20 anos de Admirável Chip Novo
Falar em Pitty, para minha e acho que toda geração, é ser transportado para uma época onde as músicas desse álbum se tornaram onipresentes no dia-a-dia. Seja nas rádios, ouvindo no fone para a escola, seja na MTV, onde a cantora tornou-se figura carimbada, a baiana fez parte da rotina de milhões de adolescentes no país nos anos 2000.
Em um período onde cantoras como Britney e Cristina Aguilera eram exibidas largamente em todos os meios possíveis mundo afora, uma baiana roqueira parecia destoar de tudo que fazia sucesso. Mas ao contrário, isso foi o combustível para que Pitty fizesse residência na grande mídia longo da década, impondo uma atitude diversa de rebeldia e confrontação contra o padrão do pop dos anos 2000.
Inegavelmente, isso vem de seu talento excepcional como compositora, capaz abordar temas comuns a juventude como autoaceitação, insatisfação com a rotina e os grandes romances da vida, com uma banda afiadíssima, marcada pelas poderosas guitarras de Peu Gomes, cria do underground soteropolitano.
Basta ler a lista de músicas para se notar que boa parte das letras podem ser cantadas de cor: “Máscara”, “Teto de Vidro”, “Equalize”, “Semana que vem”…. O disco ao longo dos anos chegou ao nível de platina, e marcou para sempre o imaginário popular do que seria talvez a última década de ouro do rock brasileiro, que nas décadas seguintes, entraria em franco declínio nas grandes mídias e entre a juventude.
Por isso mesmo, é necessário também dar o contexto que deu fruto a Priscilla Novaes Leone, ou como muitos nos 30 que como eu lembram de passar horas ininterruptas ao som dela, a Pitty.
A ebulição do underground brasileiro
Partindo de um ponto mais básico, será definido aqui underground como toda a expressão artística que passe por fora da grande mídia, sejam emissoras, rádios, ou outros segmentos que impuseram ao longo de décadas quais seriam ou não os medalhões da música brasileira.
Conforme a ditadura dava seus sinais de fim nos anos 80, diversos gêneros que antes não chegavam ao Brasil passaram a povoar os programas de rádio e lojas de disco, levando toda uma geração a ter acesso e a interpretar à sua maneira a explosão radical de outros subgêneros menos populares do rock, como o punk e o metal, por exemplo.
Surgem aí as primeiras gerações de rock “alternativo” no Brasil, com notáveis cenas em cada local, como o punk paulistano e o metal mineiro. Outras bandas, ainda que não descarregassem essa fúria no som em si, adotaram em seus discursos posturas muito mais radicais que o rock então “popular” nos anos 80. O Camisa de Vênus, por exemplo, emplacou em seu maior sucesso o coro “Bota para fuder”, colocando um palavrão pela primeira vez na lista de sucessos em um país criado sob mão de ferro de militares.
Esses grupos, mesmo sem o sucesso de seus contemporâneos por não contarem com o mesmo apoio midiático, edificaram sua própria cena, através da troca de cartas e materiais gravados em fitas K7´s. Muitos inclusive, chegaram a circular seus materiais internacionalmente, inserindo o Brasil em diversas cenas globais, como no caso do punk paulistano, em bandas como Cólera e Ratos de Porão.
Assim, ao longo dos anos, cada estado do Brasil interpretou e reinterpretou a vanguarda do rock dos anos 70 e 80 a sua maneira, dando as bases para toda uma rica cena que Pitty viveria boa parte de sua vida antes do sucesso. Esses grupos, por uma série de motivos, não necessariamente dialogavam musicalmente entre si, mas tinham em comum uma árdua jornada para construir uma carreira baseada na dedicação de fãs e na criação de seus próprios meios para lançarem seus materiais.
Pitty, nessa época, mal pensava em se tornar a incendiária cantora de rock. Criança ainda em Porto Seguro, acompanhava o pai em shows em bares e restaurantes locais e aprendia a tocar os sucessos da música brasileira (em especial de um de seus ídolos, Raul Seixas).
O cenário para o underground brasileiro mudaria radicalmente na década de 1990, listados alguns motivos, pode-se citar: primeiro, o sucesso de uma banda desse segmento galgar níveis internacionais – o Sepultura, de Minas Gerais. O segundo, o cenário alternativo tornar-se de massas em alguns locais, em especial em Recife, com o manguebeat liderado por Chico Science; e enfim o desembarque da MTV no Brasil. Dado que o padrão internacional de rock para a época vinha diretamente de bandas “alternativas” – o dito grunge de grupos como o Nirvana e Pearl Jam – era necessário para a emissora catapultar sua própria versão do rock alternativo.
