Nacional

Reportagem: A luta pelos territórios quilombolas no Maranhão

Jeferson Choma

14 de novembro de 2024
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Acampamento do Moquibom na sede do INCRA

O Censo Demográfico 2022, do IBGE, revela que há 1.327.802 quilombolas em todo o país. Apesar da titulação das terras quilombolas ser garantida pela Constituição, muito pouco se avançou. O censo identificou 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados, mas somente 147 deles (onde vivem menos de 5% dos quilombolas) são oficialmente titulados.

Ainda de acordo com o censo, o Maranhão tem a segunda maior população quilombola do Brasil. São 269 mil pessoas, distribuídas em 32 municípios. Mas, ao longo dos últimos 30 anos, apenas 74 comunidades quilombolas foram tituladas no estado, sendo que 71 delas foram tituladas pelo Instituto de Terras do Maranhão e apenas três pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Esse quadro tende a piorar. Em dezembro de 2023, a Assembleia Legislativa do Maranhão aprovou a Lei Estadual 12.169/2023., sancionada no mesmo dia pelo governador Carlos Brandão (PSB), facilitando a grilagem de terras no estado e suspendendo a regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas por populações quilombolas e demais comunidades camponesas tradicionais.

Na verdade, a lei serve apenas aos interesses dos grandes latifundiários, que promovem a grilagem de terras, em função da expansão da nova fronteira agrícola conhecida como Matopiba, que compreende regiões dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

“Chega de embromação”: o Moquibom e luta em defesa dos territórios

Nos últimos anos, todos os governos do Maranhão implementaram um conjunto de obras públicas de infraestrutura em prol da produção de grãos, de carvão vegetal e da mineração siderúrgica, ampliando os conflitos territoriais em todo estado. De acordo com os dados publicados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Maranhão é um dos estados com maior número de conflitos agrários no país. Entre 2015 e 2021, foram registrados 1.172 conflitos por terra no estado, envolvendo 112.504 pessoas.

Diante dessa situação, o Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), filiado à CSP-Conlutas, realizou um acampamento, entre os dias 21 a 25 de outubro, na sede do INCRA em São Luís, cobrando a regularização fundiária de mais de 400 comunidades. “Chega de embromação” foi a palavra de ordem da ação.

Depois de muita pressão, o superintendente regional do INCRA aceitou ouvir os quilombolas e o movimento conseguiu arrancar uma série de compromissos para agilizar a regularização dos territórios quilombolas. Muitos deles estão em processo bastante avançado, mas foram paralisados pelo INCRA por “inércia própria”, como o próprio instituto reconhece em documentos oficiais.

Dentre os compromissos, estão a promessas de titular três territórios até o final do ano, agilizar procedimentos de levantamento fundiário e iniciar o trabalho em laudos antropológicos junto às comunidades.

A reportagem do Opinião Socialista percorreu algumas comunidades quilombolas na Baixada Maranhense, para entender o conflito e a luta pelo território realizada pelos quilombolas.

Charco

Uma referência para a luta quilombola

A Comunidade Quilombola Povoado do Charco está localizada no município de São Vicente Férrer, na Baixada Maranhense, a cerca de 280 quilômetros de São Luís (MA). É constituída pelas comunidades de Charco, com 85 famílias, e de Juçaral, com 52 famílias, totalizando mais de 530 pessoas que reivindicam uma área de 1.347 hectares como território tradicional.

A comunidade é uma referência para toda luta quilombola do Maranhão. Sua corajosa luta serviu de exemplo para muitas outras comunidades quilombolas e deu impulso ao surgimento do Moquibom, que, hoje, organiza mais de 300 comunidades em todo o estado. Mas essa história teve momentos muito duros, com perseguições, destruição de casas e roçados e assassinatos.

A comunidade se originou com os descendentes dos escravizados libertos após a abolição de 1888. Ocupavam terras livres para fazer seus plantios e levantar suas casas. No entanto, alguns anos depois, surgiu um fazendeiro que, se autointitulando “dono daquelas terras”, passou a cobrar “foro” dos moradores da comunidade.

O “foro” é uma obrigação de pagamento anual, em dinheiro ou em produtos, pelos trabalhadores rurais ao dono da terra, geralmente um grande fazendeiro. No Charco e no Juçaral, o fazendeiro que agia como proprietário das terras forçava o pagamento do “foro” para que as comunidades pudessem fazer suas roças. Como pagamento, o fazendeiro cobrava 12 paneiros de farinha, o que é equivalente a aproximadamente 360 quilos do produto. Aqueles que não tinham como pagar toda a taxa, tinham galinhas, porcos e demais criações “confiscadas” pelo fazendeiro, para completar o foro.

Mas, em 2008, essa situação mudou. O líder quilombola Flaviano Pinto, criador da associação da comunidade, convenceu todos a não pagarem mais o foro. “Foi quando eles vieram cobrar, aqui, e gente disse que só pagaria se eles mostrassem os documentos de propriedade da terra, provassem que aterra era deles. Como eles não tinham, a gente não pagou mais. A terra era da comunidade”, explica Zilmar Mendes, sobrinha de Flaviano.

