gíria Vermelha

14 de novembro de 2024
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Neste “Novembro Negro”, daremos o ponta pé inicial para as mobilizações rumo ao “Zumbi + 30”; ou seja, a celebração dos 330 anos de imortalidade de Zumbi dos Palmares, que acontecerá em novembro de 2025. Um evento que, com certeza, irá ser palco para uma luta encarniçada pela “narrativa palmarina” ou contra ela, em seus sentidos políticos e estratégicos.

Haverá aqueles e aquelas que se limitarão a reivindicar um destaque maior para Zumbi e Dandara na “galeria dos heróis nacionais” e manter a luta antirracista nos marcos da democracia dos ricos, se limitando a exaltar o empoderamento negro, exigir mais negros no Parlamento, na classe média e nas estruturas de poder. Enquanto, na quebrada, sangue negro não pinga…, escorre.

Mas, também haverá os da ultradireita, que seguirão com suas narrativas reacionárias, defendendo que Palmares não passava de um reduto de bandidos, que Zumbi foi um grande assassino, que racismo é “mimimi”, que “bandido bom é bandido morto” e que os redentores dos negros foram gente como a Princesa Isabel.

Um grupo que está se sentindo fortalecido com a eleição de Trump, nos Estados Unidos, e não medirá esforços para utilizar o racismo com arma política de opressão dos negros e negras e de divisão dos trabalhadores e trabalhadoras.

Nós, ao contrário, reivindicamos Palmares e todos quilombos, mas em sua essência histórica, política e estratégica. À luz da saga palmarina, podemos tirar importantes lições para a luta antirracista no Brasil.

Palmares: negação da escravidão e do capitalismo

A escravidão foi uma hecatombe e o Brasil o centro deste inferno. Fomos o país que mais recebeu africanos e africanas na condição de escravos. A expectativa de vida dos nossos antepassados, ao desembarcarem em nossas terras, era de sete anos, o que garantira a perenidade do tráfico negreiro.

Eram eles, os traficantes de escravos, os homens mais poderosos do Brasil. Os escravizados representavam uma classe, a que se tornou o núcleo-base de luta contra a escravidão. Palmares era o seu maior bastião.

Não era um simples refúgio de negros fugidos, mas uma fortaleza antiescravista, a mais importante das Américas. No início, um pedaço de chão fundado por um núcleo de 40 africanos de Guiné de Porto Calvo. Algumas décadas depois, uma República Negra, com mais de 30 mil rebeldes.

O auge de sua explosão demográfica se deu durante a guerra entre as tropas holandesas e luso-espanholas (1630-1635). Ambos prometiam conceder a liberdade para os escravos, caso se incorporassem aos seus respectivos exércitos, mas quase todos negros e negras preferiram atacar seus senhores, libertar seus irmãos de classe, atear fogo nas senzalas e fugir para Palmares.

Somente velhos e molequinhos ficavam nas senzalas, conforme registros da época. Esse foi a primeira grande lição que Palmares no legou: independência de classe. O ensinamento de que, apesar das diferenças pontuais e temporárias entre os membros da classe dominante, todos são, por excelência, nossos inimigos estratégicos.

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História

A liberdade palmarina como uma utopia concreta em plena escravidão

Muitas vezes, quando falamos em socialismo, isto parece soar como um idealismo e não uma necessidade. Pois, na época de Palmares, pensar em africanos livres ou em trabalho livre para estes homens e mulheres seria o mesmo que “insultar Deus em dia de missa”. A escravidão africana era santificada pela igreja católica. Mas, em Palmares, o trabalho livre era regra geral.

Não só o trabalho, mas também a organização da economia. Enquanto a economia colonial era monocultora, latifundiária e escravista, em Palmares a economia era a policultura-comunitária, voltada para atender às necessidades de seus habitantes e para comercializar o excedente com produtos que não conseguiam produzir no próprio quilombo. Isso deve ter causado um grande impacto na consciência de todos que viviam sufocados em uma Colônia mergulhada em uma economia fechada, rígida e de permanente escassez.

Além disso, as mulheres africanas, que nas Casas-Grandes eram as mucamas, concubinas, cozinheiras, os “objetos sexuais” dos senhores e seus filhos, em Palmares eram matriarcas, como foi Acotirene, a grande conselheira em questões familiares e político-militares; Dandara, responsável pela defesa militar do quilombo; ou Aqualtune, a líder quilombola à frente de um dos 11 mocambos (as comunidades/cidadelas que, juntas, formavam Palmares e cujos dirigentes eleitos assumiam a direção da República Palmarina).

Até a poliandria, em que a mulher teria mais de um companheiro, existia em Palmares. Alguns tentam atribuir essa forma de organização familiar à tradição africana, mas isso também tinha mais a ver com uma necessidade: a escassez de mulheres negras na sociedade colonial e, também, em Palmares.