Dessa forma, mesmo sem um alcance nacional em suas transmissões, a emissora aproveitaria sua inserção entre um nicho jovem para popularizar bandas que fossem ligadas diretamente ao seu projeto de estabelecimento. Em 1993, por exemplo, a MTV enviaria dois jornalistas à Recife, que passariam dias na cidade e cobririam a primeira edição do festival Abril Pro Rock, transmitindo pela primeira vez um show do Nação Zumbi. A exibição levou a banda para as paradas de sucesso, e a emissora garantira livre acesso ao trabalho do grupo. Outro exemplo é a banda Planet Hemp, que teria sua amarga jornada contra a censura do Estado acompanhada de perto, levando o debate sobre a legalização da maconha tomar a grade de emissoras como a Globo.
Com a separação dos pais, Pitty muda com a mãe para Salvador em 1996, no auge de toda um cenário que pela primeira vez via a oportunidade de exibir seu trabalho. A cantora tocaria em diversos grupos da cidade, até formar o Inkoma em 1997, onde pela primeira vez também atuaria como compositora. A banda gravaria uma demo só com músicas autorais em 1998, alcançando sucesso na cidade. Uma curiosidade é sua participação no disco “Traidô: 20 bandas cantando Ratos de Porão”, onde Pitty cantaria “Não me importo” no mesmo ano. Na mesma época, o Inkoma tocaria pela primeira vez com o Ratos. Em entrevista, Pitty relatou rindo a João Gordo em uma entrevista como achou-os estrelas por não emprestarem instrumentos, mas que foi o maior orgulho para sua carreira até então.
Por uma série de fatores, o Inkoma se separaria em 2001, mas deixaria um disco completo lançado. Pitty entraria no curso de música da UFBA, e passaria a estudar e se dedicar intensamente ao trabalho de composição. Seu trabalho com o Inkoma, na mesma época, cai nas mãos de Rafael Ramos, ex-produtor artístico da Universal Music. Rafael estava fundando sua gravadora, a Deckdisc, pautado pelo trabalho de artistas independentes. Ele entraria em contato com a cantora em 2002, que, explicada sua situação, mostraria suas composições escritas na faculdade. E o resto é história.
A gravação do disco
Pitty confrontou diretamente a gravadora e fez questão de só chamar músicos da cena baiana: Joe no baixo, Duda Machado na bateria e o diferencial do disco: Peu Souza na guitarra, que conseguiria inserir um peso em uma linguagem extremamente popular. A cantora também brigaria para lançar a música “Máscara” como single separado, contra a vontade da Deckdisc, que gostaria de uma música mais leve.
A boa recepção na crítica de jornais como Folha e Estadão criou o burburinho necessário para a gravadora dar carta branca ao trabalho da cantora, que também faria seu primeiro videoclipe sobre a mesma música. O bom desempenho na MTV chama a atenção que a cantora precisava para lançar em 2003 o disco “Admirável Chip Novo”. O título, baseado no livro de Aldous Huxley, tinha como ideia amarrar os temas que passeariam pelas canções, que teriam como foco uma crítica social aos padrões de comportamento da cidade.
Assim, “Máscara”, por exemplo, fala sobre a autoaceitação, ao bradar no refrão: “O importante é ser você/mesmo que seja, estranho!”. “Teto de Vidro”, faixa de abertura, fala sobre o julgamento alheio. “Admirável Chip Novo” sobre a automatização da rotina; “Pense, fale, compre, beba/Leia, vote, não se esqueça/Use, seja, ouça, diga/Tenha, more, gaste e viva”. “O lobo” retoma a obra de Thomas Hobbes, ao explicar o surgimento da raça humana da pré-história aos tempos modernos.
A ideia original da gravadora era lançar inicialmente “Equalize”, música gravada com participação de Liminha, produtor e ex-baixista dos Mutantes. A música, composta com Peu, tem um ritmo bem mais leve e uma letra romântica, para contragosto da cantora, que tinha medo que a obra não transmitisse seu trabalho. A sua maneira, foi uma decisão acertada, mas a insistência da gravadora tinha sua razão. O single foi o mais tocado do disco, chegando a primeiro lugar nas rádios em 2004.
O sucesso absoluto do disco tomou proporções de massas quando suas músicas chegaram às novelas. Em 2003, o single “Máscara” tornou-se parte da trilha da novela Senhora do Destino. Na mesma época, “Teto de Vidro” vai para a Malhação, e “Temporal” na novela Da Cor do Pecado, com a cantora tomando quase que toda a grade de novelas da Globo.