Mas o fazendeiro proibiu novos plantios e a instalação de novas casas. A comunidade, contudo, continuou a desafiá-lo e resistiu às pressões, sob a liderança de Flaviano. Em 2010, o líder quilombola foi assassinado por pistoleiros e, até hoje, o crime segue impune, sem a prisão dos seus mandantes.

Mataram ele pra que a gente desistisse. Mas Flaviano virou semente e nos deu força pra lutar. Nasceu um monte de Flavianos pra lutar”, explica Zilmar, que assumiu a liderança do Charco após o assassinato do seu tio. Hoje, os “muitos Flavianos” que nasceram se organizam no Moquibom.

A luta contra as manobras e ataques do agronegócio

Em 2011, o movimento ganhou grande projeção estadual, com a ocupação da superintendência do INCRA, na capital São Luís. Na ocasião, o Moquibom realizou uma greve de fome, como forma de pressionar o órgão federal pela abertura do processo de titulação dos territórios quilombolas.

Mas, no Charco, a violência não parou. Em 2017, Raimundo Silva, conhecido como Umbico, outro morador da comunidade, também foi assassinado ao desafiar a proibição do fazendeiro em construir novas casas no território. A situação só começou a mudar quando o INCRA iniciou o processo de titulação do Charco.

O fazendeiro se utilizou de muitas manobras e artifícios, para atrapalhar o processo de desapropriação da área. No entanto, o Charco passou por todas as etapas da regularização das terras quilombolas e falta apenas a publicação da portaria de titulação, o que pode ocorrer ainda em 2024.

Mas, enquanto a titulação não sai, os fazendeiros continuam a infligir destruição do território, suprimindo a vegetação, retirando madeira e fomentando a entrada de invasores. Membros da comunidade mostraram à reportagem que alguns fazendeiros chegaram a mover as pedras de demarcação, instaladas pelo INCRA, para tentar subtrair parte do território da comunidade.

Cruzeiro

Luta contra fazendeiros e invasores e a esperança da titulação

Anne, liderança do quilombo do Cruzeiro

A comunidade de Cruzeiro, em Palmeirândia (MA), é outro território muito importante para a luta quilombola do estado. O território quilombola tem aproximadamente 730 hectares e está dividido pela Rodovia MA-014.

A comunidade vivia tranquilamente, até a chegada de um fazendeiro que se dizia dono daquelas terras e a tentativa de expulsar os moradores, colocando seus jagunços para destruir casas, roçados e ameaçar os quilombolas.

Ele simplesmente mandou a gente fazer a colheita das nossas roças, porque ele ia plantar capim, fazer pasto. A gente tava acabando de colher a mandioca numa carroça quando o fogo já tava vindo atrás da gente. O fogo tocado pelo fazendeiro e os jagunços dele. Quase nós morre. Foi um desespero muito grande”, explica José Ribamar Cardoso, um dos quilombolas da comunidade.

Os moradores lembram que o fazendeiro queimou e destruiu o barracão da associação várias vezes. Mesmo sob essas ameaças, alguns moradores mantiveram suas casas dentro do território. Outros, entretanto, moram nas imediações, mas utilizam a área para fazerem seus plantios.

Em 2007, a comunidade reagiu e retomou parte do território que fica em um dos lados da MA-014. “A gente tava em 500 pessoas e impedimos a destruição e o cercamento do território. Enfrentamos polícia e jagunços”, explica Zeca, morador do Cruzeiro.

Depois da intervenção do INCRA, que iniciou o processo de regularização quilombola, a situação dos moradores melhorou um pouco e, hoje, eles voltaram a trabalhar em uma parte do território, localizada em umas das margens da rodovia. A outra parte, porém, continua sendo proibida para eles, pois ainda está sob o controle do fazendeiro. A associação dos moradores do Cruzeiro também está construindo uma biblioteca e uma creche, para trazer as crianças para dentro do território, enquanto seus pais vão trabalhar nos roçados.

Disposição de luta e auto-organização

Para obter a titulação definitiva, o INCRA ainda precisa fazer o levantamento fundiário e de ocupação dos moradores. “Não vejo a hora da gente receber o título, pra ficarmos sossegados. Pra que nossas famílias tenham autonomia dentro do nosso território, pra gente construir nossas casas. A maioria não faz mais casa no território, porque tem medo que elas sejam destruídas, como já aconteceu”, explica Anne Barbosa, uma das lideranças da comunidade.

A demora do INCRA também abre espaço para novas invasões ao território, inclusive de gente ligada ao poder público. “[Dentre os invasores], tem advogado, tem coronel. O fazendeiro parou, mas têm outras pessoas que dizem ter casas dentro do território. Há duas semanas, meu marido foi ameaçado, porque disse a ele que não podia construir casa dentro do terreno que ele dizia ser dele. Quando eu pedi o documento [aos invasores], eles disseram que só mostrariam ao advogado. Da outra vez, eles voltaram com quatro policiais”, explica Anne.

A comunidade também é ameaçada pela construção de uma ferrovia que vai cruzar o território até a Ilha do Cajual, onde será construído um porto para escoar soja e minério de ferro.

Apesar de todas as dificuldades, há muita esperança e disposição de luta. A comunidade do Cruzeiro vai abrigar o próximo encontro do Moquibom, marcado para 23 a 26 de janeiro de 2025. E, a depender do andamento dos acordos com o INCRA, novas ações, como acampamento e ocupações vão ocorrer.