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30 anos: O que não te contaram sobre o Plano Real

Diego Cruz

1 de julho de 2024
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Fernando Henrique Cardoso apresenta novas cédulas do Real Foto Arquivo PSDB

A chamada “Geração Millenial”, nascida entre 1982 e 1994, atravessou importantes transformações no mundo e no Brasil. Lembro da hiperinflação que atravessou a década de 1980, e o início dos 1990. A maquininha frenética de marcação dos preços trabalhava em tempo integral, já que um mesmo produto poderia variar de preço num único dia. Tão logo nossos pais recebiam o salário, fazíamos a “despesa”, ou seja, íamos ao supermercado fazer toda a compra do mês, já que um único dia de atraso representava uma importante redução do poder de compra.

Nesses 30 de Plano de Real, uma série de artigos, especiais de TV e entrevistas enaltecem o projeto que teria sido responsável por dar um fim ao fenômeno da hiperinflação. Os responsáveis pela execução do plano viraram até super-herois do cinema, como no fatídico filme “Real, o plano por trás da História”. Até mesmo setores majoritários da esquerda, como o PT, e outros até mais críticos aos anos de governo FHC, reivindicam o Plano Real como um suposto avanço institucional, e até mesmo, civilizacional.

Mas, parafraseando o filme chapa-branca, qual é exatamente a história por trás desse plano?

Muito além de uma reforma monetária

O país já havia passado por cinco planos econômicos para conter a inflação. O último deles, com Collor na Presidência, incluía o confisco de contas correntes, poupanças e investimentos. Medida que aprofundou um cenário de crise e precipitou a queda do “caçador de marajás”. Seu vice, Itamar Franco, assumiu o governo, nomeou Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, que, por sua vez, montou uma equipe para elaborar o que viria a ser o Plano Real.

O time escalado foi basicamente as cabeças pensantes da PUC-Rio, o mais proeminente bunker liberal do país, com André Lara Resende e Pérsio Arida à frente. Gustavo Franco, Edmar Bacha e o que viria a ser o futuro ministro da Fazenda no governo FHC, Pedro Malan, também compunham a equipe que seria alçada pela imprensa como brilhantes e engenhosos economistas. Na verdade, um grupo de neoliberais com fortes ligações com o mercado financeiro, que lucrariam muito, inclusive, especulando com a nova moeda.

Lara Resende e Arida eram os pais de um termo, cunhado ainda nos anos 80 na academia, sobre o fenômeno inflacionário: a “inflação inercial”. A ideia era, basicamente, a seguinte: o Brasil sofria de um mal estrutural, a indexação geral dos preços e contratos. Isso seria a razão pela qual os planos anteriores, como o Plano Cruzado, não teriam dado certo. O gatilho salarial da época Sarney, acionado após a inflação ultrapassar os 20%, era respondido por um novo aumento e, assim sucessivamente. A palavra-chave seria, então, “desindexar”. Grave esta palavra que ela será muito importante mais adiante.

O primeiro sentido do plano seria, então, desconectar os reajustes salariais da inflação em geral. Mas, se isso já parece problemático, o Plano Real vai muito além. Tratava-se de pôr em marcha um projeto global neoliberal, uma reestruturação da política econômica do país, nos moldes preconizados pelo chamado Consenso de Washington, com ajuste fiscal, juros estratosféricos para remunerar os rentistas internacionais, privatizações, desestatização e desnacionalização do país. Foram as bases para o aprofundamento do processo de inserção subordinada do Brasil na nova  divisão mundial do trabalho, que se consolidaria mais adiante.

Equipe do Plano Real: Choque neoliberal

A preparação do Plano Real, assim, teve início com um brutal ajuste fiscal, chamado PAI (Programa de Ação Imediato), a fim de o país retomar o pagamento da dívida externa nos marcos do chamado Plano Brady. O choque de juros imposto pelos EUA em 1980 levou os países endividados, incluindo o Brasil, à bancarrota. No final da década, o imperialismo, para manter o sistema de drenagem das riquezas dos países periféricos em meio ao colapso da dívida (o Brasil havia declarado moratória em 1987), impôs uma renegociação dos débitos, às custas de um duro ajuste fiscal, abertura econômica e privatizações.