A artista também faz ponta no disco acústico do Ira! Lançado pela MTV, cantando “Eu quero sempre mais”. O disco é até hoje o maior sucesso comercial do grupo paulistano, garantindo a cantora mais um espaço nas rádios. Pitty tornou-se, enfim, uma espécie de onipresença no dia-a-dia dos adolescentes, coroando sua posição como porta-voz do rock nacional em diversas premiações e em impressionantes 450000 cópias vendidas, tornando baiana uma artista platinada em 2004.
Lembro-me com cerca de 12-13 anos assistir extasiado um show dela na MTV, cantando o disco na íntegra. Várias garotas da minha escola passaram a adotar o estilo da cantora, pintando os cabelos e usando munhequeiras no pulso, gargantilhas. A galeria do rock, point no centro de São Paulo, era o local de encontro, onde adolescentes de toda a cidade trocavam materiais da cena e acompanhavam os lançamentos da cantora, que tinha suas camisetas vendidas a exaustão nas lojas locais. Nada mal para quem três anos antes, ralava nos inferninhos de Salvador para pagar as contas e virava as noites tocando hardcore nas casas de show locais.
Em 2005, a cantora emplacaria outro disco de sucesso, “Anacrônico”, apostando na mesma fórmula de um single pesado com outro mais leve. Ela ainda ocuparia o topo das paradas, sobretudo pelo sucesso da canção “Na sua estante”, mas encerraria a fase mais premiada da cantora com a saída de Peu Souza do grupo. A partir daí, a cantora seguiria firme em uma carreira de sucesso lotando shows, mas ao poucos perderia espaço para outros gêneros na grande mídia.
É a hora de reconhecer Pitty
Ao longo desse texto, parei algumas vezes para ouvir o “Admirável Chip Novo”, ver alguns vídeos e entrevistas sobre. Pitty, hoje em uma fase mais madura, continua sendo uma poderosa figura de atitude, e sem dúvida uma musicista impar no cenário brasileiro.
Porém, a experiência de ter vivido como fã a explosão desse disco coloca outra experiência. Para mim, ouvir Pitty é lembrar de toda uma época onde começava a me entender dentro do mundo. Foram minhas primeiras leituras, revoltas e saídas, quando ia com meu irmão mais velho ao Hangar 110 acompanhar bandas do mesmo cenário que ela saiu, pensando se um dia aqueles grupos fariam tanto sucesos. Obviamente que foram raras exceções, mas isso não apaga o sentimento de pertencimento a algo muito maior que a cantora representava.
Pitty foi rock até a medula em uma época que a primeira ebulição já havia terminado. A separação traumática do Sepultura, o falecimento de Chico Science e a paralisação por censura ao Planet Hemp deixou de certa forma uma geração órfã, que como eu crescera gostando de rock, mas não via em nada que minimamente tocasse nas rádios um elemento de identificação. Basta lembrar que no mesmo período, o maior sucesso de uma cantora era o hit “Tô nem aí”, exibido a exaustão nas emissoras de televisão.
Portanto, quando ela fez sucesso, de certa forma, era um acolhimento que as coisas que eu sentia e acreditava aos 13 e 14 de idade. A sensação de poder que o som do disco passa cai muito bem para um adolescente em ebulição, que com raiva do mundo, muitas vezes não sabe colocar em palavras a revolta que o cabe, e encontrou em uma cena um espaço de acolhimento comum as coisas que sentia e passava no meu início de juventude.
Era o gás que tanto nós, fãs, precisavamos, quanto os artistas, quase como alguém olhando para você e falando “não pare!”. Os anos consequentes não foram tão genenerosos para o rock como esperávamos. Mas isso não apaga a felicidade inocente de quem fez parte desse contexto em uma época tão musicalmente efervecente.
Com todas suas limitações, Pitty de certa forma representou toda a voz de uma geração que como eu, não se enquadrava. E hoje, ao ouvir esse disco 20 anos depois, é no mínimo gostoso saber que esses dilemas afinal não foram passados de maneira solitária. É como ir em um show dela, olhar em volta e ver várias pessoas de sua faixa etária, que também tiveram esse processo com seu som.
Por isso, fica a homenagem a um disco e a uma cantora que representou muito bem os dilemas em um período da vida onde a luta por se encontrar parece ser a batalha da vida. Fica essa humilde homenagem a alguém que teve o apoio da Pitty. Valeu!