O fato é que, com todas as adversidades da época, Palmares se transformou no que parecia impossível de existir: uma utopia concreta.

Um classismo pluriétnico indigesto para a burguesia

Palmares era um território de africanos e africanas rebelados. Mas, também, para todos os marginalizados da sociedade da época. Mesmo em tempos de alta produção, a escassez de produtos e a penúria prevaleciam na colônia. Por essas e outras razões, Palmares se transformou em um polo de atração para os oprimidos de Pernambuco e de outras provinciais, como Alagoas, Bahia, Sergipe etc.

Historiadores burgueses, ao tomarem conhecimento de que, em Palmares, foram encontrados objetos produzidos por povos indígenas, tentaram atribuir isso à prática de escravidão entre os palmarinos. Ora, ocorre que em Palmares todos trabalhavam: “Entre eles, tudo é de todos e nada é de ninguém”, tal como relatou o holandês Rodolfo Baro, que guerreou contra Palmares.

Se os escravos se rebelavam nas senzalas, porque não se rebelariam dentro de um quilombo que vivia em confronto permanente com as tropas dos colonizadores? Se houvesse escravidão em Palmares, esse quilombo, que durou mais de 70 anos, não teria durado sete meses.

Não te esqueço meu povo

“Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo”

Essa frase é composta por versos do poema “Notícias” (1983), de José Carlos Limeira, que já foram muitas vezes recitados em eventos do movimento negros: “Por menos que conte a História / Não te esqueço meu povo / Se Palmares não vive mais / Faremos Palmares de novo”.

Nós a reivindicamos. Não porque achamos que a História deva se repetir, mas pelo seu legado. Durante décadas, a burguesia excluiu Palmares dos livros escolares ou o apresentavam como uma caricatura, um lugar de bandidos e assassinos. Até hoje, a ultradireita surta quando ouve o nome de Zumbi e Palmares. E, se depender de nós, continuará surtando.

Como exemplo do pensamento desta ultradireita, vale citar o artigo publicado, em 13 de maio de 2020, pela professora Mayalu Felix, do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEM), sob o título “Zumbi foi herói?”, em que ela “denuncia” que palmarinos “saqueavam, pilhavam, incendiavam engenhos próximos”.

Certamente, a referida professora não entendeu que a escravidão colonial era atravessada, de ponta a ponta, pela violência de classe. Violência que, em si, deve ser entendida como uma categoria econômica, em razão da quantidade de capital que a burguesia portuguesa precisava mover para manter esse tipo de dominação.

Por isso mesmo, chega a ser engraçado que essa mesma professora, para fazer valer suas narrativas de meritocracia, reivindique Luiz Gama, “se esquecendo” de sua célebre frase, proferida diante de um tribunal do júri, nos anos 1870: “Todo escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima defesa”.

Um foco de desgaste do capitalismo

Há também aquelas organizações governistas que criaram uma outra versão romântica de Palmares, de Zumbi e de Dandara, esvaziada de seu conteúdo de classe, revolucionário e não-conciliatório. Palmares não era apenas a negação da escravidão, mas também do capitalismo, pois, ao desgastar a escravidão, se transformou em um obstáculo real para a acumulação de capital na Europa.

Por diversas vezes, os palmarinos se negaram a aceitar acordos que garantiram a liberdade só dos escravos nascidos em Palmares, além de outras promessas. Ganga-Zumba aceitou, Zumbi e a maioria dos palmarinos, não! O projeto palmarino era a libertação de todos os negros e negras, o que implicava na destruição da escravidão em sua totalidade.

Não se alinharam a nenhum bloco escravista, nem à Holanda nem às forças luso-espanholas. Seus aliados estratégicos eram os próprios escravos, os indígenas e os brancos pobres, marginalizados pelo sistema. Palmares tombou de pé, não numa guerra cega, por um ideal pequeno-burguês, mas por um projeto estratégico, subordinado a uma necessidade inerente a todo ser humano explorado e oprimido: a liberdade plena.

Pra fazer Palmares de novo é preciso lutar pelo socialismo

A continuidade da luta palmarina, hoje, se manifesta na titulação dos territórios quilombolas, na demarcação das terras indígenas, na geração de empregos, na desmilitarização da PM e no fim da violência policial contra o povo negro e pobre. E, combinado a tudo isso, na luta pelo socialismo.

Por isso, a ultradireta nega Palmares, assim como nega a política de reparações históricas. Mas, assim como Judas negou Jesus por três vezes, Lula também está em sua terceira negação às reparações históricas, pois já está em seu terceiro governo e não apresentou nada mais do que promessas vazias.

Fazer Palmares de novo, para além da retórica, significa, por um lado, ser oposição de esquerda e socialista ao governo Lula e, por outro, enfrentar a ultradireta golpista e autoritária.

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