Foi aí que a União federalizou as dívidas dos estados, bloqueando a arrecadação dos entes para o pagamento da dívida, e atuou para a privatização dos bancos estaduais, ajudando a criar os grandes monopólios que temos hoje. O Banco Central passa a ter uma atuação cada vez mais decisiva para a manutenção desse regime de austeridade, e até na promoção das privatizações.

A URV e o confisco dos salários

Com o ajuste fiscal e a reorganização do pagamento da dívida, era hora de agir sobre a moeda propriamente dita. E o sistema bolado pela turma da PUC-Rio escondia uma armadilha insidiosa. 

Em 1° de março de 1994 foi instituída a URV (Unidade Real de Valor). Vendida como uma complexa e inovadora arquitetura econômica, o real sentido disso era bem mais simples. Funcionava como uma espécie de moeda paralela, ou uma “unidade de conta”, pareada com o dólar, que daria o real valor dos preços ainda cotados em Cruzeiro Real. Por exemplo, uma URV equivalia a CR$ 647,50 quando lançada. Mas esse valor, em Cruzeiros Reais, mudava diariamente, acompanhando a inflação dos produtos, porém a URV permanecia constante. Só os preços em Cruzeiro Real subiam. Quando, em 1º de julho, a URV tomou o lugar definitivamente do Cruzeiro Real, 1 URV equivalia a CR$ 2.750.

Qual o pulo do gato aqui? Os preços, em geral, continuariam subindo, mas os salários não. Pelo menos, não na mesma proporção. Quando a URV foi instituída, houve um congelamento dos salários baseado na média dos quatro meses anteriores. Como explica o Jornal do PSTU de março de 1994: “com o congelamento dos salários pela média dos quatro meses anteriores, os metalúrgicos de São Paulo perderam 25,91%, os bancários 34,42%, os químicos de São Paulo 35,9% e os trabalhadores da alimentação do Rio Grande do Sul, 35,65%“. 

Isso significa que a tal desindexação serviu, principalmente, para os salários, congelados em URV, enquanto o resto da inflação corria solta em Cruzeiros Reais. Como previu a mesma edição, “a estabilização da economia significará introduzir no Brasil preços da Suíça com salários do Paquistão“.  A economista Maria da Conceição Tavares, falecida no último dia 8 de junho, chegou a chamar o plano de “Cruzado dos ricos”, foi taxativa, na época: “O plano nos impôs uma perda cavalar que não tem como ser medida“.

Um outro aspecto é que a URV passava uma borracha na defasagem salarial dos anos anteriores, que foi simplesmente zerada. E o arremate veio em julho, com a conversão definitiva da moeda ao Real. Uma semana antes da troca de moedas, os empresários subiram absurdamente os preços, mas esse aumento foi simplesmente desconsiderado no cálculo da inflação de julho. Os preços que subiram de 21 a 30 de junho foram ignorados, já que a inflação de julho tomou como base os preços do dia 1º deste mês, data oficial da implementação do Real.

Nos dias de hoje, uma semana pode não parecer muita coisa, mas no contexto de hiperinflação, essa diferença não é nada insignificante. Não existem números oficiais, mas, na época, o Dieese calculou as perdas em torno de 25%. É como se você tivesse, de um dia para outro, confiscado 1/4 de seu salário, mas de forma escamoteada, já que não era tão simples comparar o antigo Cruzeiro Real com o novo Real. Pelo contrário, a valorização cambial forçada da nova moeda, pareada com o dólar, dava uma sensação de aumento do poder aquisitivo, quando, na verdade, o povo estava mais pobre. Vamos ver isso mais adiante.

Desindustrialização e desnacionalização

Junto ao confisco dos salários, houve uma abertura econômica indiscriminada, radicalizando um processo iniciado no governo Collor. Isso provocou uma avalanche de importados, incluindo os manufaturados de baixo valor chineses, mas também de maquinários, e toda sorte de produtos, promovendo uma quebradeira generalizada da indústria nacional. O objetivo declarado era o de aumentar a competitividade diante dos importados, pressionando os preços para baixo, mas o sentido real era o de avançar na desindustrialização do país. 

O mecanismo utilizado para isso foi o câmbio e a valorização artificial do Real. Com o Real “forte”, os importados se tornaram muito mais baratos. Quem não se lembra das lojinhas de 1,99 que se tornaram febre país afora? 

Mas para manter esse câmbio, o país precisava atrair dólares, a fim de assegurar uma reserva internacional que pudesse garantir isso. As reservas são um montante que o país tem em moeda forte (basicamente o dólar, na época) capaz de bancar importações, remuneração dos títulos da dívida pública, etc., todas as transações com o mercado internacional. Se o país não exportava, abria as fronteiras para toda sorte de importados, levando o balanço de pagamentos (diferença entre exportações e importações) para baixo, como atrair esses dólares? Com capital especulativo, através de juros que chegaram a 45% no final da década de 1990, talvez algo sem precedentes na história. Para se ter uma ideia, hoje, a taxa básica da economia está em 10,5%, e já é uma das mais altas do mundo.

Outra forma era através de empréstimo direto com o FMI (Fundo Monetário Internacional), com a contrapartida de impor ainda mais ajuste fiscal, e privatizar o que restava do patrimônio público. O Brasil virou o paraíso dos rentistas, especuladores e do capital estrangeiro em busca de empresas estatais construídas ao longo de décadas de investimentos públicos. As sucessivas “visitas” de técnicos do FMI, a fim de vistoriar o andamento do plano, foi a expressão máxima do grau de subordinação do país.  Como denunciou o saudoso jornalista Aloysio Biondi, as empresas telefônicas receberam R$ 21 bilhões em investimentos do governo em dois anos e meio, e foram vendidas por R$ 8,8 bilhões, com financiamento do próprio BNDES. Já a CSN foi comprada por R$ 1 bilhão, também financiada pelo BNDES, com pagamento dividido ao longo de 12 anos. 

Empobrecimento disfarçado

Qual foi o resultado concreto do Plano Real na vida da grande maioria da população? De início houve um arrefecimento da inflação, mas mesmo isso deve ser relativizado. Todos os países da América Latina que passaram por esse mesmo processo de juros altos, abertura, desnacionalização e até dolarização, também reduziram a inflação. O que é mais ou menos óbvio, com o desemprego nas alturas, queda da renda e recessão, não tem inflação que resista.

 À queda da inflação, assim, vieram, além do desemprego em massa, os serviços públicos sucateados. A geração Millenial, e as anteriores, certamente se lembram da crise dos “apagões” que causaram grande desgaste no governo FHC, fruto da falta crônica de investimento no setor elétrico. Mas, num primeiro momento, a redução da inflação foi tão reivindicada que garantiu a vitória de FHC logo no primeiro turno das eleições de 1994 contra Lula. E é preciso lembrar que Lula, ainda em 1994, aparecia disparado como grande favorito nas pesquisas, com mais de 40% das intenções de voto.

Isso pode ser explicado pelo fato de a hiperinflação representar sim um grande problema nas famílias da classe trabalhadora, principalmente as mais pobres. Ao mesmo tempo, o acesso a importados, e a possibilidade de parcelar os produtos, garantiram uma sensação de aumento do poder aquisitivo, mesmo as famílias estando, em geral, mais pobres e endividadas.

Contribuiu ainda para o “sucesso” do Real uma propaganda massiva da grande imprensa, elevando a equipe econômica e FHC ao status de estrelas e herois nacionais. E, não menos importante, a posição do próprio Lula e o PT que, se no início, eram críticos ao plano, foram gradativamente incorporando os pressupostos do Real, ao invés de explicar à população o que, de fato, ele significava.

O Real, ontem e hoje

Brasília – 28/06/2023 O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante anuúncio do Plano Safra 2023/2024 Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

A paridade cambial que sustentava o Real implodiu em janeiro de 1999, tão logo o reeleito FHC assumiu seu novo mandato. Sem mais reservas para bancar uma moeda atrelada ao dólar, FHC, num estelionato eleitoral, desvalorizou a moeda e instituiu o chamado regime cambial flutuante. O valor da moeda frente ao dólar variaria de acordo com o mercado, e o Banco Central interviria, comprando ou vendendo dólares, de forma pontual. No lugar, foi estabelecida a meta de inflação, formando o chamado tripé macroeconômico que vigora até hoje: câmbio flutuante, meta de inflação e Superávit Primário (arrecadação menos gastos, descontados os juros da dívida).

Uma política econômica mantida pelos governos do PT nos anos seguintes. Porém, com o boom das commodities, e o Brasil se consolidando como exportador privilegiado de produtos primários, as reservas não se tornaram mais problema, pelo contrário, o país acumulou mais de 300 bilhões de dólares, que servem ainda hoje como garantia para a remuneração dos banqueiros e especuladores internacionais que se enriquecem cada vez mais com os juros da dívida.

O que chamamos de Plano Real, como seus próprios idealizadores atestam, não foi, assim, uma mera reforma monetária, mas uma profunda reorganização da economia do país, preparando o Brasil para os anos seguintes, de recrudescimento da rapina imperialista, tanto através da venda de estatais e desnacionalização de setores inteiros da economia, como através do sistema da dívida pública. Dentro de um processo de inserção subordinada do país no mercado internacional, como exportador de produtos de baixo valor agregado, como no período colonial.

A centralidade do Banco Central, agora dirigido diretamente pelo capital financeiro, os juros altos, a busca pelo Superávit Primário e ajuste fiscal (e todos os mecanismos construídos ao redor disso, como a Lei de Responsabilidade Fiscal e o recente Arcabouço Fiscal de Lula) são desdobramentos e aprofundamento dessa política. Quando o PT reivindica o Plano Real, desta forma, não reivindica tão somente a “estabilidade” dos preços ou o fim da inflação, mas todos os pressupostos neoliberais implementados no governo FHC.

Quer um exemplo? Os ministros Haddad e Tebet causaram polêmica nos últimos meses ao defenderem a desindexação (olha ela aí de novo) dos mínimos constitucionais da Saúde e da Educação, além de benefícios sociais como o BPC (Benefícios de Prestação Continuada) e da própria aposentadoria com o salário mínimo. Se no Plano Real o passo inicial era desindexar os salários dos demais preços para conter a inflação, no terceiro governo Lula o objetivo é desindexar os benefícios e áreas sociais para garantir o Superávit Primário.

O próprio Edmar Bacha, um dos idealizadores do Real, defende que essas medidas são justamente as tarefas inacabadas do plano que está completando 30 anos. Como afirma em seu recente livro “30 anos do Real: crônicas no calor do momento”: “É preciso retomar essa perspectiva de desindexação, de desregulamentação, especialmente a questão de vinculação da Previdência ao salário mínimo, e o fato de educação e saúde agora estarem vinculadas à arrecadação”.

Opinião também compartilhada por Pedro Malan, para quem, se o regime de câmbio flutuante e as metas de inflação foram consolidadas, o “problema fiscal”, leia-se, um regime ainda mais duro de austeridade, seria uma tarefa ainda para se avançar. “Tentamos definir um regime fiscal com base na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas isso continua sendo, a meu ver, um grande desafio“, declarou ao jornal Folha de S. Paulo deste dia 30 de junho.

Discursos parecidos que vão muito além da mera coincidência.

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